Capítulo 16 - Thibault
No sábado à noite, Thibault esperou no sofá,
imaginando se estava fazendo a coisa certa.
Em outra época e lugar, não teria pensado duas vezes.
Sentia-se atraído por Elizabeth, com certeza. Gostava da sua franqueza e da sua
inteligência, juntamente com seu senso de humor brincalhão e, claro, sua
aparência. Por isso, não dava para imaginar como tinha ficado solteira por
tanto tempo.
Mas não estava em outra época e lugar, e nada daquilo
era normal. Trazia a fotografia dela consigo há mais de cinco anos. Atravessou
o país por ela. Veio até Hampton e aceitou um emprego que o mantinha perto
dela. Ficou amigo da avó dela, do filho dela e depois dela. E, agora, estava
prestes a ter seu primeiro encontro com ela.
Tinha vindo por um motivo. Aceitou esse fato assim que
saiu do Colorado. Aceitou o fato de que Victor estava certo. Contudo, ainda não
tinha certeza de que encontrá-la — e tornar-se íntimo dela — era o motivo.
Também não tinha certeza de que não era.
A única coisa de que tinha certeza era que estava
esperando ansiosamente por seu primeiro encontro. Um dia antes, pensou o tempo
todo sobre isso enquanto dirigia sozinho pela estrada para buscar Nana. Na
primeira meia hora de volta a Hampton, Nana conversou sobre tudo, desde
política até sobre a saúde da sua irmã, antes de virar para ele com um sorriso
maroto que eleja conhecia.
— Então, quer dizer que você vai sair com a neta da
patroa, hein?
Ele se mexeu no assento.
— Ela te falou.
— Claro que ela me falou. Mas, mesmo se não tivesse me
falado, sabia que isso ia acontecer. Dois jovens atraentes, solteiros e
sozinhos? Sabia que isso ia acontecer no momento em que o contratei.
Thibault não disse nada, e, quando Nana falou, sua voz
estava repleta de melancolia.
— Ela é doce como mel.
Preocupo-me com ela às vezes.
— Eu sei.
A conversa tinha parado por ali, mas tinha sido
suficiente para que soubesse que tinha o consentimento de Nana, algo que
considerava importante, dado o lugar que Nana ocupava na vida de Elizabeth.
Agora, com a noite começando a cair, viu o carro de
Elizabeth aproximando-se da casa, com a parte da frente balançando levemente ao
passar pelos buracos. Ela não tinha falado nada a ele sobre aonde iriam, disse
apenas que se vestisse informalmente. Ele saiu na varanda quando ela estacionou
na frente da casa. Zeus veio atrás, com a curiosidade em alerta. Quando
Elizabeth saiu e aproximou-se da fraca luz da varanda, tudo o que fez foi olhar
para ela.
Como ele, estava de jeans, mas a blusa creme que usava
realçava a sua pele bronzeada. Seus cabelos cor de mel caíam na altura do
pescoço da blusa sem mangas, e ele percebeu que ela tinha uma maquiagem suave.
Parecia familiar e, ao mesmo tempo, tentadoramente desconhecida.
Zeus desceu os degraus, balançando a cauda e latindo,
e parou ao lado dela.
— Oi, Zeus. Sentiu minha falta? Foi um dia longo —
disse, fazendo carinho nele, e Zeus latiu como que se queixando, antes de
lamber a mão dela. — Isso sim foi um cumprimento — olhou para Thibault. — Como
vai? Estou atrasada?
Tentou parecer descontraído.
— Estou bem. E você chegou bem na hora. Estou feliz
que tenha vindo.
— Pensou que eu não viria?
— Este lugar não é tão fácil de se encontrar.
— Não se você passou a vida inteira nesta cidade —
apontou em direção a casa. — Então, esse é o seu lar?
— É.
— É legal — disse, olhando ao redor.
— Era o que você esperava?
— Sim. Sólido. Eficiente. Meio escondido.
Ele mostrou entender o
duplo sentido com um sorriso, depois virou-se para Zeus e deu o comando para
ficar na varanda.
Desceu a escada para aproximar-se dela.
— Ele vai ficar bem aqui fora?
— Vai. Não vai nem se mexer.
— Mas a gente vai demorar.
— Eu sei.
— Impressionante.
— Parece. Mas cães não têm muita noção de tempo. Em um
minuto, não vai se lembrar de mais nada a não ser do fato de que tem de ficar
ali. Mas não sabe o motivo.
— Como você aprendeu tanto sobre treinamento? — ela
perguntou, curiosa.
— Principalmente nos livros.
— Você lê?
Ele fez uma cara zombeteira.
— Sim. Surpresa?
— Sim. É difícil carregar livros em uma travessia a pé
pelo país.
