Capítulo 13 - Thibault

Thibault ficou observando Victor lançar a linha na água fria de Minnesota. Era uma manhã de sábado em que não havia sequer uma nuvem. Não ventava e o lago refletia a imagem do céu. Tinham ido cedo para o lago para pescar antes que lotasse de Jet-skis e lanchas. Era seu último dia de férias; seus voos estavam marcados para o dia seguinte. Tinham planejado jantar na churrascaria local nessa última noite, pois tinham ouvido falar que era a melhor da cidade.
— Acho que vai conseguir encontrar essa mulher — disse Victor sem preâmbulos.
Thibault estava enrolando a linha de pesca.
— Quem?
— A mulher da foto que dá sorte a você.
Thibault olhou para o amigo com os olhos semicerrados.
— Do que você está falando?
— Quando você for à procura dela. Acho que conseguirá encontrá-la.
Thibault analisou seu anzol cuidadosamente e o lançou na água novamente.
— Não vou à procura dela.
— Isso é o que você diz agora. Mas você acabará indo.
Thibault balançou a cabeça.
— Não vou não. E, mesmo se quisesse ir, não teria como.
— Você vai descobrir como.
Victor parecia orgulhoso por ter tanta certeza.
Thibault olhou nos olhos do amigo.
— E por que a gente ainda está falando nisso?
— Porque ainda não acabou.
— Pode acreditar em mim. Acabou.
— Sei que você pensa dessa forma. Mas você está errado.
Thibault tinha aprendido há muito tempo que, quando Victor começava a discutir um assunto, continuava dando sua opinião até sentir-se satisfeito com a exposição do seu ponto de vista. Como não era dessa forma que Thibault queria passar seu último dia de férias, achou melhor acabar com a história de uma vez por todas.
— Então, tá. Por que não acabou ainda?
Victor deu de ombros.
— Porque falta equilíbrio.
— Falta equilíbrio — Thibault repetiu, em tom neutro.
— É. Entende?
— Não.
Victor suspirou diante da falta de entendimento do amigo.
— Digamos que uma pessoa instale um telhado na sua casa. A pessoa trabalha direito e, no fim, recebe por isso. Só então está acabado. Mas, neste caso, o da fotografia, é como se o telhado tivesse sido colocado, mas o trabalho não tivesse sido pago. Até que o pagamento seja feito, falta equilíbrio.
— Está dizendo que devo algo para essa mulher? — perguntou Thibault com expressão cética.
— Estou. A foto manteve você seguro e te deu sorte. Mas até que o pagamento seja feito, não está acabado.
Thibault pegou um refrigerante da geladeira e entregou um para Victor.
— Você percebe que parece louco falando dessa forma?
Victor agradeceu o refrigerante com um aceno de cabeça.
— Pode ser que alguns pensem assim. Mas você vai acabar indo à procura dela. Há um propósito maior em tudo isso. É o seu destino.
— Meu destino. O que isso quer dizer?
— Não sei. Mas você vai saber quando chegar a hora.
Thibault ficou quieto, desejando que Victor nunca tivesse falado sobre isso. No silêncio que se seguiu, analisava seu amigo.
— Talvez vocês sejam feitos um para o outro.
— Não estou apaixonado por ela, Victor.
— Não?
— Não.
— E, mesmo assim, pensa nela com freqüência — observou Victor.
Thibault não retrucou esse comentário, pois não havia nada que pudesse dizer.
****
No sábado de manhã, Thibault chegou cedo e foi direto para os canil para alimentar, limpar e também treinar os cães como sempre. Enquanto trabalhava, Ben brincava com Zeus até ser chamado por Elizabeth para se aprontar para sair. Ela acenou da varanda e, mesmo ao longe, dava para perceber que estava dispersa.
Quando ele soltou os cães, ela voltou para dentro de casa; geralmente levava grupos de três em três cães para passear, Zeus ia sempre atrás dele. Ao se afastar da casa, soltava os cães das coleiras, porém sempre o seguiam, não importava qual direção tomasse. Gostava de variar o caminho, pois essa estra-tégia impedia que os cachorros se afastassem muito. Assim como as pessoas, cães também ficam entediados se fazem sempre o mesmo percurso todos os dias. Geralmente, passeava meia hora com cada grupo. Depois do terceiro grupo, percebeu que o carro de Elizabeth não estava mais lá, e imaginou que deveria ter ido levar Ben à casa do pai.
