Capítulo 7 - June
Não
consigo olhar para Day antes de deixá-lo para trás. Quando o Patriota de Razor
me afasta da entrada principal da pirâmide Pharaoh, mantenho meu rosto virado
para o outro lado. É melhor assim, digo a mim mesma. Se a missão der certo,
ficaremos separados por pouco tempo.
As
preocupações de Day com o meu bem-estar me atingem em cheio agora. O plano de
Razor para mim parece bom, mas algo sempre pode dar errado. E
se, ao invés de me levarem para falar com o Eleitor, atirarem em mim no momento
em que eu for descoberta? Ou eles poderiam me virar pelo avesso na sala de
interrogatório e me espancar brutalmente. Já vi isso acontecer um montão de
vezes. Eu poderia estar morta antes do fim do dia, muito tempo antes de o
Eleitor saber que fui encontrada. Um milhão de coisas pode dar errado.
E por isso que preciso me concentrar, lembro a mim mesma. E não posso fazer isso se
olhar nos olhos de Day.
O
Patriota me guia dentro da pirâmide e por um estreito passadiço ao longo de uma
parede. Aqui dentro é tudo barulhento e caótico. Centenas de soldados movem-se
lentamente em círculos no nível térreo.
Razor
havia me dito que me abrigariam em um quarto das casernas vazias no primeiro
andar, onde eu fingiria estar me escondendo antes de tentar entrar furtivamente
no RS Dynasty. Quando os soldados da República derrubarem a porta e vierem me
buscar, eu devo correr. Com todas as minhas forças.
Apresso
o passo para combinar com o ritmo do meu guia. Chegamos então no fim do
passadiço, onde uma porta de segurança (com um metro e sessenta e cinco de
largura e três metros de altura) separa o andar principal dos corredores das
barracas militares do primeiro andar. O guia passa um cartão pela porta, que
bipa, acende uma luz verde e se abre.
—
Resista quando vierem buscá-la — o Patriota fala comigo em um tom de voz que
mal consigo ouvir. A aparência dele não é diferente da dos outros soldados
aqui, com seu cabelo engomado penteado para trás e um uniforme preto. — Faça
com que eles acreditem que você não queria ser capturada. Sua intenção era se
entregar perto de Denver, entendido?
Faço
um sinal afirmativo com a cabeça.
Ele
desvia a atenção de mim. Examina o hall, inclina a cabeça para cima e
inspeciona o teto. Uma fileira de câmeras de segurança está presente em toda a
extensão do corredor; são oito no total, de frente para a porta de cada
quartel. Antes de nós entrarmos no hall, o soldado pega um canivete no bolso e
arranca um dos botões lustrosos da jaqueta. Depois se apoia no vão da porta,
pressiona um pé em cada lado do batente da porta e começa a subir por ela.
Olho
de relance para o hall. Não há outros soldados no momento, mas e se um deles de
repente dobrar a quina do corredor? Não será surpresa se me capturarem
aqui (afinal de contas, nosso objetivo é esse), mas o que será do meu guia?
Ele
estende o braço para a primeira câmera de segurança e usa o canivete para
raspar parte do revestimento de borracha que protege os fios da câmera. Quando
sai um pouquinho da borracha e os fios ficam expostos, ele protege os dedos com
a manga da jaqueta e comprime o botão de metal contra os fios.
Há
uma rápida sucessão de fagulhas. Para minha surpresa, todas as câmeras de
segurança no hall se apagam.
—
Como é que você conseguiu desligar todas elas com apenas um...? — começo a
sussurrar.
O
rapaz pula de volta para o chão e gesticula para eu me apressar.
—
Sou um hacker — ele me responde baixinho, quando começamos a correr. — Eu já
trabalhei nos centros de comando daqui antes. Substituí parte da fiação pra
ficar como a gente queria — ele sorri orgulhoso; seus dentes brancos são
perfeitos. — Mas isso não é nada. Espere até você saber o que fizemos com a
Capital Tower de Denver.
Impressionante!
Se Metias se unisse aos Patriotas, ele também seria um hacker. Se estivesse vivo.
Corremos
a toda velocidade pelo corredor, até ele me mandar parar diante de uma das
portas. Tenda Militar 4A. Ele tira um cartão do bolso e dá uma pancada forte no
painel de acesso da porta. Ouve-se um clique e a porta se entreabre: lá dentro,
oito fileiras de beliches e vestuários estão no escuro.