— Não se você se desfizer deles depois de lê-los.
Foram até o carro e, quando Thibault foi em direção à
porta do motorista para abrir para ela, Elizabeth balançou a cabeça.
— Posso ter convidado você para sair, mas você é quem
vai dirigir.
— E eu que pensei que estivesse saindo com uma mulher
emancipada — protestou.
— Sou uma mulher emancipada, mas quem dirige é você. E
paga a conta também.
Ele riu ao acompanhá-la
até o outro lado. Quando se sentou atrás da direção, ela olhou para a varanda.
Zeus parecia confuso com os acontecimentos, e ela o ouviu choramingar
novamente.
— Ele parece triste.
— Deve estar. Raramente nos separamos.
— Malvado!
Sorriu pelo seu tom brincalhão e deu marcha ré no
carro.
— Devo ir ao centro da cidade?
— Não. Vamos sair da cidade hoje à noite. Vá para a
estrada principal em direção à costa. Não vamos à praia, mas tem um lugar muito
bom no caminho. Aviso quando nos aproximarmos da saída da estrada.
Thibault fez como ela falou, dirigindo pelas ruas
tranquilas conforme ia ficando mais escuro. Em poucos minutos, chegaram à
estrada, e, conforme o carro foi ganhando velocidade, as imagens das árvores
dos dois lados da estrada ficaram indistintas. Sombras alongavam--se pela
estrada, deixando o interior do carro escuro.
— Fale-me sobre Zeus.
— O que você quer saber?
— O que você quiser me contar. Algo que eu ainda não
saiba.
Ele poderia ter dito: "Comprei-o porque a mulher
da fotografia tinha um pastor-alemão", mas não disse nada.
— Comprei Zeus na Alemanha. Fui lá de avião e eu mesmo
o escolhi.
— Sério?
Ele concordou.
— O pastor na Alemanha é como a águia de cabeça branca
nos Estados Unidos. É um símbolo do orgulho nacional, e os criadores levam seu
trabalho muito a sério. Queria um cachorro que tivesse pedigree forte, sendo
assim, tive de ir buscá-lo na Alemanha. Zeus vem de uma longa linhagem de
competidores e campeões de Schutzhund.
— O que é isso?
— Em Schutzhund, os cães
são testados não só pela obediência, mas por busca e proteção. E a competição é
intensa. Geralmente dura dois dias, e, via de regra, os vencedores tendem a ser
os cães mais inteligentes e passíveis de treinamento de todos. Ele foi criado
para ambas as coisas.
— E você deu todo o treinamento? — perguntou,
impressionada.
— Desde quando ele tinha 6 meses. Quando viemos a pé
do Colorado, treinava-o todos os dias.
— Ele é um animal incrível. Você poderia dá-lo a Ben,
sabia? Ele ia adorar.
Thibault não disse nada.
Ela percebeu sua expressão e aproximou-se dele.
— Estou brincando. Jamais tiraria seu cachorro de
você.
Thibault sentiu o calor contínuo do corpo dela
irradiar pelo seu.
— Se você não se importar com a minha pergunta, mas
como Ben reagiu quando você disse que ia sair comigo hoje à noite?
— Reagiu bem. Ele e Nana já estavam planejando
assistir a alguns vídeos. Falaram ao telefone durante a semana e combinaram de
fazer uma noite de cinema. Marcaram a data e tudo mais.
— Eles sempre fazem isso?
— Costumavam fazer o tempo todo, mas será a primeira
vez desde o AVC. Sei que Ben está super animado com isso. Nana faz pipoca e
deixa-o ficar acordado até mais tarde.
— Diferente da mãe, claro.
— Claro — sorriu. — O que você acabou fazendo hoje?
— Dando uma ajeitada na casa. Limpando, lavando roupa,
fazendo compras, coisas do tipo.
Ela ergueu a sobrancelha.
— Estou impressionada. Você é realmente um animal
doméstico. Dá para fazer uma moeda pular em cima da cama depois de arrumá-la?
— Claro.
— Vai ter de ensinar o Ben
a fazer isso,
— Se você quiser.
Do lado de fora, as primeiras estrelas começaram a
surgir, e os faróis do carro dançavam pelas curvas da estrada.
— Para onde exatamente estamos indo? — perguntou
Thibault.
—Você gosta de caranguejo?
— Adoro!
— Já é um bom começo. E de dançar shag?
— Nem sei o que é isso.
— Bem, digamos que você vai ter de aprender
rapidamente.
Quarenta minutos depois, Thibault estacionou na frente
de um lugar que parecia ter sido um armazém. Elizabeth o tinha levado à área
industrial do centro da cidade de Wilmington, e eles pararam o carro na frente
de um prédio de três andares, com tábuas largas, envelhecidas ao lado. Não
tinha muita diferença dos prédios vizinhos, não fosse por um estacionamento com
quase 100 carros estacionados e uma pequena passarela de madeira circundando o
prédio, iluminada pelas mesmas luzes brancas e baratas, usadas no Natal.