Não gostava do pai de Ben, principalmente porque Ben e Elizabeth não gostavam dele. O cara parecia ser uma peça rara, mas ele não poderia fazer muito mais do que ouvir quando ela decidia falar sobre ele. Não sabia muitos detalhes para poder dar conselhos e, mesmo se soubesse, ela não estava pedindo. De qualquer forma, não era da sua conta.
Mas o que era da sua conta, então? Por que ele estava ali? Apesar de não querer, não conseguia deixar de pensar em sua conversa com Victor, e sabia que estava ali por causa das coisas que Victor havia dito ali naquela manhã no lago.
Tentou pensar em outra coisa. Não queria ficar pensando nisso. Não novamente.
Chamou os cachorros, deu meia-volta e foi em direção ao canil. Depois de trancá-los, foi explorar o depósito. Ao acender as luzes, olhou para as paredes e prateleiras com admiração. O avô de Elizabeth não tinha apenas algumas ferramentas — o lugar parecia uma loja de ferramentas totalmente bagunçada. Ficou por lá, examinando as estantes, os armários e as pilhas de coisas da bancada. Acabou escolhendo um conjunto de chaves de encaixe, algumas variáveis, chaves inglesas, um macaco e levou tudo para o caminhão. Como Elizabeth havia prometido, as chaves estavam debaixo do tapete. Thibault entrou no carro e foi em direção ao autopeças que ele vagamente lembrava de ter visto perto do centro da cidade.
Encontrou o que precisava — pastilhas, braçadeiras e graxa para alta temperatura — e em menos de meia hora já estava de volta. Instalou o macaco e ergueu o caminhão; depois, retirou a primeira roda. Apertou o pistão com a braçadeira, retirou as pastilhas antigas, verificou se os discos ainda estavam bons e acrescentou as pastilhas novas; fez o mesmo com todas as três rodas.
Estava terminando o terceiro breque quando viu Elizabeth estacionar ao lado do caminhão. Olhou por detrás do ombro quando ela saiu do carro, percebendo que ela tinha ficado fora por muito tempo.
— Como vai indo? — perguntou Elizabeth.
— Estou quase acabando.
— Sério? — ela parecia surpresa.
— São só as pastilhas. Não é nada de mais.
— Tenho certeza de que um cirurgião teria dito a mesma coisa. É só um apêndice.
— Quer aprender? — perguntou Thibault, olhando para a silhueta dela tendo o céu como pano de fundo.
— Quanto tempo leva?
— Não muito. Dez minutos?
— Sério? Certo. Deixe-me só levar as compras para dentro.
— Precisa de ajuda?
— Não, são só duas sacolas.
Colocou a terceira roda, apertando os parafusos antes de pegar a última. Soltou os parafusos ao mesmo tempo em que Elizabeth chegou ao seu lado. Quando ela se agachou perto dele, pôde sentir o aroma de loção de coco que ele devia ter passado de manhã cedo.
— Primeiro você tira a roda... — começou, e explicou todo o processo didaticamente, certifícando-se de que ela havia entendido cada passo. Quando ele abaixou o macaco e começou a recolher as ferramentas, ela balançou a cabeça.
— Isso foi quase fácil demais. Acho que até eu poderia ter feito.
— Provavelmente.
— Então, por que cobram tão caro?
— Não sei.
— Estou na profissão errada — disse, levantando e prendendo o cabelo em um rabo de cavalo. — Mas, obrigada por ter feito isso. Já fazia tempo que queria consertar esse breque.
— Sem problemas.
— Está com fome? Comprei peru para fazer sanduíches. E um pouco de picles.
— Parece delicioso.
Almoçaram na varanda dos fundos, com vista para o jardim. Elizabeth ainda parecia dispersa, mas conversaram um pouco sobre como tinha sido crescer em uma cidade pequena, onde todo mundo sabe tudo sobre todo mundo. Algumas das histórias eram engraçadas, mas Thibault admitiu que preferia uma existência mais anônima.
— Por que será que não estou surpresa?
Depois, Thibault voltou a trabalhar enquanto Elizabeth passou a tarde limpando a casa. Ao contrário do seu avô, Thibault conseguiu abrir a janela do escritório que havia sido pintada estando fechada, embora tenha sido uma tarefa mais difícil do que consertar o breque do caminhão. Nem ficou fácil de abrir ou fechá-la depois, por mais que ele tivesse lixado para amaciá-la. Depois, pintou os batentes.
Depois disso, foi um dia normal. Quando acabou suas tarefas no canil, eram quase 17 horas, e, embora pudesse facilmente ter encerrado o expediente nesse momento, não o fez. Em vez disso, começou a organizar os arquivos novamente, querendo obter algum tipo de avanço para o dia seguinte, que ele já sabia de antemão que seria um longo dia. Programou-se para trabalhar mais algumas horas, fazendo o que achava ser prioritário — mas como saber quais as prioridades? — e não ouviu Elizabeth se aproximando. Em vez disso, percebeu que Zeus havia se levantado e ido em direção à porta.
