Capítulo 10 - Beth

Talvez o tivesse julgado mal. Pelo menos em relação ao trabalho. Nas últimas três semanas, Logan Thibault tinha sido o empregado perfeito. Mais que perfeito até. Não tinha faltado uma vez sequer, e ainda chegava cedo para alimentar os cães — algo que Nana sempre fazia antes do acidente — e saía mais tarde, após varrer o chão do escritório. Uma vez, até o viu usando limpa-vidros para limpar as janelas do escritório. Os canis estavam mais limpos do que nunca, a grama do campo de treinamento estava aparada e, sempre que podia, ele procurava organizar os arquivos do escritório na parte da tarde. Beth sentiu-se meio culpada ao entregar-lhe seu primeiro pagamento. Ela sabia que o salário mal dava para viver. Mas, quando entregou o cheque a ele, o que ele fez foi sorrir e dizer: "Obrigado! Que bom!"
Tudo o que conseguiu responder foi um tímido: "De nada."
Além desse dia, quase nunca se viam. As aulas já haviam começado há três semanas e Beth ainda estava tentando pegar o ritmo da escola novamente, o que a levava a ficar muitas horas confinada em seu pequeno escritório em casa, atualizando planos de aula e corrigindo lições de casa. Por outro lado, Ben, assim que chegava em casa, pulava do carro para ir brincar cor Zeus. Observando pela janela, ele parecia considerar o cachorro o seu novo melhor amigo, e o cão parecia sentir o mesmo por ele. Assim que o carro apontava no caminho de entrada da casa, o cachorro começava a procurar um pau, e vinha logo cumprimentar Ben assim que a porta do carro se abria. Ben saía do carro e Beth, subindo os degraus da varanda, já conseguia ouvir o filho rindo enquanto ele e o cão corriam pele gramado. Logan — o nome parecia combinar mais com ele do que Thibault, apesar do que havia dito no riacho — também os observava, com um leve sorriso no rosto, voltando em seguida para suas atividades.
Apesar do que sua intuição lhe dizia, gostava do sorriso dele, da forma como se dava bem com Nana e com Ben. Sabia que às vezes a guerra conseguia afetar a mente dos soldados, fazendo com que sua adaptação à vida civil fosse mais difícil, mas ele não aparentava ter síndrome de estresse pós-traumático. Parecia praticamente normal — fora o fato de ter atravessado o país a pé —, o que poderia ser uma indicação de que talvez ele nunca tivesse saído do país a trabalho. Nana havia jurado que não tinha perguntado isso a ele ainda. O que era bem estranho, em se tratando de Nana, mas isso era uma outra história. O importante é que ele parecia estar se adaptando ao pequeno negócio de família melhor do que o esperado. Há alguns dias, assim que Logan terminou seu horário de trabalho, ouviu Ben sair correndo em direção ao seu quarto, voltando para fora logo em seguida. Olhando pela janela, percebeu que tinha ido buscar a bola de beisebol em seu quarto para jogar com Logan no gramado. Ela os observou lançarem a bola um para outro, com Zeus dando o melhor de si para pegar todas as bolas perdidas primeiro que Ben.
Ah! Se seu ex pudesse ver como Ben irradiara alegria quando podia jogar sem ser criticado ou pressionado.
Ela não estava surpresa com o fato de Nana e Logan estarem se dando bem, mas a frequência com que ela falava dele à noite e a forma animada com que comentava algo sobre ele a surpreendiam. "Você ia gostar dele", ou então, "Será que ele conheceu Drake?", era a sua maneira de dizer que Beth deveria fazer um esforço maior para se aproximar dele.
Nana até deu permissão para que ele começasse a treinar os cães, algo que nunca havia dado a empregado algum. Sempre que podia, mencionava alguma coisa interessante sobre ele — que ele havia dormido ao lado de uma família de tatus no norte do Texas, por exemplo, ou que uma vez havia sonhado em trabalhar para o Projeto de Pesquisa Koobi Fora, no Quênia, investigando a origem do homem. Quando comentava sobre esses assuntos, não havia como negar sua fascinação por Logan e seus projetos.
O melhor de tudo era que a situação do canil estava começando a se acalmar. Depois de um longo e agitado verão, seus dias estavam entrando em um certo ritmo, o que explicava por que Beth olhava Nana com apreensão enquanto ouvia suas novidades durante o jantar.
