Capítulo 8 - Day

Aterrissamos em Lamar, no Colorado, em uma manhã chuvosa, exatamente no horário programado. Razor parte, com seu esquadrão. Kaede e eu esperamos na escura escadaria na saída dos fundos da sala dele, até que os barulhos lá fora diminuam e a maioria da tripulação do dirigível já tenha desembarcado. Desta vez não há guardas escaneando impressões digitais nem verificando identidades, logo, podemos seguir os últimos soldados diretamente pela rampa de saída. Nós nos misturamos com as tropas que estão aqui para lutar pela República.
Rajadas de chuva gelada castigam a base ao sairmos para a plataforma piramidal, e entramos neste enorme lugar sem brilho. O céu está completamente coberto por nuvens negras de tempestade. Plataformas de aterrissagem se alinham ao lado da rua de cimento rachado, numa fileira agourenta de enormes pirâmides negras que se estendem em ambas as direções, lustrosas e reluzentes pela chuva.
O ar viciado tem cheiro molhado. Jipes lotados de soldados se movimentam para cima e para baixo, respingando lama e cascalho na calçada. Todos os soldados exibem uma larga faixa negra pintada em cima dos olhos, e que vai até as orelhas. Isso deve ser moda entre os combatentes. O resto da cidade se ergue à nossa frente: arranha-céus cinzentos que provavelmente servem de caserna para os soldados. Alguns são novos; têm laterais harmoniosas e vidraças coloridas, outros foram vandalizados e desmoronaram como se tivessem sofrido ataques constantes de granadas. Uns poucos não passam de cinzas e ruínas, alguns com apenas uma parede, apontando para cima como um monumento despedaçado. Não há prédios avarandados, nem áreas verdes pontilhadas com rebanhos de gado.
Nós nos apressamos pela rua, com nossas golas duras de jaquetas viradas para cima, numa tentativa patética de nos proteger da chuva.
- Este lugar foi bem bombardeado - resmungo para Kaede. Meus dentes batem a cada palavra.
Kaede abre a boca, com surpresa desdenhosa:
- Poxa, tu é mesmo um gênio, sabia?
- Não entendo. - Observo os edifícios desmoronados que pontilham o horizonte. - Por que parece que os edifícios foram atingidos por granadas? Os combates não estão acontecendo longe daqui?
Kaede se debruça até mim para que os demais soldados na rua não nos ouçam.
- As Colônias têm invadido esta parte da fronteira desde que eu tinha uns dezessete anos. Bem, de qualquer forma, isso faz tempo. Eles provavelmente se infiltraram por mais de mil e seiscentos quilômetros de onde a República afirma que fica a divisa com o Colorado.
Depois de tantos anos ouvindo a incessante propaganda da República, é chocante ouvir alguém me contar a verdade.
- Então você está me dizendo que as Colônias estão vencendo a guerra? - pergunto baixinho.
- Já faz tempo que elas estão vencendo. Você soube disso por mim em primeiro lugar. Daqui a uns anos, garoto, as Colônias vão estar no quintal da sua casa - ela está enojada. Talvez tenha um ressentimento eterno contra as Colônias. - Pense como quiser - resmunga. - Só tô aqui pelo dinheiro.
Fico em silêncio. As Colônias serão os novos Estados Unidos. Será possível que, após tantos anos de guerra, os combates cheguem ao fim? Tento imaginar um mundo sem a República, sem o Eleitor, as Provas, as pragas. E com as Colônias vencedoras.
Nossa, isso é bom demais para ser verdade! E com o possível assassinato do Eleitor, isso tudo pode se tornar verdade ainda mais cedo. Fico tentado a conversar ainda mais sobre o assunto, mas Kaede põe um dedo nos lábios, para que eu fique quieto antes de começar a falar, e acabamos caminhando em silêncio.
Viramos em uma esquina, muitas quadras depois, e seguimos uma fila dupla de trilhos de trem por uma distância que me pareceu ser de vários quilômetros. Finalmente, paramos quando alcançamos a esquina de uma rua distante dos quartéis, escurecida pelas sombras de prédios arruinados em toda a sua extensão. Soldados solitários perambulam pelo lugar. Kaede murmura quando espreita os trilhos:
- Fizeram uma pausa na luta. Já faz alguns dias, mas logo vai recomeçar o combate. Tu vai agradecer por estar com a gente; nenhum desses soldados da República terá o luxo de se esconder no subsolo quando as bombas começarem a explodir.