— Como é o nome desse lugar?
— Shaggingfor crabs.
— Original. Mas estou tendo dificuldades em ver esse
local como uma grande atração turística.
— Não é, é restrito às pessoas da região. Uma das
minhas amigas da faculdade me deu a indicação, e eu sempre quis vir.
— Você nunca veio aqui?
— Não. Mas sei que é muito divertido.
E assim foi em direção à
passarela de madeira. Bem à frente, o rio brilhava, como se seu interior
estivesse iluminado. O som da música ia ficando cada vez mais alto. Quando
abriram a porta, a música os atingiu como uma onda, e o aroma dos caranguejos
na manteiga envolvia o ar. Thibault fez uma pausa para se adaptar a tudo
aquilo.
O enorme interior do edifício era rústico e sem
adereços. Á parte da frente estava lotada de várias mesas de piquenique
cobertas com toalhas plásticas vermelhas e brancas, que pareciam grampeadas à
madeira. As mesas estavam cheias e barulhentas, e Thibault viu garçonetes
servindo baldes de caranguejos em todas as mesas. Nos centros das mesas havia pequenas
vasilhas com manteiga derretida e vasilhas ainda menores à frente. Todos usavam
babadores de plástico e pegavam os caranguejos nos baldes gigantes, comendo-os
com as mãos. Cerveja parecia ser a bebida eleita.
Bem na frente deles, do lado que fazia margem com o
rio, havia um bar comprido — se é que aquilo poderia ser chamado de bar.
Parecia ser feito de madeira rejeitada, colocada em cima de alguns velhos
barris. As pessoas faziam filas triplas para serem servidas. Do lado oposto do
edifício, ficava o que parecia ser a cozinha. O que mais lhe chamou a atenção
foi o palco montado do outro lado do prédio, onde Thibault viu uma banda
tocando "My girl", dos Temptations. Havia, pelo menos, 100 pessoas
dançando na frente do palco, seguindo os passos de uma dança que ele não
conhecia.
— Uau — gritou.
Uma mulher magra, aparentando uns 40 e poucos anos,
ruiva e de avental, aproximou-se deles.
— Olá. Comer ou dançar?
— Os dois — disse Elizabeth.
— Nomes?
Eles se entreolharam.
— Elizabeth... — ele disse.
— E Logan — ela concluiu.
A mulher anotou os nomes deles em um bloco de papel.
— Agora, a última pergunta: diversão ou família?
Elizabeth ficou confusa.
— Como?
A mulher estourou o chiclete.
— Vocês nunca vieram aqui antes, vieram?
— Não.
— É assim. Vocês vão ter de dividir a mesa com alguém.
É assim que funciona aqui. Todo mundo divide. Agora, vocês podem pedir
diversão, o que significa que querem uma mesa cheia de energia, ou podem pedir
família, o que é geralmente mais tranquilo. Mas não posso garantir como vai ser
a sua mesa. Só faço a pergunta. Então, o que será? Família ou diversão?
Elizabeth e Thibault entreolharam-se novamente e
chegaram à mesma conclusão.
— Diversão — disseram ao mesmo tempo.
Acabaram indo parar em uma mesa com seis estudantes da
Universidade da Carolina do Norte, em Wilmington. A garçonete os apresentou
como Matt, Sarah, Tim, Allison, Megan e Steve, e os estudantes ergueram seus
copos e disseram juntos: — Olá, Elizabeth! Olá, Logan! Nós temos crabs.
Thibault segurou o riso diante do trocadilho — a
palavra crab era uma gíria para uma espécie de micose adquirida durante
relações sexuais, o que era obviamente o que eles queriam dizer — mas ficou
confuso quando percebeu que eles estavam inesperadamente encarando-o.
A garçonete sussurrou:
— Vocês devem dizer: queremos crabs, principalmente se
vocês passarem para nós.
Dessa vez, ele riu, junto com Elizabeth, antes de
dizer o que tinha de dizer, participando do ritual que todo mundo parecia
seguir por ali.
Sentaram de frente um para o outro. Elizabeth acabou
sentando ao lado de Steve, que não conseguia esconder o fato de tê-la achado
extremamente atraente, enquanto Thibault sentou-se ao lado de Megan, que não
mostrou interesse algum por ele, pois estava muito mais interessada em Matt.
Uma garçonete gorducha e
cabeluda passou por eles, e mal parou para dizer:
— Mais crabs?