— Como assim você vai visitar sua irmã?
Nana colocou um pouco de manteiga na tigela de camarões com aveia que estava a sua frente.
— Não visito minha irmã desde o acidente, e quero saber como ela está. Ela é mais velha que eu, como você sabe. E como você está trabalhando e Ben está na escola, acho que é a melhor época para eu ir.
— E quem vai cuidar do canil?
— Thibault. Ele já domina tudo por aqui, até o treinamento. Disse que não haveria problema algum em trabalhar um pouco a mais. E se ofereceu para me levar até Greensboro, assim você não tem de se preocupar com isso. Já está tudo arranjado. Ele até disse que vai organizar todos os arquivos para mim — pegou um camarão e o mastigou com prazer.
— Ele sabe dirigir?
— Disse que sim.
— Mas não tem carteira de motorista.
— Ele disse que vai ao Departamento de Trânsito tirar uma. Por isso saiu mais cedo hoje. Liguei para o Frank e ele disse que poderia ajudá-lo com o exame hoje mesmo.
— Ele nem tem carro...
— Vai com o meu caminhão.
— Como ele foi até lá?
— Dirigindo.
— Mas ele está sem habilitação!
— Pensei que já tinha explicado — Nana lançou-Ihe um olhar como se subitamente achasse que ela tivesse problemas mentais.
— E o coral? Você acabou de voltar!
— Não tem problema. Já avisei a diretora musical que vou passar uns dias com a minha irmã e ela disse que tudo bem. Na verdade, ela achou uma ótima idéia. É claro que faço parte do coral há bem mais tempo que ela, portanto ela nem poderia mesmo falar não.
Beth balançou a cabeça, tentando não mudar o rumo da conversa.
— Desde quando você vem planejando tudo isso? Essa visita, quero dizer.
Nana comeu mais um camarão e fingiu pensar sobre a pergunta.
— Desde quando ela me telefonou convidando, é claro.
— Quando ela te telefonou? — Beth pressionou.
— Hoje de manhã.
— Hoje de manhã? — pelo canto do olho, Beth notou Ben prestando atenção nas duas como se fosse um espectador durante uma partida de tênis. Lançou-Ihe um olhar de repreensão antes de se voltar para Nana. — Tem certeza de que é uma boa idéia?
— É mamão com açúcar — disse, dando a entender que queria dar o assunto por encerrado.
— O que você quer dizer com isso?
— Quero dizer que vou visitar minha irmã. Ela está chateada e precisa de mim. Ela pediu que eu vá e eu disse que sim. Muito simples.
— E vai ficar quanto tempo? — perguntou Beth, tentando controlar o pânico que crescia em seu interior.
— Acho que uma semana.
— Uma semana?
Nana olhou para Ben.
— Acho que sua mãe está precisando limpar os ouvidos, ela fica repetindo tudo o que eu falo como se não estivesse me ouvindo.
Ben sorriu e enfiou outro camarão na boca. Beth ficou encarando os dois. Pensou que, às vezes, jantar com os dois não era tão diferente do que ficar na lanchonete da escola ao lado dos seus alunos do segundo ano.
— E os seus remédios?
Nana colocou mais camarões com aveia na tigela.
— Vou levar. Tomarei meus comprimidos lá da mesma maneira que os tomo aqui.
— E se acontecer alguma coisa com você?
— Provavelmente, estarei bem melhor lá, não é mesmo?
— Como você diz uma coisa dessas?
— Agora que as aulas começaram, você e Ben ficam fora a maior parte do tempo e eu fico aqui sozinha. Thibault não tem como saber caso alguma coisa aconteça comigo. Mas, em Greensboro, minha irmã estará comigo. E, acredite se quiser, ela tem até televisão. Parou de se comunicar por meio de sinais de fumaça no ano passado.
Ben riu novamente, mas sabia que era melhor não dizer nada. Em vez disso, ficou rindo da sua própria tigela.
— Mas você não sai do canil desde que o vovô morreu...
— Por isso mesmo — Nana cortou a conversa.
— Mas...
Nana pegou a mão de Beth e fez um carinho.