O
hacker se vira e me encara.
—
Razor quer que você espere aqui para garantir que os soldados certos a
capturem. Ele tem uma patrulha específica em mente.
É
claro que isso faz todo o sentido do mundo. Confirma que Razor não quer que eu
seja espancada cruelmente, caso acabe caindo nas mãos de uma patrulha qualquer
da República.
—
Quem...? — começo a perguntar.
Mas
ele dá um tapinha na aba do quepe militar antes que eu termine a frase.
—
Nós vamos observar sua missão pelas câmeras. Boa sorte! — Ele vai embora,
correndo pelo hall até dobrar uma curva e eu perdê-lo de vista.
Respiro
fundo. Estou sozinha. É hora de esperar os soldados virem me prender.
Entro
depressa no quarto e fecho a porta. Aqui dentro está preto como piche: não há
janelas, nem uma nesga de luz entra por baixo da porta. Este é realmente um
lugar razoável para eu me esconder. Nem me incomodo em andar por ali para
conhecer o lugar; já conheço esse tipo de dormitório: fileiras de beliches e um
banheiro compartilhado. Apenas me posiciono contra a parede bem ao lado da
porta. E melhor ficar aqui.
Tateio
no escuro e encontro a maçaneta. Usando as mãos como régua, calculo a distância
da maçaneta até o chão — um metro e dez. Esse também deve ser o espaço entre a
maçaneta e o topo do marco da porta.
Recordo
quando ainda estávamos no corredor, imaginando qual seria a distância entre a
parte superior do marco da porta e o teto. Pouco menos de sessenta centímetros.
Tudo
certo. Agora todos os detalhes estão em ordem. Encosto-me na parede, fecho os
olhos e espero.
Doze
minutos se passam lentamente.
Então,
lá longe, no hall do lado de fora, escuto um latido. Arregalo os olhos. Olíie! Eu
reconheceria esse latido em qualquer lugar — meu cachorro ainda está vivo! Vivo, por alguma intervenção
divina.
Alegria
e confusão tomam conta de mim. Como ele veio parar aqui? Comprimo o ouvido
contra a porta e escuto. Depois de vários segundos de silêncio, volto a escutar
o latido dele.
Meu pastor branco está aquil
Pensamentos
varrem minha cabeça. A única razão pela qual Ollie estaria aqui seria para
acompanhar uma patrulha, a patrulha que está me perseguindo. E apenas um
soldado pensaria em usar meu próprio cachorro para me farejar: Thomas. As
palavras do hacker me voltam à mente. Razor queria que "os soldados
certos" me capturassem. Ele tinha uma patrulha específica na cabeça.
Evidentemente,
a patrulha — a pessoa — que Razor tinha na cabeça era Thomas.
Thomas
deve ter sido designado pela Comandante Jameson para me rastrear. Ele está
usando Ollie para ajudá-lo. De todas as patrulhas pelas quais eu podia ser
presa, a de Thomas é a última da lista. Minhas mãos começam a tremer. Não quero
reencontrar o assassino do meu irmão.
O
latido de Ollie aumenta cada vez mais. Com ele, ouço os primeiros 81 sons de
pisadas e vozes. Ouço a voz de Thomas no corredor, gritando com seus soldados.
Prendo a respiração e relembro os números que calculei. A patrulha está do lado
de fora da porta. Suas vozes silenciaram, substituídas por cliques (são as travas
de segurança das armas, provavelmente fuzis da série M). O que se segue parece
ocorrer em câmera lenta.
A
porta se abre com um rangido, a luz invade o recinto. Imediatamente dou um
pequeno salto e levanto uma perna; meu pé atinge silenciosamente a maçaneta,
quando a porta gira na minha direção. Nesse instante, os soldados entram no
local com as armas em punho; eu me ergo e agarro a parte de cima da moldura da
porta, usando a maçaneta como um degrau. Jogo-me para cima e, sem um som, me
empoleiro no topo da porta aberta, como um gato.
Eles
não me vêem. Provavelmente não conseguem ver nada, exceto a escuridão. Com
rapidez, conto quantos são. Thomas lidera o grupo, com Ollie a seu lado (para
minha surpresa, Thomas não sacou a arma), e atrás dele está um grupo de quatro
soldados. Há mais soldados do lado de fora. Não dá pra saber quantos.