— Pode me dar crabs a hora que quiser — os
estudantes respondiam em coro. À sua volta, Thibault ouviu a mesma resposta
inúmeras vezes. A outra opção que também se ouvia era: "Não acredito
que você me passou crabs", que dava a entender que não era para servir
mais. Ele se lembrou do The Rocky Horror Picture Show, em que os
clientes sabiam todas as respostas oficiais, e os novatos iam aprendendo com
eles.
A comida era de primeira classe. O cardápio só tinha
um único item, preparado de uma única maneira, e todo balde vinha com
guardanapos extras e babadores. Restos de caranguejos eram jogados nos centros
das mesas — uma tradição — e, de vez em quando, adolescentes usando aventais
vinham retirá-los.
Como prometido, os estudantes eram barulhentos.
Contavam piadas sem parar, muitas indiretas inofensivas para Elizabeth, e duas
cervejas para cada um, o que só aumentava a euforia. Depois do jantar, Thibault
e Elizabeth foram ao toalete para lavar as mãos. Quando voltaram, ela pegou no
braço dele.
— Pronto para dançar shag? — perguntou
sugestivamente.
— Não tenho certeza. Como é que se faz?
— Aprender a dançar o shag é como aprender a
ser sulista. É aprender a relaxar enquanto você ouve o oceano e sente a música.
— Suponho que já tenha feito isso antes.
— Uma ou duas vezes — disse, com falsa modéstia.
— E você vai me ensinar?
— Serei sua parceira. Mas a aula começa às 21 horas.
— A aula?
— Todo sábado à noite. É
por isso que está tão lotado. Eles dão aulas para iniciantes enquanto os
frequentadores habituais descansam, e faremos o que eles mandarem. Começa às 21
horas.
— Que horas são?
Ela olhou no relógio.
— É hora de aprender o shag.
Elizabeth dançava muito melhor do que havia dado a
entender, o que, felizmente, fez com que ele não parecesse tão mal na pista de
dança também. Mas o melhor de dançar com ela era a descarga quase elétrica que
sentia sempre que tocava ou sentia o cheiro dela quando girava seus braços, uma
mistura de calor e perfume. Seu cabelo ficava selvagem com o ar úmido, e sua
pele brilhava ao transpirar, deixando-a mais natural e indomada. De vez em
quando, olhava para ele ao girar, seus lábios se abriam em um sorriso já
conhecido, como se soubesse exatamente o efeito que provocava nele.
Quando a banda resolveu fazer um intervalo, seu
primeiro instinto foi sair da pista junto com a multidão, mas Elizabeth o fez
parar quando a gravação tocou "Unforgettable", de Nat King
Cole. Ela olhou para ele e na mesma hora ele soube o que devia fazer.
Sem falar nada, deslizou um braço em suas costas e
segurou na mão dela, colocando-se em posição. Ficaram olhando um para o outro
enquanto ele a puxava para mais perto de si, e, bem devagar, começaram a se
mover ao ritmo da música, girando em suaves círculos.
Thibault mal prestava atenção nos outros casais que se
movimentavam na pista. Conforme a música tocava ao fundo, Elizabeth encostou-se
tão próxima a ele que dava para sentir sua respiração lânguida e lenta. Ele
fechou os olhos quando ela aninhou sua cabeça no ombro dele e, naquele
instante, nada mais parecia ter importância. Nem a música, nem o lugar, nem os
outros casais a sua volta. Entregou-se para sentir o corpo dela junto ao seu,
girando lentamente pelo chão coberto de serragem, perdido em um mundo que
parecia ter sido feito só para os dois.
Dirigindo pelas ruas escuras, Thibault segurava a mão
dela e sentia seu dedo deslizar lentamente pela mão dele no silêncio do carro.
Quando ele estacionou na
garagem um pouco antes das 23 horas, Zeus ainda estava na varanda e levantou a
cabeça quando Thibault desligou o carro. Virou-se para olhar para ela.
— Tive uma noite maravilhosa — murmurou. Esperava que
ela fosse dizer o mesmo, mas surpreendeu-se com sua resposta.
— Você não vai me convidar para entrar? — sugeriu ela.
— Sim — ele respondeu, simplesmente.
Thibault abriu a porta para Elizabeth, e Zeus
sentou-se e só levantou-se quando ela saiu. Começou então a abanar o rabo.
— Oi, Zeus.
— Venha — Thibault deu o comando, e o cachorro saiu da
varanda e veio correndo até eles. Rodeou os dois, emitindo latidos agudos. A
boca meio aberta como se estivesse sorrindo para conseguir a atenção deles.
— Ele sentiu a nossa falta — disse, abaixando-se. —
Sentiu, não é garotão? — quando abaixou, Zeus lambeu seu rosto.
Ela se levantou e torceu o nariz antes de limpar o
rosto.
— Isso foi nojento.