— Eu sei que você está preocupada por não ter a minha mente brilhante a lhe fazer companhia por uma semana, mas isso lhe dará uma chance de se aproximar de Thibault. Ele virá neste fim de semana também, para ajudar você com as tarefas do canil.
— Neste final de semana? Quando você vai?
— Amanhã.
Beth soltou um grito.
— Amanhã?
Nana piscou para Ben.
— Viu o que disse? Precisa limpar o ouvido!
Depois de lavar a louça, Beth foi para a varanda da frente passar alguns minutos sozinha. Sabia que Nana já tinha tomado sua decisão e que sua preocupação era exagerada. Acidente vascular ou não, Nana sabia cuidar de si mesma, e a tia Mimi ia adorar passar um tempo com ela. Atualmente, tia Mimi tinha dificuldades até para ir à cozinha e talvez essa fosse a última chance de Nana passar uma semana com ela Mas o que a deixou preocupada foi o tipo de conversa que tiveram, não a viagem em si. O pequeno combate verbal travado durante o jantar dava sinais de que dali para frente, Beth passaria a desempenhar um novo papel — um papel para o qual não se sentia totalmente preparada. Ser a mãe de Ben era fácil, seu papel e suas responsabilidades eram bem definidos Mas fazer a mesma coisa com Nana? Nana sempre foi tão cheia de vida, tão cheia de energia, que pensou ser inconcebível a idéia de Nana um dia vir diminuir o ritmo. E ela estava indo bem, muito bem de fato, mesmo após o acidente. Mas como seria se Nana resolvesse fazer algo que Beth considerasse altamente contrário aos interesses de Nana? Algo simples... como, dirigir à noite, por exemplo? Nana já não enxergava tão bem quanto antes, e como ela ia reagir quando Nana insistisse em ir de carro até a venda depois do trabalho?
Sabia que ia lidar com essas situações quando chegasse a hora, mas isso a deixava temerosa. Já tinha do bem difícil controlar Nana durante todo o verão, e mesmo com os problemas físicos de Nana sendo aparentes até mesmo para ela. Como seria quando sana se recusasse a admiti-los? Seus pensamentos foram interrompidos ao avistar o caminhão de Nana vindo lentamente em direção à casa, parando perto da entrada dos fundos do canil. Logan saiu e foi até a caçamba. Ela o observou colocar no ombro um saco de 25 quilos de comida para cachorro e entrar no canil. Quando voltou, Zeus estava a sua espera, cheirando sua mão. Beth imaginou que ele devia ter deixado o cão no escritório para poder ir até a cidade. Levou mais alguns minutos para terminar de descaarregar o carro e, quando terminou, foi em direção à casa. A noite já começava a cair. Dava para ouvir o som abafado de trovões ao longe, e Beth percebeu que os grilos davam início à canção que anunciava a noite. Suspeitava de que a tempestade não chegasse até lá, pois, com exceção de algumas chuvas esparsas, aquele tinha sido um verão bem seco. Mas o ar vindo do oceano trazia um aroma de madeira e sal, o que trouxe à tona lembranças antigas da praia. Lembrava-se doss caranguejos-aranha fugindo das luzes das lanterna que ela, Drake e vovô seguravam; o rosto de sua mãe iluminado pelo brilho da pequena fogueira que pai havia preparado; os marshmallows de Nana pegando fogo enquanto ela os preparava para o doce s'mores. Era uma das poucas lembranças que tinha de seus pais e nem sabia ao certo o quanto eram verdadeiras. Como era muito pequena, suspeitava de que as suas lembranças haviam se misturado às de Nana. Nana havia lhe contado sobre aquela noite tantas vezes, talvez por ter sido a última noite em que todos estavam juntos. Os pais de Beth morreram em um acidente de carro poucos dias depois.
— Você está bem?
Dispersa em suas lembranças, Beth não havia percebido que Logan estava na varanda. Suas feições pareciam mais suaves do que se lembrava à luz de cair da noite.
— Sim, estou bem — disse, ajeitando a blusa.
— Estava só pensando.
— Estou com a chave do caminhão. Queria entregá-la antes de ir para casa.
Quando ele entregou a chave a ela, sabia que poderia simplesmente agradecer e dizer boa noite, mas. talvez por ainda estar chateada com a decisão de Nana de viajar sem ao menos tê-la consultado, ou talvez por querer tomar suas próprias decisões a respeito de Logan, pegou a chave e correspondeu ao olhar dele.