- Subsolo?
A atenção de Kaede se concentra num soldado caminhando diretamente para nós, num lado dos trilhos. Meus olhos piscam, úmidos, e tento enxergar o cara melhor. Ele se veste como nós, numa jaqueta de cadete encharcada, com uma ponta de tecido cobrindo parte dos botões e listras prateadas solitárias em cada ombro. A pele morena está lustrosa sob as camadas da chuva que não para, e os cachos curtos grudaram na cabeça. Sua respiração é exalada em nuvens brancas. Quando se aproxima, vejo que seus olhos são cinzentos e assustadoramente pálidos.
Ele passa sem olhar direito para nós e dirige um gesto sutil à Kaede: dois dedos da mão direita fazem um sinal de V, de vitória. Atravessamos os trilhos e continuamos a andar por muitos quarteirões.
Aqui os edifícios estão amontoados, e as ruas são tão estreitas que apenas duas pessoas cabem num beco por vez. Esta deve ter sido uma área onde antigamente viviam os civis. Várias janelas foram explodidas, e outras estão cobertas por panos em frangalhos. Vejo algumas sombras de pessoas dentro delas, iluminadas com velas bruxuleantes. Quem não for soldado nesta cidade, deve estar fazendo o que meu pai costumava fazer: cozinhando, limpando e cuidando das tropas. Papai também deve ter vivido na miséria, sempre que rumava para a frente de batalha nas suas missões militares.
Kaede me sacode do meu estado de letargia ao me puxar abruptamente para um dos becos escuros e estreitos.
- Anda rápido!
-Você sabe com quem está falando, não sabe?
Ela me ignora, ajoelha na beira de uma parede onde há uma grade de metal revestindo o piso e retira de lá, com seu braço bom, um minúsculo dispositivo preto. Ela o passa rapidamente numa beira da grade. Depois de um segundo, a grade se levanta do chão sustentada por duas dobradiças, e silenciosamente se abre, revelando um buraco negro. Percebo que ele foi projetado para parecer desgastado e sujo de propósito, mas este buraco foi modificado, e se transformou numa entrada secreta. Kaede se abaixa e salta para dentro da cavidade. Eu a sigo. Minhas botas se molham na água rasa, e a grade acima de nós desliza e se fecha de novo.
Kaede segura minha mão e me conduz por um túnel. O lugar tem um cheiro rançoso de pedra antiga, chuva e metal enferrujado. Água gelada goteja do teto e molha meu cabelo. Caminhamos apenas alguns metros antes de nos desviarmos acentuadamente para a direita, e então a escuridão nos engole por completo.
- Existiam quilômetros de túneis como este em quase toda a cidade que participava dos combates - Kaede sussurra em meio ao silêncio.
- Ah, é? E serviam pra quê?
- Dizem que todos esses velhos túneis eram usados por pessoas que moravam na costa leste americana e que queriam ir para o oeste, para fugir das inundações. Isso aconteceu mesmo antes da guerra ter começado. Cada um desses túneis passa direto debaixo das barricadas da zona de combate entre a República e as Colônias. - Kaede faz um movimento deslizante com as mãos, que mal consigo distinguir na escuridão. – Depois do início da guerra, os dois países começaram a usar os túneis ofensivamente, e por isso a República destruiu todas as entradas dentro das suas divisas, e as Colônias fizeram o mesmo na outra extremidade. Os Patriotas conseguiram escavar e reconstruir cinco túneis em segredo. Vamos usar este em Lamar - ela aponta para o teto que goteja - e um em Pierra, uma cidade próxima daqui.
Tento imaginar como deve ter sido antes, numa época em que não havia nem República nem Colônias, e um único país ocupava o centro da América do Norte.
- E ninguém sabe que esses túneis estão aqui?
Kaede ri com desdém.
- Você acha que nós estaríamos usando os túneis se a República tivesse conhecimento deles? Nem as Colônias sabem que eles existem, mas eles são muito úteis para as missões dos Patriotas.
- Quer dizer então que as Colônias financiam vocês?
Kaede dá um pequeno sorriso.