— Não para ele — disse Thibault, que apontou para a
casa. — Vamos? Tenho de avisá-la para não esperar muito.
— Tem cerveja na geladeira?
— Tem.
— Então, não tem por que se preocupar.
Subiram a escada da varanda. Thibault abriu a
porta e acendeu a luz; um abajur com uma única lâmpada
proporcionava uma iluminação fraca perto de uma poltrona ao lado da janela. No
meio da sala havia uma mesa de centro, decorada apenas com algumas velas; de
frente para ela, havia um sofá de tamanho médio. Tanto o sofá quanto a poltrona
estavam cobertos com uma capa azul-marinho e, atrás deles, uma estante continha
uma pequena coleção de livros. Um porta-revista vazio junto com outro abajur
completavam o mobiliário minimalista.
Mesmo assim, era um lugar
limpo. Thibault já tinha falado sobre isso um pouco mais cedo, naquela mesma
noite. O piso de madeira tinha sido esfregado, as janelas lavadas, e ele tinha
tirado o pó de tudo na sala. Não gostava de bagunça e desprezava pó. A poeira
sem fim no Iraque só tinha reforçado sua tendência a ter mania de limpeza.
Elizabeth examinou a cena antes de andar pela sala.
— Gostei — disse. — Onde comprou a mobília?
— Faz parte da casa.
— O que explica as capas.
— Exatamente.
— Não tem televisão?
— Não.
— Rádio?
— Não.
— O que você faz quando está aqui?
— Durmo.
—E?
— Leio.
— Romances?
— Não — disse, depois mudou de idéia. — Na verdade,
alguns. Mas a maioria dos livros que leio são biografias e livros históricos.
— Nada de livros sobre antropologia?
— Tenho um livro de Richard Leakey. Mas não gosto de
muitos dos livros da pesada antropologia pós-moderna que parecem dominar o
campo atualmente e, de qualquer forma, não são livros fáceis de ser encontrados
em Hampton.
Andou ao redor da mobília, passando a mão na capa do
sofá.
— Sobre o que ele escreveu?
— Quem? Leakey?
Ela sorriu
— Sim. Leakey.
Mordeu os lábios, tentando organizar o pensamento.
— A antropologia tradicional está principalmente
interessada em cinco áreas: quando o homem começa a evoluir, quando começa a
andar ereto, por que há tantas espécies de hominídeos, por que e como essas
espécies evoluíram, e o que tudo isso quer dizer para a evolução da história do
homem moderno. O livro de Leakey trata dos quatro últimos, com ênfase especial
em como o surgimento das ferramentas e das armas influenciou na evolução do
Homo sapiens.
Ela não conseguia esconder o fato de estar se
divertindo, mas dava para perceber que também estava impressionada.
— Já volto. Fique à vontade. Voltou com duas garrafas
de cerveja e uma caixa de fósforos. Elizabeth estava sentada no meio do sofá;
deu uma garrafa a ela e sentou-se ao seu lado, deixando os fósforos na mesa.
Ela imediatamente pegou a caixa de fósforos e acendeu
um, observando a pequena chama tremeluzindo para a vida. Com agilidade, levou-o
até os pavis, acendendo as duas velas, depois apagou o fósforo.
— Espero que não se importe. Adoro o aroma de velas.
— De forma alguma.
Ele se levantou do sofá e apagou o abajur, a sala
estava agora iluminada pelo tímido brilho das velas. Ele sentou-se mais perto
dela quando voltou ao sofá, observando-a olhar para a vela. Tomou um gole de
cerveja, imaginando no que ela poderia estar pensando.
— Sabe há quanto tempo que não fico sozinha à luz de
velas com um homem? — disse, virando o rosto para ele.
— Não — ele respondeu.
— Foi uma pegadinha, porque a resposta é nunca
— ela mesma parecia surpresa com o fato. — Não é
estranho? Já fui casada, tenho um filho, já namorei, e isso nunca tinha
acontecido antes — hesitou. — E se você quer saber a verdade, esta é a primeira
vez que estou sozinha com um homem, na casa dele, desde que me divorciei —
disse, quase envergonhada. — Me diga uma coisa — disse, com o rosto bem próximo
ao dele.
— Você teria me convidado
para sair se a iniciativa não tivesse sido minha? Responda com sinceridade. Vou
saber se você estiver mentindo.
Rodou a garrafa com as mãos.
— Não sei ao certo.
— Por que não? — pressionou. — Qual o problema
comigo...
— Não tem nada a ver com você — interrompeu. — Tem
mais a ver com o que Nana poderia pensar.
— Por que ela é sua chefe?
— Porque ela é sua avó. Porque a respeito. Mas,
principalmente, porque respeito você. Me diverti muito hoje à noite. Não
consigo imaginar ter passado uma noite melhor na companhia de ninguém mais nos
últimos cinco anos.