— Obrigada! Foi um longo dia, hein?
Se ele ficou surpreso com seu comentário, não mostrou nada.
— Não foi tão ruim. Fiz um monte de coisas.
— Como reaver o direito de dirigir legalmente?
Ele sorriu.
— Entre outras coisas.
— O breque está funcionando bem?
— Só está rangendo um pouco.
Beth sorriu pensando nisso.
— Aposto que o examinador adorou!
— Com certeza. O sorriso dele dizia tudo.
Ela riu e então nenhum dos dois disse nada. No horizonte, relâmpagos brilhavam. Levou algum tempo até ouvirem o som do trovão e dava para ver que a tempestade ainda estava distante. No silêncio, percebeu que Logan olhava para ela novamente com uma expressão de déjà vu. Ele logo pareceu notá-lo e virou o olhar rapidamente. Beth seguiu seu olhar e viu que Zeus ia em direção às árvores. O cão ficou parado, indo para Logan como se dissesse: "Quer dar um passeio?" para enfatizar ainda mais sua vontade, ele latiu e Logan balançou a cabeça.
— Espere um pouco! — virou-se para Beth e disse: — Ficou preso por algumas horas e agora quer passear.
— Ele já não está fazendo isso?
— Não, ele quer ir passear comigo. Ele não pode me perder de vista.
— Nunca.
— É mais forte que ele. É um pastor e eu sou seu rebanho.
Beth ergueu a sobrancelha.
— Rebanho pequeno.
— É, mas está aumentando. Ele está bem apegado a Ben e a Nana.
— A mim não? — ela fingiu-se magoada.
Logan deu de ombros.
— Você não atirou um pau para ele ir buscar.
— Isso é tudo que preciso fazer?
— Ele se contenta com pouco.
Ela riu novamente. Não esperava que ele tivesse senso de humor.
— Quer passear com a gente? Para Zeus é o melhor que atirar um pau.
— Ah, é? — disse, em uma tentativa de ganhar tempo.
— Não faço as regras. Só as conheço. E detestaria que você se sentisse fora do rebanho.
Hesitou um pouco antes de aceitar o fato de que ele estava apenas sendo simpático. Olhou por cima do ombro.
— Talvez seja melhor avisar Ben e Nana que vou com você.
— Pode avisar, mas não vamos longe. Zeus só quer ir ao riacho se molhar um pouco na água, antes de voltarmos para casa. Senão, sente muito calor — girou os calcanhares, com as mãos no bolso. — Vamos.
— Sim, vamos.
Desceram da varanda e seguiram pelo caminho de cascalho. Zeus na frente deles. Caminhavam lado a lado, mantendo a distância suficiente para não se tocarem acidentalmente.
— Nana me falou que você é professora.
Beth concordou com a cabeça.
— Segundo ano.
— Como são seus alunos este ano?
— Parece-me um bom grupo. Pelo menos, até agora. E já tenho sete mães que se ofereceram para o trabalho voluntário, o que é sempre um bom sinal.
Passaram ao lado do canil e seguiram pela trilha estreita que levava ao riacho. O sol já havia se escondido atrás das árvores, deixando a trilha escura. Trovões foram ouvidos novamente enquanto caminhavam.
— Há quanto tempo dá aulas?
— Há três anos.
— Você gosta?
— A maior parte do tempo. Trabalho com muitas pessoas, isso facilita o trabalho.
— Mas?
Ela pareceu não entender a pergunta. Ele enfiou as mãos nos bolsos e continuou.
— Há sempre um "mas" quando falamos de nossos trabalhos. Como, por exemplo, gosto do meu trabalho e meus colegas são ótimos, mas... alguns se vestem como super-heróis durante os fins de semana e não consigo parar de pensar se talvez não batam muito bem da bola.
Beth riu.
— Não, eles são ótimos. E adoro ser professora. Só que, de vez em quando, aparece algum aluno com um histórico familiar complicado e não há nada que possamos fazer por ele. É o suficiente para deixar o coração partido, às vezes — disse e continuou caminhando em silêncio. — E você? Gosta de trabalhar aqui?