—
Ela está aqui — diz um deles, com uma das mãos colada ao ouvido.
—
Ela ainda não conseguiu entrar em nenhum dos dirigíveis. O Comandante DeSoto
acabou de confirmar que um dos seus soldados a viu entrar.
Thomas
permanece calado. Eu o vejo virar-se para observar o local escuro. Depois, ele
olha para o alto da porta.
Nossos
olhares se cruzam.
Salto
em cima dele e o derrubo no chão. Num instante de fúria cega minha vontade é
quebrar seu pescoço com as mãos. Seria tão fácil.
Os
outros soldados empunham as armas, mas em meio ao caos, ouço Thomas dizer, com
voz engasgada:
—
Não atirem! Não atirem! — Ele me agarra pelo braço. Quase consigo me livrar e
correr entre aos soldados, escapando pela porta, mas um segundo soldado me
empurra contra o chão. Todos estão em cima de mim, num redemoinho de uniformes
prendendo meus braços e me arrastando pelos pés. Thomas continua a gritar para
que os soldados não me machuquem.
Razor
tinha razão quanto a Thomas. Ele vai querer me manter viva para a Comandante
Jameson. Eles acabam me algemando, e me empurram com tanta força no chão, que
não consigo me mexer. Ouço a voz de Thomas acima da minha cabeça.
—
Que bom revê-la, Srta. Iparis. — Sua voz treme. — A senhorita está presa por
agredir soldados da República, criar um distúrbio em Batalla Hall e por
abandonar seu posto. A senhorita tem o direito de permanecer em silêncio.
Qualquer coisa que disser pode e vai ser usada contra a senhorita em um
tribunal de justiça.
Observo
que ele não disse nada sobre eu prestar ajuda a um criminoso. Ele ainda precisa
fingir que a República executou Day.
Eles
me põem de pé com um puxão e me levam de volta ao corredor. Quando chegamos a
um local sob a luz do sol, vários soldados que passam param para olhar. Os
homens de Thomas me empurram rudemente para o assento traseiro de um jipe da
patrulha de prontidão, acorrentam minhas mãos à porta e prendem meus braços com
algemas metálicas. Thomas se senta ao meu lado, e aponta a arma para minha
cabeça. Ridículo! O jipe nos conduz pelas ruas. Os outros dois soldados
sentados na frente me observam pelo espelho retrovisor. Eles agem como se eu
fosse uma espécie de arma indomada, o que, de certa maneira, é verdade. A
ironia da história toda me dá vontade de rir. Day é um soldado da República a
bordo do RS Dynasty, e eu sou a prisioneira mais valiosa da República.
Trocamos
de lugar.
Thomas
tenta me ignorar enquanto percorremos as ruas, mas olho fixamente para dele.
Ele
parece cansado; os lábios estão pálidos e olheiras lhe cercam os olhos. O
queixo está barbado, o que é uma surpresa. Thomas costumava manter o rosto
perfeitamente barbeado. A Comandante Jameson deve ter dito poucas e boas para
ele por ter me deixado fugir de Batalla Hall.
Provavelmente
ele foi interrogado por causa disso.
Os
minutos se arrastam. Nenhum dos soldados fala. O que dirige o jipe mantém os
olhos fixos na ma, e tudo que conseguimos ouvir é o zumbido do motor do jipe e
os sons abafados das ruas lá fora. Acredito piamente que os outros devem ser
capazes de ouvir o martelar do meu coração. De onde estou, vejo o jipe à nossa
frente, e através da janela traseira percebo lampejos ocasionais de pelo branco
que me fazem muitíssimo feliz. É o Ollie. Queria que ele estivesse no mesmo
jipe que eu.
—
Obrigada por não ter machucado o Ollie.
Não
espero que ele responda. Capitães não falam com criminosos, ele
diria. Mas, para minha surpresa, ele olha pra mim. Tenho a impressão de que por
minha causa ele ainda se dispõe a romper qualquer protocolo.
—
Seu cachorro acabou sendo útil.
Ele é o cachorro do Metias. Minha raiva volta a ferver meu sangue, mas eu
a controlo. É inútil ficar furiosa com algo que não vai ajudar meus planos.
É
interessante que ele tenha mantido Ollie vivo. Ele poderia ter me rastreado sem
o cachorro. Ollie não é um cão policial e não está treinado para farejar alvos.