— Estou surpresa por você ainda estar aqui. Vi a luz e pensei que havia esquecido de apagar — parou à porta.
— Eu não esqueceria.
Ela apontou para as pilhas de arquivos sobre a mesa.
— Você não imagina como estou feliz em vê-lo fazendo isso. Nana tentou me convencer a organizar esses arquivos neste verão, mas eu fui extremamente resistente à idéia.
— Sorte a minha.
— Não, sorte a minha. Quase me senti culpada por não ter feito.
— Eu quase acreditaria em você, se não fosse esse sorriso forçado. Teve notícias de Ben ou de Nana?
— Dos dois. Nana está ótima. Ben está péssimo. Não que tenha falado abertamente. Mas pude perceber pela sua voz.
— Sinto muito — e ele realmente sentia.
Ela deu de ombros de forma tensa e segurou a maçaneta da porta. Rodou-a para cima e para baixo, parecendo interessada no mecanismo. Finalmente, deixou escapar um suspiro.
— Quer me ajudar a fazer sorvete?
— Como? — abaixou o arquivo que estava organizando.
— Adoro sorvete caseiro. Não há nada melhor no calor, mas não tem graça se não dá para dividi-lo com alguém.
— Acho que nunca tomei sorvete caseiro...
— Então, você não sabe o que está perdendo. Topa?
Seu entusiasmo infantil era contagioso.
— Claro. Parece divertido.
— Vou correr até a mercearia para comprar os ingredientes necessários. Volto em poucos minutos.
— Não seria bem mais fácil se comprássemos sorvete?
Os olhos dela brilharam de prazer.
— Mas não é a mesma coisa. Você vai ver. Volto daqui a pouco, está bem?
Ela cumpriu mesmo sua palavra. Thibault só teve tempo de dar uma arrumada na mesa e olhar os cães mais uma vez antes de ouvir o barulho do carro dela voltando da loja. Foi ao seu encontro quando saía do carro.
— Você poderia trazer o saco de gelo picado? Está no banco de trás.
Ele foi atrás dela até a cozinha com o saco de gelo e ela apontou para o freezer enquanto colocava um litro de leite especial em cima do balcão.
— Você pode pegar a sorveteira? Está na despensa. Prateleira de cima à direita.
Thibault saiu da despensa com uma sorveteira à manivela que parecia ter pelo menos 50 anos.
— É esta aqui?
— Sim, é.
— Ainda funciona? — pensou em voz alta.
— Perfeitamente. Surpreendente, não é? Nana ganhou de presente de casamento, mas ainda usamos o tempo todo. Faz um sorvete delicioso.
Colocou-a em cima do balcão e ficou ao lado de Elizabeth.
— O que posso fazer?
— Se você concordar em girar, eu faço a mistura.
— Parece justo.
Ela pegou a batedeira elétrica e uma tigela, junto com um copo medidor. Do armário de temperos, pegou açúcar, farinha e extrato de baunilha. Acrescentou três colheres de açúcar e uma xícara de farinha à tigela e misturou à mão, depois colocou a tigela na batedeira elétrica. Bateu os ovos, todo o litro de leite especial e três colheres de chá de extrato de baunilha. Finalmente, acrescentou um pouco de leite comum e colocou a mistura toda na lata de sor-vete, colocando a lata na sorveteira, rodeando-a com gelo picado e sal.
— Pronto — disse, entregando a sorveteira a ele. — Pegou o resto do gelo e do sal. — Vamos para a varanda. Não fica bom se não for preparado lá.
— Ah!
Sentou-se ao lado dele nos degraus da varanda, porém um pouquinho mais perto do que no dia anterior. Segurando a lata entre os pés, Thibault começou a girar a manivela, surpreso com a facilidade com que girava.
— Obrigada por fazer isso. Preciso muito de sorvete. O dia não está fácil.
— É mesmo?
Ela virou-se para ele com um leve sorriso nos lábios.
— Você é muito bom nisso.
— Nisso o quê?
— Em dizer "é mesmo?" quando alguém faz algum comentário. É o suficiente para fazer com que a pessoa continue falando sem ser muito pessoal ou intrometido.
— É mesmo?
Ela riu.
— É mesmo — imitou-o. — Mas a maioria das pessoas teria dito algo do tipo "o que houve?", ou então, "por quê"?
— Então, tá. O que houve? Por que o dia não está fácil?
