Capítulo 19 - Thibault
No fim do sábado à noite, depois que Elizabeth saiu,
Thibault viu Victor sentado em sua sala de estar, ainda estava de shorts e com
a camisa que usava no dia em que morreu.
Vê-lo fez Thibault parar. Tudo o que pôde fazer foi
olhar. Não era possível, aquilo não estava acontecendo. Thibault sabia que
Victor estava morto e enterrado na região de Bakersfíeld. Sabia que Zeus teria
reagido à presença de qualquer pessoa real em sua casa, mas Zeus simplesmente
foi tomar água.
No silêncio, Victor sorriu.
— Ainda tem mais — disse, sua voz rouca indicava uma
promessa.
Quando Thibault piscou, Victor tinha desaparecido e
era óbvio que nunca tinha estado ali.
Era a terceira vez que Thibault via Victor desde que
ele havia morrido. A primeira vez tinha sido no funeral, quando Thibault ficou
em um canto, próximo à saída da igreja e viu Victor olhar para ele do fim do
corredor e dizer: — Não foi culpa sua — depois desapareceu pelo ar. Thibault
sentiu um nó na garganta, sentindo-se forçado a correr para conseguir respirar.
A segunda aparição ocorreu três semanas antes de ele
iniciar sua caminhada. Dessa vez, aconteceu na mercearia, enquanto Thibault
revirava a carteira, tentando calcular quanta cerveja poderia comprar. Andava
bebendo muito naquela época e, ao contar as notas, viu uma imagem pelo canto do
olho. Victor balançou a cabeça, mas não disse nada. Não precisava dizer nada.
Thibault sabia que estava dizendo a ele que era hora de parar de beber.
Agora, isso.
Thibault não acreditava em fantasmas e sabia que a
imagem de Victor não era real. Não havia espectro algum o assustando, nenhuma
visita do além, nenhum espírito desassossegado com uma mensagem para lhe
entregar. Victor era produto da sua imaginação, e Thibault sabia que a imagem
do amigo tinha sido formada em seu subconsciente. Afinal de contas, Victor era
a única pessoa a quem Thibault sempre ouvia.
Sabia que o acidente de
barco tinha sido apenas isso: um acidente. Os garotos que estavam guiando o
barco ficaram traumatizados, e seu horror diante do ocorrido era verdadeiro.
Quanto à bebida, bem no fundo, sabia que estava lhe causando mais mal do que
bem. Embora, de alguma forma, parecesse mais fácil ouvir a Victor.
A última coisa que esperava era vê-lo mais uma vez.
Refletiu sobre as palavras de Victor, "Ainda tem mais", e
imaginou se estariam relacionadas a sua conversa com Elizabeth. De alguma
forma, achava que não, mas não tinha como descobrir o que o incomodava.
Suspeitava de que, quanto mais o pressionasse para uma resposta, seria menos
provável que ela viria. O subconsciente agia de forma engraçada.
Foi até a cozinha servir-se de um copo de leite e
colocar comida para Zeus e, depois, foi para o quarto. Deitado na cama, pensou
sobre as coisas que havia dito a Elizabeth.
Pensou muito mesmo se deveria tocar no assunto ou não.
Não tinha certeza do que esperava conseguir ao fazer isso, além da
possibilidade de abrir os olhos dela para o fato de que Keith Clayton pudesse
estar controlando sua vida de uma forma que ela nem pudesse imaginar.
E era exatamente isso que o homem estava fazendo.
Thibault teve certeza disso assim que percebeu que alguém havia estado em sua casa.
É claro que poderia ter sido qualquer um — alguém querendo ganhar uma grana
fácil pegando algumas coisas que pudessem ser vendidas em lojas de penhores,
mas a forma como tinha sido feito sugeria algo diferente. Estava tudo muito
arrumado. Nada tinha sido revirado. Nada estava nem mesmo fora do lugar. Quase
tudo, porém, tinha sido arrumado.
O cobertor na cama foi o primeiro a denunciar a
invasão. Havia uma pequena ruga no cobertor, feita por alguém que não sabia
arrumar a cama dentro dos padrões militares; algo que poucos notariam, se é que
notariam. Ele notou. As roupas nas gavetas mostravam fatos similares: uma dobra
aqui, uma manga dobrada de forma errada ali. Alguém não tinha apenas entrado na
casa enquanto ele estava trabalhando, como também tinha dado uma busca
completa.
Mas por quê? Thibault não tinha nada de valor para ser
roubado. Uma rápida olhada pela janela teria deixado isso claro. Não só não
havia nenhum equipamento eletrônico na sala de estar, como havia um quarto
totalmente vazio, e o quarto em que ele dormia tinha somente uma cama, um
criado-mudo e um abajur. Além dos pratos e utensílios de cozinha e um velho
abridor de latas elétrico no balcão, a
cozinha estava vazia também. A despensa tinha comida de cachorro, pão e um pote
com pasta de amendoim. Mas alguém tinha perdido seu tempo para revistar a casa
de cima a baixo mesmo assim, incluindo debaixo do colchão. Alguém tinha
cuidadosamente revistado suas gavetas e arrumado tudo depois.
Nenhum sinal de violência por não ter encontrado nada
de valor. Nenhuma frustração evidente por ter achado a invasão uma perda de
tempo. Em vez disso, o ladrão tentou apagar seu rastro.
Quem quer que tenha entrado em sua casa, não o fez
para roubar, mas para procurar por algo. Algo específico. Demorou um tempo para
descobrir o que po-deria ser e quem poderia ter sido o responsável por isso.