— Gosto — sua resposta pareceu sincera.
— Mas?
Ele balançou a cabeça.
— Sem mas.
— Isso não é justo. Eu falei a verdade para você.
— É claro, mas você não estava conversando com a neta da sua chefe. E falando nela, você tem idéia da hora em que ela pretende sair amanhã?
— Ela não te falou?
— Não. Pensei em perguntar a ela quando fosse devolver a chave.
— Ela não falou nada, mas tenho certeza de que vai querer treinar e exercitar os cachorros antes de ir para que eles não fiquem muito inquietos.
Estavam bem próximos do riacho e Zeus mergulhou, espalhando água e latindo. Logan e Beth ficaram vendo sua brincadeira até que Logan apontou para um galho mais baixo. Beth sentou-se ao lado dele, novamente tomando cuidado para manter a distância necessária.
— Qual a distância de Greensboro? — ele perguntou.
— Cinco horas entre ir e voltar. Quase todo o trajeto é pela interestadual.
— Você tem alguma idéia de quando ela pretende voltar?
Beth deu de ombros.
— Ela me disse uma semana
— Ah... — Logan mostrou-se reflexivo.
Tudo arranjado, uma ova, pensou Beth. Logan sabia menos do que ela.
— Estou sentindo que Nana não te deu muitos detalhes, não é?
— Só me disse que iria e que eu ia dirigir seu carro, então seria melhor estar com a habilitação em dia. Ah, também me disse que eu ia trabalhar no próximo fim de semana.
— Era de se imaginar. Veja... eu posso cuidar disso se tiver outras coisas para fazer.
— Sem problemas. Não tinha nada planejado. E há algumas coisas em que ainda não tive a chance de dar uma olhada. Algumas coisinhas que precisam de conserto.
— Como instalar um ar-condicionado no escritório do canil?
— Estava pensando em coisas como a pintura das portas e batentes e ver o que preciso fazer para abrir a janela do escritório.
— A que foi pintada fechada? Boa sorte. Meu avô tentou consertá-la durante muitos anos. Uma vez, ficou um dia inteiro com uma navalha e acabou se enchendo de band-aids por semanas. Mesmo assim, ela não abriu.
— Assim você não está me ajudando nada!
— Só estou tentando te avisar. É engraçado porque o meu avô o culpado pela pintura dessa forma, e ele tinha um depósito lotado com todo o tipo de ferramenta que você possa imaginar. Era o tipo de pessoa que achava que podia consertar qualquer coisa, mas o resultado nunca saía conforme o planejado. Era mais um visionário do que alguém ligado a detalhes práticos. Você já viu a casa da árvore de Ben e a ponte?
— De longe — Logan admitiu.
— Um exemplo do que estou falando. Meu avô passou a maior parte do verão para fazê-la e até hoje tenho de me encolher sempre que Ben vai até lá. Não faço a mínima idéia de como ela está se agüentando até hoje. Fico com medo, mas Ben adora ir até lá, especialmente quando está nervoso ou chateado com alguma coisa. Ele diz que é seu esconderijo. Vai muito até lá — quando ela ficou em silêncio, Logan percebeu sua preocupação, mas logo passou, e ela continuou. — De qualquer forma, vovô era especial. Era todo coração e alma, e nos deu a infância mais idílica que você possa imaginar.
— Nos deu?
— Meu irmão e eu — disse, olhando fixamente para as árvores e para os reflexos prateados das folhas à luz do luar. — A Nana te contou o que aconteceu com os meus pais?
— Rapidamente. Sinto muito.
Beth esperou, imaginando se Logan ia dizer alguma coisa, mas ele ficou em silêncio.
— Como foi — perguntou. — Atravessar o país a pé?
Logan fez uma pausa antes de responder.
— Foi tranqüilo. Ia aonde queria, quando queria, sem pressa de chegar lá.
— Você faz até parecer terapêutico.
— E acho que foi — disse, com um triste sorriso no rosto, que logo se desfez. — De certo modo.
Assim que disse isso, a luz do cair da noite refletiu-se em seus olhos, fazendo-os parecer que mudavam de cor.
— Encontrou o que procurava? — ela perguntou, com uma expressão séria.
Logan fez uma pausa.
— Sim, encontrei.
— E?