— É que o Ben estava bem rabugento hoje de manhã arrumando as coisas e acabei brigando com ele porque ele estava demorando muito. O pai dele ge-ralmente não gosta quando ele se atrasa, mas hoje... Bem, hoje ele parecia ter esquecido que o Ben ia para lá. Devo ter batido na porta uns cinco minutos até ele resolver abrir, e garanto que ele tinha acabado de sair da cama. Se eu soubesse que ele estava dormindo, não teria sido tão dura com o Ben, e ainda estou me sentindo culpada. E, claro, quando estava indo embora, vi o Ben colocando o lixo para fora, porque o papaizinho querido é muito preguiçoso para fazer isso. E depois, claro, passei o dia todo fazendo faxina, o que não é tão ruim nas primeiras horas. Mas quando chega ao fim, realmente preciso de um sorvete.
— Não parece o relato de um sábado relaxante.
— E não é — resmungou, e ele percebeu que ela estava pensando se deveria continuar falando ou não. Havia algo mais perturbando-a, e ela respirou profundamente antes de suspirar. — Hoje é aniversário do meu irmão — sua voz soou trêmula. — Depois de deixar o Ben, fui levar flores no cemitério hoje.
Thibault sentiu um nó na garganta ao se lembrar da fotografia em cima da lareira. Apesar de suspeitar que seu irmão havia sido assassinado, era a primeira vez que Nana e Elizabeth confirmavam. Entendeu imediatamente por que ela não queria ficar sozinha naquela noite.
— Sinto muito.
— Eu também. Você teria gostado dele. Todo mundo gostava.
— Tenho certeza que sim.
— Nana havia se esquecido. É claro que ela se lembrou hoje à tarde e me telefonou para dizer que sen tia muito não poder estar aqui. Estava praticamente chorando, mas eu disse para ela que não tinha problema. Que não era nada importante.
— É muito importante. Ele era seu irmão e você sente a falta dele.
Ela esboçou um sorriso nostálgico.
— Você lembra meu irmão — disse, com uma voz macia. — Nem tanto pela aparência, mas pelo jeito de ser. Percebi isso na primeira vez em que entrou no escritório candidatando-se ao emprego. Parecia que vocês dois tinham sido feitos no mesmo molde. Acho que deve ser coisa de fuzileiro, certo?
— Talvez. Conheci vários tipos diferentes de fuzileiros.
— Aposto que sim — fez uma pausa e abraçou os joelhos. —Você gostava de ser fuzileiro?
— Às vezes.
— Mas não o tempo todo.
—Não.
— Drake amava. Gostava de tudo, na verdade — apesar de parecer hipnotizada pelo movimento da manivela, Thibault sabia que estava perdida em suas lembranças. — Lembro-me de quando a invasão começou. Como o Camp Lejeune ficava a menos de uma hora daqui, era a grande novidade. Fiquei as sustada por ele, especialmente quando soube das armas químicas e dos ataques suicidas, mas você quer saber com o que ele estava preocupado? Antes da in-vasão, quero dizer?
— Com o quê?
— Uma fotografia. Uma velha fotografia ridícula. Dá para acreditar?
As palavras inesperadas fizeram o coração de Thibault subitamente bater mais forte, mas ele esforçou-se para parecer calmo.
— Ele tirou essa foto minha assim que chegar à feira naquele ano — continuou falando. — Seria o último fim de semana que ficaríamos juntos antes de ele se alistar, e depois de fazer o que sempre fazíamos, acabamos nos separando. Lembro-me de estar sentada com ele perto de um pinheiro gigante e de termos conversado por horas observando a roda-gigante. Era uma das grandes, toda iluminada, e dava para ouvir os gritos das crianças que iam e vinham debai-xo de um perfeito céu de verão. Falamos sobre mamãe e papai, e imaginamos como a aparência deles teria se modificado no decorrer dos anos, se teriam ficado com cabelos grisalhos, ou se teríamos ficado em Hampton ou mudado de cidade, e lembro-me de ter olhado para o céu. Subitamente, vi uma estrela cadente, e tudo o que pude pensar é que eles estavam nos ouvindo de alguma maneira.