— E ainda assim você não teria me convidado? — ela
parecia confusa.
— Não disse isso. Disse que não tinha certeza.
— O que é o mesmo que não.
— O que significa que estava procurando encontrar uma
maneira de convidá-la sem ofendê-la, mas você foi mais rápida. Entretanto, se
estiver perguntando se eu queria convidá-la para sair, a resposta é sim, eu
queria.
Tocou seu joelho no dela.
— De onde vem tudo isso?
— Digamos que não sou uma mulher de sorte no mundo dos
relacionamentos afetivos.
Ele sabia que era melhor ficar em silêncio, mas,
quando ergueu o braço, sentiu-a aninhando-se debaixo dele. — No começo, eu não
me importava — disse, finalmente. — Quer dizer, estava tão ocupada com Ben e a
escola, que não prestava muita atenção nisso. Mas depois, quando continuava
acontecendo, comecei a pensar mais no assunto. Pensava sobre mim. E me fazia as
perguntas mais absurdas possíveis. Será que estava fazendo algo errado? Será
que não estava prestando atenção suficiente? Será que tenho um cheiro
esquisito? — tentou sorrir, mas não conseguia esconder totalmente a tristeza
interior e a dúvida. — Como disse, absurdos. Porque de vez em quando conhecia
uma pessoa e achava que estávamos nos dando bem e, de repente, ele deixava de aparecer. Não só parava de
telefonar, mas agia como se eu tivesse uma doença contagiosa. Não entendia.
Ainda não entendo. E isso me incomodava. Me machucava. Com o tempo, foi ficando
cada vez mais difícil culpar os homens, e finalmente cheguei à conclusão de que
havia algo errado comigo. Que simplesmente estava destinada a viver minha vida
sozinha.
— Não há nada de errado com você — disse, pressionando
o braço dela para dar-lhe segurança.
— Se você me der uma chance, pode ter certeza de que
vai encontrar alguma coisa.
Thibault pôde perceber a mágoa por trás da
brincadeira.
— Não. Não acho que vou.
— Você é um doce.
— Sou honesto.
Ela sorriu e tomou um gole de cerveja.
— A maior parte do tempo.
— Você não me acha honesto?
Ela deu de ombros.
— Como disse. A maior parte do tempo.
— O que isso quer dizer?
Colocou a garrafa de cerveja na mesa e organizou seus
pensamentos.
— Acho que é uma pessoa maravilhosa. E esperto,
trabalhador, gentil, e é maravilhoso com Ben. Isso eu sei, ou pelo menos acho
que sei, porque isso eu vi. Mas é o que você não diz que me faz ter dúvidas a
seu respeito. Digo a mim mesma que conheço você, mas, quando penso nisso,
percebo que não é verdade. Como você era na faculdade? Não sei. O que aconteceu
com você depois disso? Não sei. Sei que você esteve no Iraque e sei que veio do
Colorado a pé, mas não sei o porquê. Quando pergunto, você diz que Hampton
pareceu ser um lugar agradável. Você é uma pessoa inteligente, com nível
universitário, mas está feliz em trabalhar por um salário-mínimo. Quando
pergunto o porquê, você diz que é porque gosta de cachorros — ela passou as
mãos pelos cabelos. — A questão é esta: sinto que você está me falando a
verdade, só que você não está me falando toda a verdade. E a parte
que está deixando de fora é a parte que me ajudaria a entender quem você é.
Ouvindo-a, Thibault tentou não pensar no que não tinha
dito a ela. Sabia que não podia contar tudo; nunca contaria tudo a ela. Ela
jamais entenderia, mas... ela queria saber quem ele realmente era. Mais do que
tudo, percebeu que queria que ela o aceitasse.
— Não falo sobre o Iraque porque não gosto de me
lembrar do tempo que passei lá.
Ela balançou a cabeça.
— Você não tem que me falar se não quiser...
— Quero — disse em um tom calmo. — Sei que você lê os
jornais, então provavelmente tem uma imagem de como é. Mas não é como imagina,
e não há nenhum jeito de poder trazer essa realidade para você. É algo que tem
de ser vivido. Quer dizer, a maior parte do tempo não era tão ruim como você
deve achar que era. Grande parte do tempo — a maior parte — era normal. Mais
fácil para mim do que para os outros, já que eu não tinha esposa e filhos.
Tinha amigos. Tinha rotinas a serem cumpridas. A maior parte do tempo, remava
conforme a maré. Mas, às vezes, ficava muito ruim. Ruim demais. Ruim a ponto de
me querer fazer esquecer que alguma vez tinha estado lá.
Ela ficou em silêncio antes de dar um longo suspiro.