- Quem mais teria dinheiro suficiente para manter túneis como esses? Ainda não conheci nossos financiadores; é Razor que trata desses relacionamentos. O dinheiro continua entrando, o que quer dizer que eles devem estar satisfeitos com o trabalho que estamos fazendo.
Caminhamos por um tempo sem conversar. Meus olhos já se adaptaram à escuridão, e consigo ver crostas de ferrugem nas laterais do túnel. Fios d'água gotejantes desenham padrões nas paredes de metal.
Quebro o silêncio após alguns minutos.
- Você está contente por eles estarem vencendo a guerra? - Espero que ela esteja disposta a falar sobre as Colônias de novo. - Afinal, eles praticamente expulsaram vocês do seu país. Aliás, por que vocês saíram?
Kaede dá uma risada amarga. O som de nossas botas chapinhando na água ecoa no túnel.
- É, acho que estou contente. Qual é a alternativa? Ficar observando a República vencer? Diga o que é melhor. Mas tu cresceu na República. Nem imagino o que deve pensar das Colônias... Deve achar que é um paraíso.
- E poderia ser diferente? - indago. - Meu pai costumava me contar
histórias sobre as Colônias. Ele me disse que havia cidades completamente iluminadas por eletricidade.
- Seu pai trabalhava para algum movimento de resistência?
- Não sei bem. Ele nunca me confirmou isso, mas todos nós suspeitávamos que ele devia fazer alguma coisa sem a República saber. Quando voltava das missões, meu pai trazia umas quinquilharias relacionadas aos Estados Unidos. Eram coisas esquisitas para uma pessoa normal ter. Ele falava que um dia nos levaria para fora da República. - Fico em silêncio, perdido numa antiga lembrança. Meu pingente pesa no pescoço. - Acho que nunca vou mesmo saber qual era a dele.
Kaede faz um sinal afirmativo com a cabeça.
- Bem, eu cresci num dos litorais a leste nas Colônias, à beira do Atlântico Sul. Há anos que não vou lá; estou certa de que a água atingiu o interior do país pelo menos mais uns três metros e meio. De qualquer maneira, fui aprovada para uma das Academias de Dirigíveis, e me tornei um dos principais pilotos na área de treinamento.
Se as Colônias não têm as Provas, eu me pergunto como escolhiam quem entraria nas academias.
- E daí, o que aconteceu?
- Matei um cara - Kaede responde. Ela diz isso como se fosse a coisa mais natural do mundo. Na escuridão, ela se aproxima de mim e examina, atrevida, meu rosto. - Que é que foi? Ei, não me faça essa cara. Foi um acidente. Ele tinha tanta inveja porque nossos comandantes de vôo me adoravam, que tentou me empurrar pela borda do nosso dirigível. Nessa luta corpo a corpo, lesionei seriamente um dos olhos. Mais tarde eu o encontrei no vestiário e acabei com o fulano. - Ela emite um som de pesar. - Acontece que bati com força demais na cabeça dele, e ele não voltou mais a si. Meu financiador me rejeitou depois que esse pequeno incidente manchou minha reputação com a corporação, e não porque eu matei um sujeito. Quem quer uma funcionária - um piloto de combate - que não enxerga direito, mesmo depois de operada? - Ela para de andar e aponta para o olho direito. - Virei mercadoria danificada, e minha cotação despencou. Minha academia me expulsou depois que o financiador pulou fora. Sinceramente, foi uma sacanagem. Deixei de me formar quando estava no último ano de treinamento por causa daquele desgraçado.
Não compreendo alguns termos que Kaede usou: corporação, funcionária - mas resolvo perguntar isso tudo uma outra vez. Estou certo de que pouco a pouco vou conseguir extrair dela mais informações sobre as Colônias. Por enquanto, continuo a querer saber mais sobre o pessoal para quem estou trabalhando.
- Foi então que você se juntou aos Patriotas?
Ela faz um gesto indiferente com uma das mãos e estende o braço à sua frente. Noto mais uma vez que Kaede é muito alta; seus ombros estão na altura dos meus.