— Ainda não sei.
Beth pensou na resposta, sem ter muita certeza se tinha entendido.
— Veja bem, não me leve a mal, mas não consigo ver você ficando muito tempo em algum lugar.
— Diz isso porque eu vim a pé do Colorado?
— Em grande parte, sim.
Ele riu. Pela primeira vez, Beth tomou consciência que há muito tempo não tinha uma conversa dessas. Fluía com facilidade e naturalidade. Com Adam a conversa não era fácil, exigia um enorme esforço ambas as partes. Ainda não estava certa sobre o que sentia em relação a Logan, mas o certo é que finalmente estavam se dando bem. Ela pigarreou.
— Bem, quanto a amanhã, pensei se não seria melhor ir com o meu carro e eu fico com o caminhão para trabalhar. Ainda estou preocupada com o breque.
— Tenho de admitir que não me sinto muito seguro também. Mas acho que posso consertar. Não até amanhã, mas até o fim de semana.
— Você também conserta carros?
— Sim. Mas é fácil consertar breques. Só preciso trocar as pastilhas. É bem provável que o disco esteja ordem.
— Há alguma coisa que você não saiba fazer? — perguntou, demonstrando-se apenas um pouco admirada.
— Sim.
Ela riu.
— Que bom! Mas tudo bem, vou falar com Nana e tenho certeza de que não haverá problema se forem com meu carro. Não confio no breque para uma rodovia. E pode deixar que dou uma olhada nos cães assim que chegar da escola, está bem? Tenho certeza de que Nana não deve ter falado sobre nada disso com você. Mas vamos fazer dessa maneira.
Logan concordou e nessa hora Zeus saiu da água. Sacudiu o pelo e, depois, chegou mais perto para cheirar Beth, em seguida lambeu suas mãos.
— Ele gosta de mim.
— Provavelmente está só sentindo seu gosto.
— Engraçadinho — era o tipo de coisa que Drake teria dito, o que lhe deu novamente uma vontade repentina de ficar sozinha. Levantou-se.
— É melhor voltarmos. Tenho certeza de que devem estar imaginando por onde ando.
Logan percebeu que as nuvens continuavam engrossando.
— Sim, tenho de ir também. Quero chegar em casa antes da chuva que se aproxima.
— Quer uma carona?
— Obrigado! Mas não precisa. Gosto de andar.
— Sério? Nem imaginava! — disse, com um leve sorriso.
Voltaram para casa pelo mesmo caminho quando chegaram ao trecho de cascalho, Beth tirou as mãos dos bolsos e despediu-se com um aceno.
— Obrigada pela caminhada, Logan.
Esperava que ele fosse corrigi-la, como havia feito com Ben, que lhe pedisse para chamá-lo de Thibault, mas ele não o fez. Em vez disso, ergueu o queixo ligeiramente e sorriu.
— Eu que agradeço, Elizabeth.
Beth sabia que a tempestade seria breve, apesar de estarem precisando desesperadamente de chuva. O verão tinha sido muito quente e seco e parecia que calor não diminuiria nunca. Ao sentar-se, ao som dos últimos pingos de chuva no telhado, viu-se pesando em seu irmão.
Antes de Drake partir, havia dito que o que mais sentiria falta seria do som da chuva batendo no telhado. Ela se perguntava se ele sempre sonhava com as tempestades de verão da Carolina do Norte naquela seca em que tinha ido parar. Esse pensamento fazia com que se sentisse vazia e triste novamente.
Nana estava em seu quarto, arrumando as malas para a viagem, animada como não a via há anos. Ben, por outro lado, estava cada vez mais desanimado, o que significava que estava pensando no fato de ter de passar grande parte do fim de semana na companhia seu pai. O que também significava que ela passaria de semana sozinha em casa, algo que acontece pela primeira vez em muito tempo. Logan, porém, estaria lá.
Dava para entender por que Nana e Ben haviam se apegado a ele. Ele tinha uma confiança silenciosa,
rara nos dias de hoje. Só quando voltou para casa que percebeu que descobriu muito pouco sobre ele que fosse diferente do que havia dito na entrevista inicial. Imaginava se ele sempre havia sido tão reservado assim, ou se o tempo no Iraque tinha feito isso com ele. Concluiu que ele tinha ido para lá. Não, ele não havia falado nada sobre isso, mas percebeu algo em seu olhar quando mencionou seus pais; sua resposta simples indicava que estava familiarizado com a tragédia, além de uma aceitação como sendo um aspecto inevitável da vida.