Ele não poderia ter ajudado quando estavam tentando me encontrar pelo país
inteiro; ele só é útil em distâncias muito curtas.
Isso
quer dizer que Thomas o manteve vivo por outras razões. Porque ele se importa
comigo?Ou porque... talvez ele ainda se importe com Metias. Essa
ideia me assusta. O olhar fixo de Thomas se desvia quando não digo mais nada.
Faz-se então mais um demorado silêncio.
—
Para onde vocês estão me levando?
—
A senhorita vai ficar detida na Penitenciária de High Desert até depois de seu
interrogatório, e então os tribunais vão decidir para onde a senhorita vai.
É
hora de colocar os planos de Razor em funcionamento.
—
Depois do meu interrogatório, posso garantir que os tribunais vão me mandar
para Denver.
Um
dos guardas sentados na frente estreita os olhos para se dirigir a mim, mas
Thomas ergue uma das mãos.
—
Deixe que ela fale. O que importa é que nós a entreguemos ilesa.
—
Ele então olha de relance para mim. Está mais macilento do que na última vez em
que o vi; até o cabelo, repartido harmoniosamente, está opaco e sem gel. — E
por que acha isso? — pergunta ele.
—Tenho
informações que podem interessar muito ao Primeiro Eleitor.
Thomas
torce a boca. Está louco para me fazer perguntas, para descobrir o que eu sei.
Isso, contudo, não faz parte do protocolo, e ele já infringiu várias normas ao
conversar informalmente comigo. Resolve não me pressionar mais.
—Vamos
ver o que conseguiremos extrair da senhorita.
Aí
me dou conta de que é um pouco estranho me mandarem para uma penitenciária em
Vegas. Eu devia ser interrogada e julgada no meu estado natal.
—
Por que vou ficar presa aqui? Eu não devia estar a caminho de Los
Angeles?
Thomas
mantém os olhos no trajeto desta vez.
—
Quarentena.
Franzo
a testa.
—
Como assim? Ela se espalhou até Batalla também?
A
resposta dele me arrepia toda:
— Los Angeles está sob quarentena. Toda ela.
***
PENITENCIÁRIA DE HSGH DESERT.
SALA 416 (22 METROS QUADRADOS).
22H24 O MESMO DIA DA MINHA CAPTURA.
Sento-me
a poucos centímetros de Thomas. Apenas uma frágil mesa nos separa, isto é, se
eu não contar o número de soldados me vigiando ao lado dele. Eles se mexem
pouco à vontade sempre que pouso meus olhos neles. Oscilo um pouco na cadeira,
tentando superar a exaustão, e tilinto as correntes que mantêm meus braços
presos nas costas. Minha cabeça começa a vagar; fico pensando no que Thomas
falou sobre Los Angeles e a quarentena. Digo a mim mesma: "Não tenho tempo para
refletir sobre isso agora", mas os pensamentos persistem. Tento
visualizar a Universidade de Drake pontilhada de cartazes de quarentena, as
ruas do setor Ruby lotadas de patrulhas contra a praga. Como isso é possível?
Como
pode uma cidade inteira estar sob quarentena?
Estamos
neste cômodo há seis horas, e Thomas não conseguiu nenhuma informação de valia.
Minhas respostas às suas perguntas nos levam a círculos sem saída, e eu tenho
sido tão sutil nisso, que ele só se dá conta de que estou manipulando a conversa
depois que uma hora tenha se passado. Ele ameaçou matar Ollie; eu, por minha
vez, ameacei levar para a sepultura todas as informações que eu tinha. Ele aí me ameaçou,
e eu lhe lembrei de minha promessa de levar para o túmulo tudo o que eu sabia.
Thomas chegou a tentar me manipular, mas nenhum de seus joguinhos deu certo.
Não parei de perguntar por que Los Angeles estava sob quarentena. Eu havia sido
treinada nas mesmas táticas de interrogatório que ele, e isso estava se
voltando contra ele. Thomas ainda não tinha recorrido à força bruta comigo,
como fez com Day. (Este é mais um detalhe interessante. Não importa quanto
Thomas goste de mim — se seus superiores ordenarem que use força física, ele
obedecerá. Como ainda não me machucou, significa que a Comandante Jameson lhe
ordenou que não o fizesse. Estranho.) Mesmo assim, dá pra perceber que sua
paciência comigo está se esgotando.