- O fato é que Razor me paga. Às vezes consigo até voar, mas continuo com eles pelo dinheiro, garoto, e enquanto estiver recebendo minha grana, farei o possível para ajudar os estados a se unirem de novo. Se isso causar o desmoronamento da República, que seja. Se isso resultar na tomada de controle pelas malditas Colônias, que seja. Vamos acabar com essa guerra e fazer com que os Estados Unidos voltem a ser o que eram. E que as pessoas levem uma vida normal de novo. É com isso que me importo.
Não posso evitar achar isso divertido. Apesar de Kaede tentar parecer indiferente, dá pra ver que sente orgulho em ser uma Patriota.
- Bem, a Tess parece gostar muito de você, o que me faz concluir que você deve ser legal.
Kaede dá uma risada convicta.
- Ela é mesmo um doce. Fico feliz por não ter matado aquela garota naquela luta de Skiz. Você vai ver que não existe um único Patriota que não goste dela. Não se esqueça de demonstrar seu amor à sua amiguinha de vez em quando, tá? Sei que você tem tesão pela June, mas Tess está paradinha na tua, caso tu ainda não tenha percebido...
Isso faz com que meu sorriso desapareça gradualmente.
- Acho que nunca pensei nela desse jeito - murmuro.
- Com o passado que ela tem, merece ser amada, não concorda?
Estendo a mão e impeço Kaede de continuar.
- Ela lhe contou seu passado?
Kaede me olha de relance e pergunta, atônita:
- Ela nunca lhe contou a história dela?
- Jamais consegui que me contasse. Ela sempre desviava do assunto, e epois de um tempo, eu simplesmente desisti de tentar.
- Ela não deve querer que você tenha pena dela. Ela era a mais nova de cinco filhos. Acho que na época estava com nove anos. Os pais não podiam alimentar todos os irmãos, e uma noite deixaram a pobrezinha fora de casa e nunca mais deixaram ela entrar. Ela disse que bateu na porta durante dias.
Não posso dizer que estou surpreso. A República é tão lerda quando se trata de cuidar dos órfãos sem-teto, que nenhum de nós nunca teve uma segunda oportunidade. O amor da minha família era tudo ao que eu podia me agarrar nos primeiros anos que passei na rua. Aparentemente, a Tess não teve nem isso. Não é de admirar que fosse tão carente quando nos conhecemos. Eu devia ser a única pessoa no mundo que se importava de verdade com ela.
- Eu não sabia - sussurro.
- Bem, agora já sabe - Kaede replica. - Fique com ela; vocês dois combinam, viu? - Ela reprime uma risadinha. - Ambos são nauseantemente otimistas. Jamais conheci uma dupla tão alto-astral de farsantes vindos de favelas.
Não respondo. Ela está certa, obviamente. Nunca pensei no assunto; mas Tess e eu formamos mesmo uma boa dupla. Ela compreende muito bem de onde eu vim. Ela pode me animar nos meus piores dias. Ela age como se tivesse vindo de um lar perfeitamente feliz, ao invés daquele sobre o qual a Kaede acabou de me contar. Sinto um afeto reconfortante, percebendo de repente que estou ansioso para reencontrar Tess. Aonde ela vai, eu vou, e vice-versa. Somos unha e carne.
Mas, e a June?
A simples lembrança do seu nome me faz respirar com dificuldade. Fico quase constrangido com minha reação. June e eu somos uma boa dupla?
"Não" é a primeira palavra que me vem à cabeça.
Mesmo assim...
Nossa conversa perde a força. Às vezes olho de relance por cima do ombro, meio que esperando ver uma centelha de luz, meio que esperando não ver. A ausência de luz quer dizer que o túnel não se estende direto sob todas as grades da cidade, visível aos passantes.
Sinto que o piso é inclinado. Estamos descendo cada vez mais. Eu me obrigo a respirar de maneira uniforme à medida que as paredes se estreitam, e me sinto encurralado. Maldito túnel! Eu daria tudo para estar de novo ao ar livre.
Demora muito, mas finalmente Kaede para. O eco de nossas botas na água soa de modo diferente agora - acho que paramos em frente a uma estrutura sólida de algum tipo. Talvez seja uma parede.
- Perto da parte traseira desta casamata o túnel continua, e vai dar nas Colônias.
Kaede tenta abrir a porta com uma pequena alavanca de um lado, mas quando isso não dá certo, ela bate na porta suavemente com as juntas dos dedos, numa seqüência de dez ou onze batidinhas, e grita:
- Foguete!