Não sabia se isso a fazia se sentir melhor ou pior em relação a ele. Assim como Drake, era fuzileiro naval. Mas Logan estava ali e Drake havia morrido, e essa era uma, entre uma série de outras razões, pela qual não saberia dizer se algum dia poderia olhar para ele de coração aberto.
Olhando para as estrelas que surgiram após a tempestade, sentiu a perda de Drake como uma nova ferida reaberta. Desde a morte de seus pais, eram in-separáveis, chegaram até a dormir na mesma cama durante um ano. Ele era apenas um ano mais novo que ela, e ela se lembrava muito bem do primeiro dia em que o havia levado à escola. Havia prometido que ele iria fazer muitos novos amigos e que ela estaria esperando na porta, na hora da saída, só para fazê-lo parar de chorar. Ao contrário de muitos irmão, nunca foram rivais. Na época de escola, ela era sul maior fã e ele sempre lhe dava o maior apoio. Não perdia um jogo dele — futebol, basquete e beisebol — sempre dava seu apoio quando ele precisava. De sua parte, ele era o único que não se abalava com suas constantes mudanças de humor adolescente. A única vez em que não estiveram de acordo teve a ver com Keith, mas, ao contrário de Nana, Drake não expôs seus sentimentos. Mas sabia o que ele sentia e, quando ela e Keith se separaram, encontrou o apoio necessário em Drake, ajudando-a a encontrar seu caminho como mãe solteira. E sabia que havia sido Drake quem havia evitado que Keith fosse bater na sua porta de madrugada nos meses seguintes. Ele era a única pessoa conhecida que Keith tinha medo de enfrentar.
Então, Drake já havia amadurecido. Não tinha sido apenas um excelente atleta em praticamente todos os esportes, como também lutava boxe desde os 12 anos de idade. Aos 18 já havia ganho três vezes o campeonato Ho Golden Gloves, na Carolina do Norte, e treinava regularmente com as tropas baseadas em Fort Bragg Camp Lejeune. Foi por causa do tempo que passou com eles que Drake começou a pensar em se alistar.
Nunca tinha sido um aluno brilhante e desistiu da faculdade apenas um ano depois de ter entrado. Beth foi a única pessoa com quem conversou sobre a vontade de se alistar. Ficou orgulhosa com sua decisão de servir o país, seu coração quase explodiu de amor e admiração quando o viu de uniforme azul, apesar de ter ficado assustada quando ele foi enviado para o Kuwait, e depois para o Iraque, não conseguia deixar de acreditar que ele ia se sair muito bem. Mas Drake Green nunca voltou para casa.
Mal conseguia se lembrar dos dias que se seguiram à notícia da morte de seu irmão, e ainda não gostava de pensar nisso. Sua morte havia deixado um vazio que nunca mais seria totalmente preenchido. Mas o tempo amenizava a dor. Logo após sua morte, não pensava ser possível, mas hoje, ao pensar em Drake, concentrava-se principalmente nos momentos felizes. Mesmo quando ia ao cemitério para conversar com ele, não mais sentia a agonia das visitas iniciais, Atualmente, sua tristeza era maior que sua raiva.
Mas, naquele momento, sentia uma raiva real depois de reconhecer que também havia gostado de Thibault, assim como Nana e Ben, talvez por ter se sentido tão à vontade perto dele, como só havia se sentido até hoje ao lado de Drake.
E também tinha o seguinte: só Drake não a chamava por seu apelido. Nem seus pais, nem Nana, nem o vovô, ou qualquer um de seus amigos a chamavam de qualquer outro nome que não fosse Beth. Até mesmo Keith; honestamente, até duvidava que ele soubesse o verdadeiro nome da mulher com quem havia se casado. Apenas Drake lhe chamava de Elizabeth, apenas quando estavam sozinhos. Era o segredo deles, um segredo só dos dois, e nunca imaginou como soaria vindo da boca de uma outra pessoa.
Mas, de alguma forma, Logan tinha pronunciado da maneira certinha.

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