—
Diga-me uma coisa, Srta. Iparis — ele diz depois de ficarmos em silêncio um
instante. — O que eu preciso fazer para conseguir extrair alguma coisa útil da
senhorita?
Mantenho
o rosto inexpressivo.
—
Já disse. Troco uma resposta por um pedido. Tenho informações para o Primeiro
Eleitor.
—
A senhorita não está em posição de barganhar nada. E não pode continuar a agir
assim indefinidamente.
Thomas
encosta-se à cadeira e franze a testa. As luzes fluorescentes lançam compridas
sombras sob seus olhos. Em oposição às paredes brancas não decoradas do
aposento (exceto por duas bandeiras da República e pelo retrato do Eleitor),
Thomas sobressai ameaçadoramente no seu uniforme preto e vermelho de capitão.
Metias costumava usar um uniforme idêntico.
—
Sei que Day está vivo, e a senhorita sabe como podemos encontrá-lo. A senhorita
vai contar tudo, assim que passar uns dias sem comer ou beber.
—
Não suponha o que eu vou ou não vou fazer, Thomas — respondo. — Quanto a Day,
acredito que a resposta seja óbvia. Se ele estivesse vivo, estaria tentando
resgatar seu irmão caçula. Qualquer idiota poderia concluir isso.
Thomas
tenta ignorar minha estocada, mas percebo a irritação em seu rosto.
—
Se ele está vivo, nunca vai encontrar o irmão. O lugar onde ele está é
confidencial. Não preciso saber aonde Day quer ir. Preciso saber onde ele está.
—
Isso não faz a menor diferença. Você nunca o prenderia mesmo. Ele não vai cair
no mesmo truque duas vezes.
Thomas
cruza os braços. Terá sido realmente há apenas algumas semanas que nós dois
jantamos juntos num café de Los Angeles? A lembrança de LA me traz de volta a
notícia da quarentena, e visualizo o café vazio, coberto por avisos de
quarentena.
—
Srta. Iparis — diz Thomas, pondo as palmas das mãos na mesa. — Podemos
continuar desta maneira durante horas, e a senhorita pode continuar mentindo e
sacudindo a cabeça até desmaiar de cansaço. Não quero machucá-la. A senhorita
tem a oportunidade de se redimir com a República. Apesar de tudo que fez, soube
pelos meus superiores que eles ainda a consideram muito valiosa.
Bingo!
A Comandante Jameson tinha mesmo intervindo para garantir que eu não fosse
machucada durante meu interrogatório.
—
Quanta generosidade! — respondo, enfatizando o sarcasmo patente nas minhas
palavras. — Tenho mais sorte que Metias.
Thomas
suspira, inclina a cabeça e aperta o osso do nariz, exasperado. Mantém essa
postura por um instante, depois se movimenta e diz asperamente aos demais
soldados:
—Todo
mundo pra fora!
Quando
os soldados nos deixam sozinhos, ele se vira para mim, debruça-se para frente,
e põe os braços na mesa:
—
Lamento que a senhorita esteja aqui — ele diz calmamente. — Espero que entenda
que meu dever me obriga a fazer isso.
—
Onde está a Comandante Jameson? — pergunto. — Você não é um dos fantoches
manipulados por ela? Achei que ela também viria me interrogar.
Thomas
nem se abala com a minha provocação.
—
No momento ela está imobilizando Los Angeles, organizando a quarentena e
relatando a situação ao Congresso. Com todo o respeito, o mundo não gira ao seu
redor.
"Imobilizando
Los Angeles". Essas palavras me causam calafrios.
—
As pragas são mesmo tão graves assim? — resolvo perguntar de novo, mantendo os
olhos fixos no rosto de Thomas. — A quarentena em LA é causada por doenças?
Ele
balança a cabeça.
—
Confidencial.
—
Quando será suspensa? Todos os bairros estão sob quarentena?
—
Pare de fazer perguntas. Já lhe disse que a cidade inteira está em quarentena.
Mesmo que eu soubesse quando terminaria, não teria motivo para lhe contar.
No
mesmo instante, pela sua expressão, deduzi o que ele quis dizer: A Comandante Jameson não me disse
o 'que está acontecendo na cidade, por isso não tenho a menor idéia. Por que
ela precisaria mantê-lo no escuro?
—
O que aconteceu na
cidade? — volto a insistir, esperando mais informações da parte dele.