Esperamos, trêmulos.
Nada acontece. Então, um pequeno e escuro retângulo na parede desliza e se abre, e um par de olhos castanho-amarelados pisca para nós.
- Oi, Kaede! O dirigível chegou na hora exata, não é? - diz a garota atrás da parede, antes de estreitar os olhos para mim. - Quem é seu amigo?
- É o Day - responde Kaede. — Agora para com esse papo-furado e me deixa entrar. Estou congelando.
- Tudo bem, tudo bem. Eu estava só verificando.
Seus olhos me examinam de alto a baixo. Fico surpreso que ela consiga ver muita coisa nesta escuridão. Finalmente, o pequeno retângulo desliza e se fecha. Ouço alguns bipes e outra voz. A parede desliza e se abre, revelando um corredor estreito, com uma porta na outra extremidade. Antes que um de nós consiga se mexer, três pessoas dão um passo à frente saindo do lado de trás da parede, e apontam armas para nossas cabeças.
- Entrem - uma delas nos ordena, asperamente: é a moça que acabou de abrir o olho-mágico. Fazemos o que ela manda. A parede se fecha atrás de nós. - Qual é o código desta semana? - acrescenta em voz alta.
- Alexander Hamilton - Kaede responde impaciente.
Agora as três armas apontam para mim, e não para Kaede.
- Você é o Day, é? - A garota faz uma bola com o chiclete que está mastigando. - Tem certeza?
Levo um minuto para perceber que sua segunda pergunta foi dirigida à Kaede, e não a mim. Kaede suspira, exasperada, e dá um tapa no braço da menina.
- É ele mesmo. Agora, para de encher o saco!
As armas são baixadas. Dou um suspiro que nem sabia que estava retendo. A garota que nos deixou entrar gesticula para que a acompanhemos até a segunda porta, e quando chegamos lá, ela aciona um pequeno dispositivo, no lado esquerdo da porta, semelhante ao usado por Kaede. Ouvem-se mais alguns bipes.
- Entrem - ela faz um movimento com a cabeça na minha direção e ameaça - Se fizer algum movimento brusco, atiro antes que você possa piscar.
A segunda porta desliza e se abre. Um ar quente cai sobre nós quando entramos numa grande sala cheia de gente agitada ao redor de mesas e monitores embutidos na parede. Luzes elétricas pendem do teto; um odor leve, mas bem definido de mofo e ferrugem paira sobre nós. Deve haver vinte ou trinta pessoas ali e ainda assim há espaço para mais.
Uma grande projeção de uma insígnia decora a parede traseira do recinto, e eu imediatamente a reconheço como uma versão mais simples da bandeira oficial dos Patriotas: tem uma grande estrela de prata, com três tiras prateadas em formato de V. Reparo que foi bem inteligente projetá-la dessa forma, pois assim podem apanhá-la e movimentar-se rapidamente, se necessário.
Alguns monitores exibem os horários dos dirigíveis que eu já havia visto a bordo do Dynasty. Outros mostram imagens de segurança captadas nos alojamentos dos oficiais ou fotos ampliadas das ruas da cidade de Lamar, ou vídeos da cabine de controle dos dirigíveis sobrevoando a zona de combate. Um deles exibe até uma curta seqüência de propaganda para elevar o moral dos Patriotas, que me lembra muito os anúncios da República.
São frases como TRAGAM OS ESTADOS UNIDOS DE VOLTA; A TERRA DA LIBERDADE e SOMOS TODOS AMERICANOS. Outros vídeos transmitem imagens da América continental abarrotada de pontos multicoloridos, e dois deles apresentam mapas-múndi.
Contemplo, espantado, esses últimos. Nunca tinha visto um mapa-múndi antes. Nem sei se existe um deles na República, mas nesses vejo os oceanos ao redor da América do Norte, os territórios recortados em forma de ilhas que compõem a América do Sul, um minúsculo território chamado Ilhas Britânicas, gigantescas massas de terras chamadas África e Antártida, a China (com uma porção de pequeninos pontos vermelhos espalhados bem no oceano ao redor dos limites de seu território).
Esse é o mundo real, não o mundo que a República mostra aos civis.