— E você veio parar aqui em Hampton por causa do que
houve no Iraque?
Ele tirou o rótulo da garrafa de cerveja, descolando o
canto devagar e esfregando o vidro com a unha.
— De certa forma, sim.
Ela percebeu sua hesitação e colocou a mão no braço
dele. O calor dela pareceu liberar algo que estava preso dentro dele.
— Victor era meu melhor amigo no Iraque. Ele esteve
comigo nas três vezes em que estive lá. Nossa unidade sofreu muitas baixas, e,
no fim, decidi apagar tudo o que vivi naquele lugar. E consegui, quase tudo,
mas para Victor não foi tão fácil assim. Ele não conseguia parar de pensar
nisso. Depois da nossa dispensa, seguimos caminhos distintos, tentando
recomeçar a vida. Ele voltou para a Califórnia e eu para o Colorado, mas ainda
precisávamos um do outro, sabe? Nos falávamos ao telefone, enviávamos e-mails
nos quais nós dois fingíamos que estava indo
tudo bem com o fato de que havíamos passado os últimos quatro anos tentando
não ser mortos todo santo dia; as pessoas aqui agiam como se fosse o fim do
mundo quando não conseguiam estacionar o carro na vaga que queriam ou quando o
café comprado no Starbucks vinha com o sabor errado. Bem, acabamos nos
encontrando para uma pescaria em Minnesota... — Fez uma pausa, não querendo
lembrar o que havia acontecido, mas sabendo que era preciso. Deu um longo gole
na sua cerveja e colocou a garrafa na mesa. — Isso aconteceu no outono
passado... estava tão feliz por vê-lo novamente. Não falamos sobre o Iraque,
mas não era necessário. Passar alguns dias na companhia de alguém que sabia o
que se tinha passado era suficiente para nós dois. Nessa época, Victor estava
indo bem. Não estava ótimo, mas estava bem. Estava casado, com um bebê a
caminho, e lembro-me de pensar que, apesar de ele ainda ter pesadelos e alguns
flashbacks, ele ia ficar bem.
Olhou para ela com uma emoção que não conseguia
nomear.
— Em nosso último dia, fomos pescar bem cedo.Estávamos
só nós dois em um pequeno barco a remo e, conforme remávamos, o lago estava
imóvel como vidro, como se fôssemos as primeiras pessoas a entrar naquelas
águas. Lembro-me de ter visto um falcão voando sobre o lago e da sua imagem
refletida diretamente na água, pensando que nunca tinha visto nada tão lindo —
balançou a cabeça diante da lembrança. — Planejávamos terminar antes de o lago
ficar muito cheio; depois íamos para a cidade para tomar cerveja e comer
churrasco. Uma pequena comemoração para finalizar nossa viagem. Mas perdemos a
noção do tempo e acabamos ficando no lago mais do que pretendíamos. — Começou a
massagearas têmporas, tentando manter a compostura. — Já tinha visto a lancha mais
cedo. Não sei por que prestei atenção naquela em particular dentre todas as
outras. Talvez o tempo em que fiquei no Iraque tivesse a ver com isso, mas
lembro-me de ter dito a mim mesmo para ficar de olho neles. Mesmo assim, era
estranho. Não que eles estivessem fazendo alguma coisa muito diferente dos
outros por lá. Eram só alguns adolescentes se divertindo, praticando esqui
aquático e tubing. Havia seis na lancha — três rapazes e três moças —
e dava para ver que estavam lá para curtir a água pela última vez enquanto
ainda estava quente o suficiente.
Quando continuou, sua voz estava mais rouca.
— Pressenti o que ia
acontecer, e sabia que íamos nos dar mal antes mesmo de acontecer. Há um som
específico que um motor faz quando vem em sua direção em alta velocidade. É
como se o ronco começasse a se arrastar atrás do motor por um milionésimo de
segundo que o cérebro só consegue perceber de forma subconsciente, e sabia que
algo de ruim iria acontecer. Mal tive tempo de virar a cabeça quando vi a proa
vindo em nossa direção a mais de 50 quilômetros por hora. Nesse momento, Victor
percebeu o que estava acontecendo, ainda consigo me lembrar de seu olhar — era
uma mistura terrível de medo e surpresa — o mesmo olhar que tinha visto nos
rostos de milhares de amigos no Iraque um pouco antes de morrerem. Thibault
expirou lentamente. — A lancha partiu nosso barco ao meio. Atingiu Victor bem
na cabeça e o matou instantaneamente. Em um minuto estávamos conversando sobre
como ele estava feliz com sua esposa, e, no outro, meu melhor amigo — o melhor
amigo que tive na vida — estava morto.
Elizabeth colocou a mão no ombro dele e apertou.
Estava pálida.