—
Isso não é relevante para o seu interrogatório — responde Thomas, batendo com
os dedos, impaciente, no braço. — Los Angeles já não é da sua conta, Srta.
Iparis.
—
Acontece que é minha cidade natal — respondo. — Eu cresci lá. Metias morreu lá. É
claro que é da minha conta!
Thomas
se cala. Ele ergue a mão para afastar do rosto uma mecha do cabelo preto, e
seus olhos procuram os meus. Minutos se passam.
—
Então é esse o problema... — ele acaba resmungando. Eu me pergunto se está
dizendo isso porque também está exausto depois de seis horas preso nessa sala. —
Srta. Iparis, o que aconteceu com seu irmão...
—
Eu sei o que
aconteceu — eu o interrompo. Minha voz estremece, com raiva cada vez maior. —
Você o matou. Você o vendeu ao estado. — As palavras doem tanto, que mal
consigo pronunciá-las.
Sua
expressão mostra insegurança. Ele tosse, endireita-se na cadeira.
—
A ordem foi dada diretamente pela Comandante Jameson, e a última coisa que eu
faria seria desobedecer a uma ordem transmitida por ela. A senhorita deveria
conhecer essa regra tão bem quanto eu, embora eu saiba que obedecer às regras
nunca foi seu forte.
—
Você, então, não teve o menor remorso em entregá-lo daquele jeito, só porque
ele deduziu como nossos pais morreram? Ele era seu amigo, Thomas.
Você cresceu com ele. A Comandante Jameson teria ignorado sua existência; você
nem estaria sentado do outro lado desta mesa se Metias não tivesse recomendado
seu nome para participar da patrulha dela. Ou será que você se esqueceu disso? —
levanto a voz ainda mais — Você não teve coragem de arriscar o próprio pescoço
para ajudá-lo?
— Foi uma ordem direta — repete Thomas. — A Comandante não deve
ser questionada. Por que a senhorita não entende isso? Ela sabia que ele
pirateava os bancos de dados de pessoas mortas, junto com uma porção de outros
catálogos governamentais de alta segurança. Seu irmão infringiu a lei várias
vezes. A Comandante Jameson não podia tolerar que um respeitado capitão de sua
patrulha cometesse crimes bem debaixo do seu nariz.
Estreito
os olhos.
—
Foi por isso que você o matou num beco escuro, e depois forjou as provas para
que Day fosse acusado pelo crime? Porque você pularia feliz de um penhasco se
sua preciosa comandante assim ordenasse?
Thomas
bate a mão na mesa com força bastante para me fazer pular.
— Foi uma ordem assinada pelo governo do
estado da Califórnia — ele grita. — Compreende o que estou
dizendo? Eu não tinha escolha.
Então
ele arregala os olhos. Ele não podia ter revelado isso. Não dessa maneira. Suas
palavras também me deixam atônita. Ele continua a falar, agora mais rápido,
aparentemente determinado a apagar o que dissera. Uma luz estranha brilha nos
seus olhos, uma coisa que não consigo identificar. O que será?
—
Sou um soldado da República. Quando entrei para a carreira militar, fiz um
juramento de obedecer às ordens dos meus superiores a qualquer preço. Metias
fez o mesmo juramento, mas ele o rompeu.
Há
algo estranho na maneira pela qual ele se refere a Metias; é uma espécie de
emoção oculta que me desconcerta.
— O estado está falido — Respiro fundo. — E você é um
covarde por ter abandonado Metias à misericórdia dele.
Os
olhos de Thomas se contraem como se eu o tivesse apunhalado. Eu o examino mais
de perto, mas ele repara que o estou analisando, vira o rosto bruscamente de
lado, e esconde a cabeça nas mãos.
Penso
mais uma vez em meu irmão; desta vez cruzam pela minha mente os vários anos que
ele passou na companhia de Thomas. Metias conhecia Thomas desde que eram
garotos, muito antes de eu nascer. Sempre que seu pai, que era zelador do
prédio onde morávamos, levava Thomas para acompanhá-lo durante o trabalho,
Thomas e Metias brincavam por horas seguidas com videogamesmilitares,
e armas de brinquedo. Quando cresci, lembro as inúmeras conversas dos dois em
nossa sala de estar, e que estavam sempre juntos. Recordo que Thomas fez 1.365
pontos na Prova. Esse número era ótimo, levando em conta que ele era um menino
de um bairro pobre, mas médio para garotos do setor Ruby. Metias foi o primeiro
a perceber a vontade de Thomas em ser soldado. Ele passava tardes inteiras
ensinando a Thomas tudo o que sabia. Thomas jamais teria conseguido entrar na
Highland University do bairro Esmeralda sem a ajuda do meu irmão.