Ela fez uma pausa, perdida em suas lembranças, antes de continuar. — Ele mandou plastificar a fotografia e guardou-a durante todo o treinamento básico. Depois que chegou ao Iraque, mandou um e-mail para mim dizendo que a havia perdido, e pedindo para que eu enviasse outra a ele. A mim, parecia uma bobagem, mas eu não estava lá, e não sabia pelo que ele estava passando, então disse que sim. Mas não consegui mandar logo em seguida. Não me pergunte o porquê. Era como se tivesse algum tipo de bloqueio mental. Quer dizer, até coloquei o cartão de memória na minha bolsa, mas toda vez que passava perto da loja, simplesmente esquecia de revelar a fotografia. E, em seguida, a invasão começou. Finalmente, consegui enviá-la, mas a carta foi devolvida sem nunca ter sido aberta. Drake morreu na primeira semana da invasão. Cinco dias. Esse foi o tempo que ele durou. E nunca consegui enviar a única coisa que ele me pediu. Entende como isso me faz sentir?
Thibault sentia o estômago revirando.
— Nem sei o que dizer.
— Não há nada a ser dito. É uma daquelas situações horríveis, absolutamente tristes. E agora... hoje, não consigo parar de pensar que sua memória está sendo esquecida. Nana não se lembrou. Ben não se lembrou. Eu até entendo que Ben tenha se esquecido. Não tinha nem 5 anos quando Drake morreu e sabemos o que acontece com as lembranças nessa idade. Mas Drake era tão bom para ele, pois simplesmente gostava de estar com ele — ela deu de ombros. — Mais ou menos como você.
Thibault gostaria que ela não tivesse dito isso. Não pertencia àquele lugar...
— Não quis contratar você — continuou, sem perceber a perturbação interior vivida por ele. — Sabia disso?
— Sim.
— Mas não porque você veio a pé do Colorado até aqui. Isso também ajudou, mas principalmente por você ter sido fuzileiro naval.
Ele concordou, e no silêncio ela pegou a sorveteira.
— Deve estar precisando de mais gelo — disse. Abriu a tampa, acrescentou mais gelo e devolveu-a para ele.
— Por que você está aqui? — finalmente perguntou.
Apesar de saber o que ela queria com a pergunta, fez-se de desentendido.
— Porque você me pediu para ficar.
— Não! Por que você está em Hampton? E dessa vez fale a verdade!
Tentou encontrar a explicação certa.
— Parecia-me um bom lugar e, até agora, tem sido.
Dava para perceber pelo olhar dela que sabia que havia algo mais, e ela ficou esperando. Quando ele não disse mais nada, ela franziu a testa.
— Tem alguma coisa a ver com o tempo em que ficou no Iraque, não tem?
O silêncio o entregou.
— Quanto tempo você ficou lá?
Não queria falar sobre isso, mas sabia que não havia alternativa e ficou inquieto onde estava sentado. — Qual das vezes?
— Quantas vezes você foi para lá?
— Três.
— Viu muitos combates?
— Sim.
— Mas você sobreviveu.
— Sim.
Ela apertou os lábios e subitamente as lágrimas vieram à tona.
— Por que você e meu irmão não?
Ele girou a manivela quatro vezes antes de dar uma resposta que sabia ser uma mentira.
— Não sei.
Quando Elizabeth levantou-se para pegar as tigelas e as colheres para o sorvete, Thibault resistiu para não chamar Zeus e simplesmente sair de lá, naquela mesma hora, antes de mudar de idéia, e voltar para o Colorado.
Não conseguia parar de pensar na fotografia que estava em seu bolso, a fotografia que Drake havia perdido. Thibault a achou, Drake morreu e ele estava ali, na casa em que Drake havia sido criado, tomando sorvete com a irmã que ele havia deixado para trás. Aparentemente, tudo parecia tão improvável, mas ali, lutando contra a súbita secura da sua boca, concentrou-se nos fatos que eram realmente verdadeiros. A fotografia era apenas isso: uma foto de Elizabeth tirada por seu irmão. Amuletos da sorte não existiam. Thibault havia sobrevivido ao Iraque, assim como a grande maioria dos fuzileiros que foram mandados para lá. Como também a maioria dos companheiros do seu pelotão. Incluindo Victor. Entretanto, alguns fuzileiros haviam morrido, entre eles Drake, e. por mais trágico que fosse, não tinha nada a ver com a fotografia. Quanto a ele, estava ali porque havia decidido procurar a mulher da fotografia. Não tinha nada a ver com destino ou mágica.
Mas tinha ido à procura dela por causa de Victor... Piscou e lembrou a si mesmo que não queria acreditar em nada do que Victor havia dito.
O que Victor acreditava era apenas superstição. Não podia ser verdade. Pelo menos, não inteiramente.
Zeus parecia perceber sua luta interior e levantou a cabeça para olhar para ele. Com as orelhas em pé, latiu de leve e subiu as escadas para lamber a mão de Thibault, que levantou a cabeça de Zeus e o cão encostou o focinho em seu rosto.