Keith Clayton queria sua máquina fotográfica. Ou, muito provavelmente, queria o
cartão de memória. Provavelmente porque as fotografias lá contidas iriam
metê-lo em encrencas. Não era preciso pensar muito, levando em consideração o
que Clayton estava fazendo na primeira vez em que se encontraram. Tudo bem,
então Clayton queria apagar seu rastro. Mas havia ali algo mais que não dava
para ser visto. E tinha a ver com Elizabeth.
Não fazia sentido ela não ter tido relacionamento
algum nos últimos dez anos. Mas vinha ao encontro de algo que tinha ouvido na
mesa de sinuca quando mostrou sua foto aos homens da região. O que foi que um
deles disse? Demorou um tempo para lembrar exatamente as suas palavras, e ele
desejou ter prestado mais atenção àquele comentário. Estava tão concentrado em
descobrir o nome de Elizabeth, que acabou ignorando o resto — um erro. Pensando
em retrospectiva, havia um tom de ameaça no comentário dele: "...garanto
que não sai com ninguém. O ex dela não deixa, e pode acreditar em mim, você não
ia querer se meter com ele."
Pensou no que sabia sobre Keith Clayton. Membro de uma
família poderosa. Um valentão. Nervosinho. Tinha uma posição que facilitava o abuso
do poder. Alguém que pensava merecer o que quisesse quando quisesse?
Thibault não tinha certeza quanto à última hipótese,
mas se encaixava no perfil.
Clayton não queria que Elizabeth visse outros homens.
Ela não teve relacionamentos significativos durante anos. Elizabeth às vezes
perguntava-se por quê, mas nunca levou em consideração a relação entre o
ex-marido e os relacionamentos fracassados. Para Thibault, parecia totalmente
plausível que Clayton estivesse manipulando as pessoas e os lugares — pelo
menos, de alguma forma ainda controlava a
vida dela. Para Clayton saber que Elizabeth estava saindo com alguém no
passado, significava que estava prestando atenção nela há anos. Assim como
estava prestando atenção agora.
Não era difícil imaginar como Clayton tinha terminado
os relacionamentos anteriores dela, mas, até agora, tinha ficado longe de
Thibault e Elizabeth. Até agora, Thibault não o tinha visto espionando a
distância, não tinha notado nada de diferente. Em vez disso, Clayton entrou na
sua casa em busca do cartão de memória quando Thibault estava trabalhando.
Tentando matar dois coelhos com uma só cajadada?
Provavelmente. Mas a questão era, qual o propósito?
Expulsar Thibault da cidade, no mínimo. Mesmo assim. Thibault tinha a sensação
de que a coisa não pararia por aí. Como Victor tinha dito: "Ainda tem
mais".
Queria compartilhar com Elizabeth o que sabia sobre
seu ex, mas não podia contar sobre o comentário no salão de bilhar. Isso
significaria ter de contar sobre a fotografia, e ainda não poderia fazer isso.
Em vez disso, queria mostrar o caminho certo para ela, esperando que ligasse os
fatos sozinha. Juntos, assim que soubessem do que Clayton era capaz para
sabotar seus relacionamentos, poderiam pensar no que fazer. Eles se amavam.
Saberiam o que esperar. Tudo daria certo.
Seria essa a razão da sua vinda? Apaixonar-se por
Elizabeth e construir uma vida juntos? Era esse o seu destino?
Por alguma razão, não parecia certo. As palavras de
Victor pareciam confirmar o fato de que havia uma outra razão para sua vinda.
Apaixonar-se por Elizabeth era somente parte disso. Mas não era tudo. Algo mais
iria acontecer.
"Ainda tem mais."
***
Thibault dormiu o resto da noite sem acordar, como
acontecia desde que havia chegado na Carolina do Norte. Coisa de militar — ou,
mais precisamente, coisa de combate, algo que se aprende por necessidade.
Soldados cansados cometem erros. Seu pai dizia isso. Todo oficial que conheceu
dizia isso. Seu tempo de experiência de guerra confirmou a verdade dessa
sentença. Aprendeu a dormir quando tinha de dormir, por mais caótica que fosse
a situação, acreditando que as coisas ficariam melhores.
Tirando o breve período
depois da morte de Victor, dormir nunca tinha sido um problema. Gostava de
dormir, e gostava da forma como seus pensamentos pareciam se misturar enquanto
sonhava. No domingo, ao acordar, visualizou uma roda com raios emergindo do
centro. Não tinha certeza do porquê, mas, minutos depois, caminhando com Zeus
lá fora, percebeu, de repente, que Elizabeth não era o centro da roda, como ele
supunha inconscientemente. Em vez disso, percebeu que tudo que tinha acontecido
desde que havia chegado em Hampton parecia girar ao redor de Clayton.
Afinal de contas, Clayton tinha sido a primeira pessoa
que ele encontrou na cidade. Ele havia pego a máquina de Clayton. Clayton e
Elizabeth tinham sido casados. Clayton era pai de Ben. Clayton havia sabotado
os relacionamentos de Elizabeth. Clayton os tinha visto juntos quando trouxe
Ben para casa com o olho roxo; em outras palavras, ele foi o primeiro a saber
que havia algo entre eles. Clayton tinha invadido sua casa. Clayton — não
Elizabeth — era a razão da sua vinda para Hampton.
Ao longe, ouviu-se um trovão, abafado e ameaçador. Uma
tempestade estava a caminho, e o ar pesado anunciava que era das grandes.
Além
do que Elizabeth tinha contado a ele sobre Clayton, percebeu que sabia pouco
sobre o ex-marido dela. Quando os primeiros pingos de chuva começaram a cair,
Thibault voltou para dentro. Mais tarde, daria uma passada na biblioteca. Ia
ter de fazer um trabalho de pesquisa se tinha esperanças de obter uma impressão
melhor de Hampton e do papel que a família Clayton desempenhava por ali.
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