Minha
respiração fica superficial quando algo se encaixa no lugar. Recordo a maneira
pela qual o olhar fixo de Metias se concentrava em Thomas durante as sessões de
treinamento. Eu sempre pensei que era apenas a forma do meu irmão analisar a
postura e o desempenho de Thomas quanto à exatidão de suas respostas. Lembro
que Metias era paciente e gentil ao explicar as coisas a Thomas. O jeito com
que sua mão tocava o ombro de Thomas. A noite em que comi edame num
café com Thomas e Metias, quando Metias parou de trabalhar com Chian. O modo
como, volta e meia, a mão de Metias se apoiava no braço de Thomas por um instante
a mais do que o necessário. A conversa que tive com meu irmão quando ele ficou
tomando conta de mim no dia em que deveria tomar posse como militar. O jeito em
que ele riu e disse:
Eu não preciso de namorada. Tenho uma
irmãzinha de quem tomar conta. E era verdade. Ele havia namorado algumas
moças na faculdade, porém nunca por mais de uma semana, e sempre com educado
desinteresse.
Era
tão óbvio! Como eu não havia percebido nada antes?
É claro que
Metias jamais se abriria comigo sobre isso. Os relacionamentos entre oficiais e
subordinados são estritamente proibidos e punidos com rigidez. Foi Metias quem
recomendou que Thomas fizesse parte da patrulha da Comandante Jameson. Fez isso
pelo bem de Thomas, mesmo sabendo que isso impossibilitaria qualquer
envolvimento.
Tudo
isso passa por minha mente em questão de segundos.
—
Metias estava apaixonado por você — sussurro.
Thomas
não responde.
—
É então? E verdade? Você devia saber.
Thomas
continua calado. Apoia a cabeça entre as mãos e repete.
—
Eu fiz um juramento.
—
Espere aí. Não estou entendendo.
Encosto
na cadeira e respiro fundo. Meus pensamentos são agora uma mixórdia, um
turbilhão só. O silêncio de Thomas é mais revelador do que qualquer coisa que
ele já disse.
—
Metias amava você — digo devagar. Minha voz sai trêmula. — E fez tudo por você.
Mesmo assim, você o entregou. — Balanço a cabeça, incrédula. — Como pôde fazer
isso?
Thomas
ergue a cabeça e olha nos meus olhos.
—
Eu nunca o denunciei — um
flash de dor ilumina seu rosto.
Nós
nos olhamos durante muito tempo. Finalmente digo, com os dentes cerrados:
—
Então me conte o que aconteceu.
Thomas
olha para o nada:
—
Os administradores da segurança encontraram indícios que ele deixou para trás
quando pirateou uma brecha do sistema, no banco de dados dos civis mortos. Os
administradores contaram a história para mim em primeiro lugar, supondo que eu
passaria o recado para a Comandante Jameson. Eu não me cansava de alertar o
Metias sobre hacking. "Você corre riscos demais, vai acabar se dando mal.
Continue leal, continue fiel", mas ele nunca me deu ouvidos. "Aliás,
esse é um mal de família.
—
Quer dizer que você guardou o segredo dele?
Thomas
volta a apoiar a cabeça entre as mãos.
—
Primeiro eu o confrontei sobre o assunto, e ele admitiu que era verdade. Eu
prometi não contar a ninguém, mas, no fundo, eu queria. Nunca escondi coisa alguma da
Comandante Jameson. — Ele para por um instante. — Acontece que meu silêncio não
teria feito diferença. Os administradores da segurança decidiram enviar uma
mensagem diretamente à Comandante Jameson. Foi assim que ela descobriu, e aí me
encarregou de cuidar de Metias.
Escuto,
chocada, em silêncio. Thomas jamais quis matar Metias.
Tento
imaginar um cenário que eu possa tolerar.
Talvez
ele até tenha tentado persuadir a Comandante Jameson a designar a tarefa à
outra pessoa, mas se ela recusou, e ele decidiu levá-la a cabo de qualquer
maneira.