— O que estou fazendo aqui? Por que vim para cá? — sussurrou.
Enquanto esperava pela resposta que nunca viria, ouviu a porta de tela bater atrás dele.
— Está falando sozinho ou com o cachorro?
— As duas coisas.
Ela sentou-se ao lado dele e entregou-lhe uma colher.
— O que estava dizendo?
— Nada de importante — fez sinal para Zeus se deitar, e ele se encolheu no degrau, esforçando-se para ficar perto dos dois.
Elizabeth abriu a sorveteira e colocou uma bola de sorvete em cada tigela.
— Espero que goste — disse ao entregar-lhe uma tigela.
Mergulhou a colher e experimentou antes de se virar para ele com um olhar sincero.
— Queria pedir desculpas.
— Por quê?
— Pelo que disse... por ter perguntado por que você sobreviveu e meu irmão não.
— É uma pergunta justa — concordou com a cabeça, desconfortável com seu olhar implacável.
— Não é não. E eu errei em fazer uma pergunta dessas. Sinto muito.
— Está tudo bem.
Ela pegou mais uma colherada e continuou:
—Lembra-se de quando disse que não queria te contratar porque você tinha sido fuzileiro naval? Não é nada do que você possa imaginar. Não era pelo fato de você me fazer lembrar de Drake. Era por causa da forma como Drake havia morrido — ela bateu a colher na tigela. — Drake foi atingido por um companheiro. — Thibault virou-se e ela continuou. — É claro que não nos contaram logo de cara. Ficavam se esquivando. "Estamos investigando" ou "estamos analisando o caso", coisas do gênero. Levou meses para descobrirmos como ele morreu, e, mesmo assim, nunca soubemos quem foi o responsável. Procurou encontrar as palavras adequadas. — Não parecia... justo, sabe? Quer dizer, sei que deve ter sido acidente, sei que quem quer que tenha feito isso não queria matá-lo, mas, se algo do tipo acontecesse aqui nos Estados Unidos, essa pessoa seria indiciada por homicídio culposo. Mas como aconteceu no Iraque, ninguém quer que a verdade apareça. E nunca vai aparecer.
— Por que você está me contando isso? — disse Thibault com um tom tranqüilo.
— Porque essa foi a verdadeira razão de não querer contratá-lo. Depois que descobri o que aconteceu parecia que toda vez que via um fuzileiro, acabava me perguntando se não teria sido ele quem teria matado Drake, ou se não estaria acobertando quem de havia cometido o crime. Sei que não é justo, sei que é errado, mas não consigo evitar. E depois de um tempo, a raiva começou a fazer parte de mim, como se fosse a única maneira que tivesse para poder lidar com a dor. Não gostava da pessoa que havia me tornado, mas estava presa a esse ciclo horrível de indagações e culpa. E então, do nada, você entra no escritório e se candidata ao emprego. E Nana, apesar de saber exatamente como me sentia — talvez por causa da forma como me sentia — decide contratar você. Colocou a tigela de lado. — Foi por isso que não conversei muito com você nas primeiras semanas. Nem sabia o que dizer. Imaginava que não precisava dizer nada, pois era mais que provável que você desistisse dentro de alguns dias, como a maioria fazia. Mas você não desistiu. Pelo contrário, você se empenhou e trabalhou até mais tarde, você é ótimo para Nana e para o meu filho... De repente, você deixou de ser um fuzileiro para ser simplesmente um homem — ela fez uma pausa como se estivesse perdida em seus pensamentos, depois, finalmente bateu nele com o joelho. — E como se não bastasse, você é um homem que permite que mulheres emotivas falem como matracas sem pedir que se calem.
Ele devolveu a joelhada mostrando a ela que estava tudo bem.
— É aniversário do Drake.
— É — ela ergueu a tigela. — Ao meu irmãozinho. Drake.
Thibault bateu sua tigela na dela.
— Ao Drake — repetiu.
Zeus latiu e olhou para eles com ansiedade. Apesar da tensão, ela fez um carinho nele.
— Você não precisa brindar. Esse momento é para o Drake.
Ele inclinou a cabeça sem entender e ela riu.
— Blá, blá, blá. Ele não entende uma palavra do que estou falando.
— É verdade. Mas consegue perceber que está chateada. É por isso que está por perto.
— Ele é mesmo impressionante. Acho que nunca vi um cachorro tão intuitivo e bem treinado. Nana disse a mesma coisa, e pode acreditar, vindo dela, é muita coisa.
— Obrigado. Tem bom pedigree.
— Certo. Sua vez de falar. Você já sabe tudo o que há para saber sobre mim.