Todos no recinto me observam. Dou as costas para o mapa e espero que Kaede diga alguma coisa. Ela apenas dá de ombros e me dá uma pancadinha nas costas. Minha jaqueta molhada faz um som borbulhante.
- Este é o Day.
Todos esperam em silêncio, embora eu possa ver pelo brilho de seus olhos que sabem quem sou. Aí alguém assobia com dois dedos na boca. Isso quebra a tensão: há um coro de risadinhas abafadas e depois a maioria das pessoas volta a fazer o que estava fazendo antes.
Kaede me orienta em meio à confusão de mesas. Algumas pessoas estão reunidas ao redor de um diagrama; outro grupo está abrindo caixas; certas pessoas estão apenas descansando, assistindo à reprise de uma novela da República. Dois Patriotas sentados em frente a um monitor no canto estão se desafiando num uideogame, acelerando uma espécie de criatura azul na tela, ao agitar as mãos na frente dela. Até isso deve ter sido personalizado pelos Patriotas, porque todos os objetos do jogo são azuis e vermelhos.
Um garoto abafa um risinho quando passo. Ele exibe uma mecha de cabelo louro tingido num penteado moicano. A pele é morena, e ombros largos ligeiramente curvados, como se ele estivesse permanentemente pronto para entrar num ringue. Falta um pedaço da sua orelha. Percebo que é a mesma pessoa que assobiou antes.
- Então você é o cara que deu o fora na Tess, não é? - Ele tem uma arrogância que me irrita. Olha pra mim com desprezo. - Não entendo por que uma garota como ela anda com um vigarista que nem você. Algumas noites nas prisões da República acabaram com todo o seu fôlego?
Dou um passo em direção a ele, rio com vontade, e digo:
- Com todo o respeito, não vejo a República pendurando cartazes de "procura-se" com a sua linda carinha...
- Vamos parar com isso! - Kaede se interpõe entre mim e o garoto, e força um dedo no peito dele. - Baxter, você não devia estar se preparando para a corrida de amanhã à noite?
O garoto dá um grunhido para mim e se vira para ir embora.
- Eu só queria entender por que a gente está confiando numa queridinha da República - resmunga.
Kaede me dá um tapinha no ombro e continua a andar.
- Não se importe com esse imbecil - ela me diz. - Baxter não gosta muito da sua querida June. Ele pode te dar muita dor de cabeça, por isso é melhor não provocar, tá bem? Você vai precisar trabalhar com ele. Ele também é um corredor.
- Tá de brincadeira?
Eu não pensei que um cara tão musculoso assim pudesse ser um corredor veloz. Pensando melhor, a força dele provavelmente faz o cara alcançar lugares que eu não consigo.
- Pois é. E você jogou ele pra escanteio na hierarquia dos corredores - Kaede dá um sorriso afetado. - E uma vez você estragou geral uma missão dos Patriotas em que ele participava. Você nem se deu conta disso.
- Foi mesmo? E que missão foi essa?
- O bombardeio do carro do Administrador Chian, em Los Angeles.
Caramba! Faz um tempão que enfrentei o Chian. Eu não tinha noção de que os Patriotas tinham planejado um ataque ao mesmo tempo.
- Que tragédia - comento, procurando os rostos na sala depois que Baxter mencionou a Tess.
- Se você está procurando a Tess, ela chegou antes de nós aqui, e está com os outros médicos. - Kaede faz um gesto para o fundo do recinto, onde várias portas se estendem pelas paredes. - Ela deve estar na ala médica observando alguém costurando alguém. Tess aprende rápido. - Kaede me conduz entre as mesas e os outros Patriotas, e então para à frente do mapa múndi.
- Aposto que você nunca viu nada parecido.
- Não mesmo.
Analiso as massas de terras, ainda atônito com a idéia de que muitas sociedades estejam funcionando além das fronteiras da República. No ensino elementar a gente aprendeu que os lugares do mundo não controlados pela República são apenas nações se esfacelando, lutando para não desaparecer.
Será que tantos países assim estão lutando para sobreviver? Ou será que estão indo bem, e talvez até prosperando?
- Para que vocês precisam de mapas assim?
- Nosso movimento tem originado movimentos semelhantes no mundo inteiro - Kaede replica, cruzando os braços. - Em todos os países em que o povo tá possesso com o governo. Os mapas na parede elevam nosso moral.