— Sinto muito...
Ele não parecia ouvir.
— Não é justo, sabe? Sobreviver a três idas ao Iraque,
sobreviver ao que passamos por lá... para morrer em uma pescaria? Não fazia
sentido. Depois disso, não sei, fiquei bem desequilibrado. Não fisicamente. Mas
mentalmente, é como se tivesse caído em um buraco profundo por um bom tempo.
Apenas, desisti. Não conseguia comer, só dormia algumas horas por noite, e
havia momentos em que não conseguia parar de chorar. Victor tinha confessado a
mim que era assombrado por visões de soldados mortos, e, depois da morte dele,
comecei a ter as mesmas visões. Toda vez que tentava dormir, via Victor ou
cenas dos combates que tínhamos vivenciado e não conseguia parar de tremer. A
única coisa que me impediu de enlouquecer completamente foi Zeus.
Parou para olhar para Elizabeth. Apesar das suas
lembranças, sentia-se impressionado pela beleza do rosto dela e pelo dourado do
cabelo.
Seu semblante mostrava compaixão.
— Nem sei o que dizer.
— Eu também não. Até hoje, não sei o que dizer.
— Você sabe que não foi culpa sua, não sabe?
— Sim. Mas esse não é o
fim da história — colocou sua mão sobre a dela sabendo que tinha ido longe
demais para parar por ali. — Victor gostava de falar sobre destino. Acreditava
piamente em coisas desse tipo e, no nosso último dia juntos, disse que eu
saberia qual seria meu destino quando o encontrasse. Não conseguia tirar esse
pensamento da cabeça, por mais que tentasse. Não parava de ouvi-lo dizer isso
e, aos poucos, comecei a perceber que não tinha certeza de onde encontrá-lo.
Sabia que não estava no Colorado. Finalmente, coloquei a mochila nas costas e
comecei a andar. Minha mãe achou que tivesse perdido o juízo. Mas a cada passo
que dava na estrada, começava a sentir-me renovado. Como se a viagem fosse o
necessário para a minha cura. E quando cheguei a Hampton, sabia que não
precisava mais continuar. Era para lá que deveria ter ido.
— Então, ficou.
— Sim.
— E o seu destino?
Ele não respondeu. Contou a ela toda a verdade que
podia, e não queria mentir. Olhou para a mão dela debaixo da sua e,
subitamente, tudo parecia ser um erro. Sabia que devia terminar com tudo o
quanto antes. Levantar do sofá e levá-la até o carro. Dizer boa-noite e ir
embora de Hampton antes do nascer do sol no dia seguinte. Mas não conseguia,
não tinha energia para levantar do sofá. Era como se uma força maior o
segurasse, e virou-se para ela sentindo-se novamente impressionado. Tinha
atravessado o país a pé à procura de uma mulher que só conhecia por meio de uma
fotografia, e acabou lentamente, mas definitivamente, apaixonando-se por essa
mulher real, vulnerável, bonita, que o fazia sentir-se vivo de uma forma que
não sentia desde a guerra. Não entendia inteiramente a situação, mas nunca tivera
tanta certeza de um fato na sua vida.
O que viu no olhar dela foi o suficiente para lhe
dizer que ela se sentia exatamente da mesma forma, e ele gentilmente puxou-a
para perto de si. Aproximou seu rosto do dela e sentiu sua respiração quente ao
tocar seus lábios uma vez, duas, até finalmente selá-los com um beijo.
Segurou os cabelos dela com suas mãos e beijou-a com
tudo que tinha, com tudo que queria ser. Sentiu um suave murmúrio de prazer ao
deslizar seus braços ao redor dela. Abriu a boca levemente e sentiu a língua
dela contra a sua, e, subitamente, sabia que ela era a pessoa certa para ele,
que o que estava acontecendo era a coisa certa para os dois. Beijou o rosto
dela e o pescoço, mordiscando suavemente, depois beijou seus lábios novamente.
Levantaram-se do sofá, ainda entrelaçados, e ele a levou silenciosamente ao
quarto.
Fizeram amor sem pressa
alguma. Thibault movia-se por cima dela, desejando que aquele momento durasse
para sempre, sussurrando seu amor por ela. Sentia o corpo dela tremer de prazer
repetidamente. Depois, aninhou-se em seus braços. Conversaram, riram e
acariciaram-se, e depois de terem feito amor pela segunda vez, ele deitou-se ao
lado dela, olhando em seus olhos antes de deslizar os dedos gentilmente em seu
rosto. Sentiu que as palavras emergiram de dentro dele, as quais nunca imaginou
dizer a alguém.
— Eu te amo, Elizabeth — sussurrou, sabendo que suas
palavras eram verdadeiras em todos os sentidos.
—
Eu também te amo, Logan.
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