— O que você quer saber?
Ela pegou a tigela e colocou mais sorvete na boca antes de perguntar.
— Já se apaixonou alguma vez?
Quando ele ergueu as sobrancelhas por conta da maneira direta com que ela havia feito a pergunta, ela o avisou:
— Nem pense que estou me intrometendo demais na sua vida pessoal. Não depois de tudo que contei a você. Desembuche.
— Uma vez — admitiu.
— Recentemente?
— Não. Anos atrás. Quando estava na faculdade,
— Como ela era?
Ele pareceu procurar a palavra certa.
— Realista.
Ela não disse nada, mas seu olhar mostrava que queria mais.
— Está bem. Cursava Estudos Feministas e preferia usar sandália e saias de camponesa. Detestava maquiagem. Escrevia resenhas para o jornal da faculdade e lutava pelas causas de praticamente todos os grupos sociológicos no mundo, exceto o dos homens brancos e ricos. Ah, e também era vegetariana.
— Não sei por que mas não consigo imaginar você com alguém desse tipo.
— Nem eu. E nem ela. Pelo menos, não em longo prazo. Mas, por um tempo, foi surpreendentemente fácil ignorar nossas diferenças óbvias. E foi o que fizemos.
— Quanto tempo durou?
— Um pouco mais de um ano.
— Alguma vez teve notícia dela?
Ele balançou a cabeça.
— Nunca.
— Isso é tudo?
— Tirando alguns namoros sem importância da escola, é tudo. Mas lembre-se de que os últimos cinco anos não foram exatamente adequados para inícios de novos relacionamentos.
— É. Acho que não.
Zeus levantou-se e começou a olhar para a entrada da casa, mexendo as orelhas. Em estado de alerta. Levou um momento, mas Thibault começou a ouvir o som distante do motor de um carro, e, ao longe, uma luz ampla, dispersa, piscando entre as árvores, começou a aproximar-se. Alguém estava estacionando. Elizabeth franziu a testa, sentindo-se confusa enquanto o carro lentamente vinha em direção à casa. Apesar de as luzes da varanda não iluminarem a entrada da casa, Thibault reconheceu o carro imediatamente. Era o delegado ou um de seus policiais.
Elizabeth também reconheceu.
— Não deve ser nada bom — resmungou.
— O que você acha que eles querem?
— Não são eles. É ele. Meu ex-marido — desceu a escada e foi até ele. — Espere aqui. Eu cuido disso.
Thibault fez sinal para Zeus sentar e ficar até o carro parar ao lado do carro de Elizabeth, do outro lado da casa. Pelos arbustos, viu a porta do pas-sageiro se abrir e Ben sair, arrastando sua mochila atrás dele. Foi em direção a sua mãe, de cabeça baixa. Quando a porta do motorista se abriu, o policial Keith Clayton saiu.
Zeus rosnou, em sinal de alerta e prontidão, esperando o sinal de Thibault para ir atrás do cara. Elizabeth olhou surpresa para Zeus até Ben ficar perto da luz. Thibault e Elizabeth perceberam ao mesmo tempo que ele não estava de óculos e havia uma mancha roxa ao redor do seu olho.
— O que houve? — gritou Elizabeth, correndo na direção do filho. Agachou-se para poder analisar melhor o machucado. — O que você fez?
Não foi nada — respondeu Clayton, aproximando-se deles. — É só uma batida. Ben virou o rosto para que ela não visse.
— Onde estão os óculos dele? — disse Elizabeth. ainda tentando entender a situação. — Você bateu nele?
— Claro que não. Jesus Cristo! Jamais bateria nele. Quem você pensa que eu sou?
Elizabeth nem parecia ouvi-lo, sua atenção estava concentrada no filho.
— Você está bem? Isso está com uma cara feia. O que aconteceu, querido? Você quebrou os óculos?
Sabia que ele não ia falar nada enquanto Clayton estivesse lá. Levantando o rosto dele, deu para ver que os vasos dos olhos tinham estourado e estavam vermelhos por causa do sangue.
— Com que força você lançou a bola? — ela perguntou, com uma expressão horrorizada.
— Não foi tão forte assim. Foi só uma batidinha. O olho dele está bem e até consegui consertar os óculos com fita adesiva.
— Foi muito mais do que uma batida! — o tom de voz dela aumentou, mal conseguia se controlar.
— Pare de agir como se fosse minha culpa — ele gritou de volta.
— É claro que a culpa é sua!
— Foi ele que não conseguiu pegar a bola! Só estávamos jogando beisebol. Foi um acidente, pelo amor de Deus! Não foi, Ben? Estávamos nos divertindo, não estávamos?