- Quando ela vê que continuo a analisar o mapa com a testa franzida, passa rapidamente a mão no centro da região da América do Norte. - Aí está a República que todos nós conhecemos e amamos. E aqui estão as Colônias.
- Ela aponta para uma extensão menor e mais dividida de terra, que partilha a borda leste da República. Examino os círculos vermelhos que indicam cidades nas Colônias: a cidade de Nova York, Charleston, St. Louis, Nashville.
Será que elas brilham como meu pai afirmou?
Kaede continua a falar, passando a mão para o norte e para o sul.
- O Canadá e o México mantêm uma rígida zona desmilitarizada entre si, e entre as Repúblicas e as Colônias. O México tem seu próprio grupo de Patriotas. Aqui está o que restou da América do Sul. Isso costumava ser também um enorme continente, tá vendo? Agora tem o Brasil - ela aponta para uma enorme ilha triangular muito distante do sul da República —, o Chile e a Argentina.
Kaede animadamente salienta como estão os continentes e o que costumavam ser. O que vejo como Noruega, França, Espanha e as Ilhas Britânicas faziam parte de um lugar maior chamado Europa. Ela diz que os demais povos europeus fugiram para a África. A Mongólia e a Rússia não são nações extintas, ao contrário do que nos ensinou a República. A Austrália costumava ser uma sólida massa de terra. Vêm então as superpotências.
As enormes metrópoles flutuantes da China que são inteiramente construídas sobre a água, e seus céus são permanentemente negros.
- São as Hai Cheng - ensina Kaede. - Cidades marítimas.
Aprendo que a África nem sempre foi o continente próspero e tecnicamente avançado que é hoje, gradativamente se enchendo de universidades, arranha-céus e refugiados internacionais. E a Antártida, acredite se quiser, já foi desabitada, e completamente coberta de gelo. Hoje em dia, como a China e a África, ela abriga as capitais de tecnologia do mundo, e atrai um volume razoável de turistas.
- A República e as Colônias têm um nível tecnológico deplorável. Gostaria de visitar a Antártida um dia. Dizem que é deslumbrante.
Ela conta que os Estados Unidos já foram uma dessas superpotências.
- Mas aí veio a guerra - Kaede acrescenta e todos os principais pensadores daqui literalmente fugiram para lugares tecnicamente superiores. Foi a Antártida que causou as inundações. As coisas já estavam indo mal, e aí o Sol endoidou de vez e derreteu todo o gelo da Antártida. Foi uma inundação que nem você nem eu podemos sequer imaginar. Milhões de pessoas morreram devido às mudanças de temperatura. Isso deve ter sido realmente inesquecível, não? O sol acabou voltando ao normal, mas isso não aconteceu com o clima. Não deu certo misturar água doce com água do mar, e desde então o mundo é o que a gente vê agora.
- A República nunca fala sobre nada disso.
Kaede revira os olhos.
- Ah, claro que não! Trata-se da República. Por que eles falariam?
Ela aponta para um pequeno monitor no canto, que parece estar transmitindo notícias de jornal.
- Tu quer ver como é a República do ponto de vista de um estrangeiro? Chega mais.
Quanto mais presto atenção às manchetes, mais me dou conta de que a voz do locutor está numa linguagem que não consigo compreender.
- É antarticano - Kaede me explica, quando olho confuso pra ela. – Estamos nos inserindo num dos canais deles. Leia as legendas.
Ateia mostra uma vista aérea de um continente, com a frase REPÚBLICA
DA AMÉRICA pairando sobre a tela. Uma voz de mulher narra, e bem na parte debaixo da tela há um texto rolante com a tradução: "... encontrar novas maneiras de negociar com esse estado canalha altamente militarizado, especialmente agora que o poder passou para as mãos de um novo Eleitor da República. O presidente africano Ntombi Ofeonjo propôs hoje às Nações Unidas que cesse a ajuda para a República, até haver provas suficientes de um tratado de paz entre o país isolacionista e seu vizinho do leste..."
Isolacionista. Militarizado. Canalha. Olho fixamente para as palavras. Para mim, a República havia sido retratada como a síntese de poder, uma máquina militar implacável e incontrolável. Kaede ri abertamente da expressão do meu rosto, quando finalmente nos afastamos dos monitores.