Eu
me pergunto se Metias chegou a tomar alguma atitude sobre a atração que sentia,
e se Thomas também fez o mesmo. Conhecendo Thomas, duvido. Será que ele também
amava Metias? Ele tentou me beijar depois da comemoração pela
captura de Day.
—
O baile de gala — reflito desta vez em voz alta. Não preciso falar mais nada
para que Thomas saiba do que estou falando. — Quando você tentou me...
Não
termino a frase. Thomas continua a olhar fixamente para o chão; sua expressão
oscila entre palidez e dor. Finalmente, ele passa uma das mãos no cabelo e
resmunga:
—
Eu me ajoelhei sobre Metias e o vi morrer. Minha mão estava naquela faca.
Ele...
Fico
em silêncio, atônita com suas palavras.
—
Ele me pediu para não machucar você — continua Thomas. — Suas últimas palavras
foram sobre você. Fiquei confuso. Na execução de Day, tentei inventar um modo
de impedir a Comandante Jameson de prender você. Mas você dificulta muito a vida
das pessoas que tentam protegê-la, June. Você infringe muitas normas. É
igualzinho a Metias. Naquela noite no baile, quando olhei para seu rosto... — a
voz dele se enfraquece. — Pensei que podia protegê-la, e que a melhor maneira
seria tentar manter você perto de mim, tentar conquistá-la. Fiquei confuso... —
ele repete, amargurado. — Mesmo para Metias, era difícil protegê-la. Que chance
tinha eu de mantê-la a salvo?
A noite da execução de Day. Será
que Thomas estava tentando me proteger quando me acompanhou até o porão para eu
ver onde ficava armazenada a bomba? E se a Comandante Jameson estivesse se
preparando para me prender, e Thomas tivesse tentado me ajudar antes? Para quê,
para ajudar a fugir? Não compreendo.
—
Pode ter certeza de que eu me importava com seu irmão — ele diz, enquanto
permaneço em silêncio. Ele finge uma bravata, um falso profissionalismo. Mesmo
assim, percebo tristeza em sua voz. — Mas sou também um soldado da República, e
fiz o que tinha de fazer.
Empurro
a mesa para o lado e me arremesso contra ele, apesar de estar acorrentada à
cadeira. Thomas pula para trás. Tropeço nas minhas limitações, caio de joelhos,
e então agarro a perna dele. Para conseguir não sei o quê. Você é doente, você é um
monstro. Tenho vontade de acabar com ele. Jamais
quis tanto uma coisa na minha vida inteira.
Não,
isso não é verdade. Quero Metias vivo de novo.
Os
guardas do lado de fora devem ter ouvido a perturbação porque entram em grupos,
e imediatamente sou imobilizada por vários soldados, presa com mais um par de
algemas e desamarrada da cadeira. Eles me arrastam pelos pés. Dou pontapés
furiosos, relacionando mentalmente todos os ataques que aprendi no colégio
militar, tentando me livrar como uma alucinada. Thomas está muito perto, a
apenas alguns metros.
Ele
simplesmente olha para mim, com as mãos balançando ao lado do corpo, e grita:
—
Foi a morte mais piedosa para ele!
Sinto
náuseas porque sei que ele está certo. Metias provavelmente teria sido
torturado até a morte se Thomas não o tivesse matado naquele beco.
Mas
isso não me importa: estou cega, sufocada pela raiva e pela confusão. Como ele
pode ter feito aquilo com alguém a quem amava? Como podia ser capaz de tentar
justificar isso? Qual é oproblema dele?
Depois
da morte de Metias, quando Thomas ficava sentado sozinho em casa, será que
alguma vez deixou cair a máscara? Será que alguma vez deixou de pensar como
soldado, e permitiu que o homem à paisana extravasasse a dor?
Sou
arrastada para fora da cela e pelo corredor. Minhas mãos tremem; luto para
firmar a respiração, acalmar o coração em disparada e guardar Metias a salvo
num cantinho da cabeça. Uma pequena parte de mim havia esperado que eu
estivesse errada sobre Thomas, que não havia sido ele que matara meu irmão.
Na
manhã seguinte, todos os traços de emoção já haviam desaparecido do rosto de
Thomas. Ele me diz que o tribunal de Denver tomou conhecimento do meu pedido a
respeito do Eleitor, e decidiu me transferir para a Penitenciária Estadual de
Colorado.
Estou
de partida para a capital.
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