Ben olhava para o chão.
— Sim — murmurou.
— Conte para ela o que aconteceu. Fale para ela que não foi minha culpa. Vamos, diga.
Ben mudou o peso do corpo de uma perna para a outra.
— Estávamos jogando beisebol. Não consegui pegar uma bola e ela bateu no meu olho — segurou os óculos, grosseiramente consertados com fita adesiva. — Papai consertou meus óculos.
— Quando isso aconteceu? — perguntou Elizabeth.
— Há algumas horas.
— E você não me telefonou?
— Não. Fomos ao pronto atendimento.
— Ao pronto atendimento?
— Onde mais deveria levá-lo? Sabia que não poderia trazê-lo aqui sem primeiro passar por um médico, então foi o que fiz. Fiz o que qualquer pai res-ponsável teria feito, assim como você fez quando ele caiu do balanço e quebrou o braço. E se você se lembra, não fiquei louco de raiva de você, assim como não fico louco de raiva quando você o deixa brincar na casa da árvore. Aquilo é uma armadilha mortal. — Ela estava chocada demais para falar e balançou a cabeça de desgosto. — De qualquer forma, ele quis voltar para casa.
— Está bem — disse, ainda lutando para encontrar palavras. Os músculos da sua mandíbula contraiam-se e retraiam-se. Achou melhor dispensá-lo. — Tanto faz. Vá embora. Pode deixar que eu cuido dele agora.
Com o braço ao redor de Ben, começou a ir embora, e foi nesse momento que Clayton viu Thibault sentado na varanda, olhando para ele. Os olhos de Clayton arregalaram-se antes de brilharem de raiva. Começou a ir em direção à varanda.
— O que você está fazendo aqui? — indagou.
Thibault simplesmente olhou para ele sem se mexer. O rosnado de Zeus começou a virar um latido ameaçador.
— O que ele está fazendo aqui, Beth?
— Vá embora, Keith. Falamos sobre isso amanhã — e virou as costas.
— Não dê as costas para mim — gritou, segurando no braço dela. — Só estou fazendo uma pergunta.
Nesse momento, Zeus rangeu os dentes e suas pernas começaram a tremer. Pela primeira vez, Clayton pareceu perceber a presença do cão, de dentes à mos-tra, com os pelos das costas arrepiados.
— Se eu fosse você, soltaria o braço dela — disse Thibault, em um tom neutro e calmo, dando mais uma sugestão do que uma ordem. — Agora.
Clayton, de olho no cachorro, largou imediatamente. Zeus deu um passo para frente, continuando a ranger os dentes.
— Acho que é melhor ir embora — disse Thibault com o mesmo tom de voz sereno.
Clayton hesitou um pouco, depois deu um passou para trás e deu meia-volta. Thibault o ouviu xingar em voz baixa no caminho até o carro, abrir a porta e batê-la com força.
Fez um carinho em Zeus.
—Bom garoto — sussurrou.
Clayton deu marcha à ré, deu um cavalo de pau bem mal feito e saiu levantando cascalho. As luzes traseiras sumiram de vista e só então o pelo de Zeus finalmente abaixou. E ele abanou o rabo quando viu Ben se aproximar.
— Oi, Zeus — cumprimentou Ben.
Zeus olhou para Thibault como se estivesse pedindo permissão.
— Tudo bem — disse, soltando-o.
Zeus foi até Ben como se dissesse "estou feliz por você estar em casa!" Encostou o focinho nele e começou a acariciá-lo.
— Sentiu a minha falta, não foi? — perguntou, parecendo estar feliz. — Também senti a sua...
— Venha, querido — pediu Elizabeth, colocando-o a sua frente novamente. — Vamos entrar e colocar gelo nesse olho. Quero vê-lo na luz.
Quando abriram a porta de tela, Thibault levantou-se.
— Oi, Thibault — Ben acenou.
— Oi, Ben.
Posso brincar com Zeus amanhã?
— Se sua mãe deixar, então tudo bem — Thibault percebeu ao olhar para Elizabeth que ela queria ficar sozinha com o filho. — É melhor ir andando. Está ficando tarde e tenho de levantar cedo amanhã.
— Obrigada. E desculpe tudo o que aconteceu.
— Não há nada do que se desculpar.
Caminhou até a entrada, depois virou-se para ver a casa. Percebeu o movimento por detrás das cortinas da janela da sala de estar.
Olhando para as sombras das duas figuras na janela, sentiu pela primeira vez que estava finalmente entendendo a razão que o havia levado até ali.

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