- De repente a República não parece mais tão poderosa, né? E sim um insignificante estado sigiloso, humilhando-se para obter ajuda internacional. Tô te falando, Day, basta que uma geração faça uma lavagem cerebral num povo para convencer as pessoas de que a realidade não existe.
Vamos até uma mesa com dois pequenos computadores em cima. O rapaz que está de pé diante sobre um deles é o mesmo sujeito que fez um sinal de V para Kaede nos trilhos do trem, o de pele morena e olhos claros. Kaede lhe dá um tapinha no ombro, ao qual ele não reage de imediato. Em vez disso, digita algumas linhas rapidamente na tela, e se senta numa cadeira à mesa.
Admiro a elegância com que faz isso. Está na cara que é um corredor. Ele cruza os braços e espera, paciente, que Kaede nos apresente.
- Day, esse é o Pascao. Ele é o líder dos nossos corredores, e estava louco pra te conhecer, pra dizer o mínimo.
Pascao estende a mão para mim. Os olhos desbotados se concentram intensamente nos meus e ele me dá um sorriso reluzente, com dentes muito brancos.
- É um prazer - ele diz animado, e quase sem respirar. Seu rosto fica levemente vermelho quando retribuo o sorriso. - Nem preciso dizer que todos nós já ouvimos falar muito sobre você. Eu sou seu maior fã, de verdade.
Acho que ninguém jamais flertou tão descaradamente comigo, exceto talvez um garoto de quem me lembro, do bairro Blueridge.
- É legal conhecer outro corredor - respondo, apertando-lhe a mão. - Tenho certeza de que vou aprender uns truques com você.
Ele me dá um sorriso largo e malicioso ao perceber como estou perturbado.
- Ah, você vai gostar do que vem por aí. Pode acreditar. Não vai se arrepender de ter se juntado a nós; vamos pôr em marcha uma nova era para a América. A República nem vai entender o que a atropelou - ele começa uma série de gestos animados, primeiro abrindo bem os braços e depois fingindo desamarrar laços no ar. - Nossos hackers passaram as últimas semanas reinstalando cuidadosamente a fiação na Capitol Tower, de Denver. Agora, tudo que a gente precisa fazer é torcer um fio em qualquer dos alto-falantes do edifício e pronto! Vamos poder transmitir para a República inteirinha! - Ele bate palmas, estala os dedos. - Todo mundo vai escutar. Revolucionário, não acha?
O plano pareceu uma versão mais sofisticada do que fiz no beco do lugar-dos-dez-segundos. Foi quando vi June pela primeira vez numa tentativa de obter remédios para curar Éden da praga, quando refiz de forma tosca a fiação dos alto-falantes do beco. Mas me perguntei se seria possível refazer a fiação dos alto-falantes do edifício de uma capital para transmitir
para toda a República.
- Parece divertido. O que a gente vai transmitir?
Surpreso, Pascao pisca para mim.
- O assassinato do Eleitor, é claro.
Seus olhos se fixam rapidamente em Kaede, que concorda com a cabeça, e ele então tira do bolso um pequeno dispositivo retangular e o abre.
- Nós vamos precisar gravar todas as provas e todos os detalhes para quando ele for arrastado do carro oficial e a gente meter umas balas nele.
Nossos hackers estarão prontos na Capital Tower, onde já montaram telões para transmitir o assassinato. Vamos proclamar nossa vitória para a República inteira pelo alto-falante. E eles que tentem nos impedir!
A selvageria do ataque me causa calafrios na espinha. A brutalidade me lembra da maneira em que a República filmou e transmitiu a morte de John - a minha morte - para todo o país.
Pascao se aproxima de mim, põe a mão em concha na minha orelha e sussurra:
- E essa nem é nem a melhor parte, Day.
Ele se afasta um instante suficiente para dar mais uma grande e esfuziante gargalhada.
- Quer saber qual é a melhor parte?
- Quero - pergunto sem muita certeza de que quero saber a resposta.
Pascao cruza os braços, satisfeito.
- Razor acha que você é quem deve atirar no Eleitor!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trono de Vidro

Os Instrumentos Mortais

Trono de Vidro