Capítulo 2 - Thibault

Era estranho pensar nas reviravoltas que a vida de um homem pode dar. Até no ano anterior, Thibault teria pulado de alegria diante da oportunidade de passar um fim de semana ao lado de Amy e suas amigas. Provavelmente, era exatamente disso de que precisava, mas, quando elas o deixaram na entrada da cidade de Hampton, com o calor da tarde de agosto em seu ápice, ele acenou para elas, sentindo-se estranhamente aliviado. Colocar uma carapuça de normalidade o havia deixado exausto.
Depois de sair do Colorado, há cinco meses, ele não havia passado mais do que algumas horas sozinho com alguém por livre e espontânea vontade, a única exceção tinha sido um senhor de idade em uma fazenda de laticínios, no sul de Little Rock, que o tinha deixado dormir em um quarto vazio do andar de cima da casa depois de um jantar em que havia falado tão pouco quanto o convidado. Agradeceu o fato de o senhor não ter sentido a necessidade de questioná-lo sobre as circunstâncias por que aparecera por lá. Nenhuma pergunta, nenhuma curiosidade, nenhum conselho gratuito. Só a aceitação de que Thibault não tinha vontade de conversar. Em agradecimento, Thibault ficou por lá alguns dias ajudando o fazendeiro a consertar o telhado do celeiro e depois pegou a estrada novamente, com a mochila cheia e Zeus sempre atrás dele.
Além da carona das garotas, não havia pegado mais nenhuma. Caminhara o tempo todo. Depois de deixar as chaves de seu apartamento no escritório da administradora, na metade do mês de março, havia gasto oito pares de sapatos, e sobrevivia às custas de barras de proteínas e água durante suas longas e solitárias caminhadas de uma cidade para outra. Uma vez, quando estava no Tennessee, depois de passar fome por praticamente três dias, chegou a comer cinco pilhas enormes de panquecas. Junto com Zeus, viajava durante tempestades de neve, de granizo, chuvas fortes e um calor tão intenso que chegava a causar bolhas nos braços. Tinha visto um tomado na linha do horizonte em Tulsa, Oklahoma, e quase foi atingido por um raio duas vezes. Pegou inúmeros desvios, tentando ficar longe das estradas principais, aumentando assim o tempo de viagem, às vezes por puro capricho. Caminhava até ficar cansado e procurava algum lugar para acampar no fim do dia, em qualquer lugar em que achasse que ele e Zeus não seriam incomodados. Antes do amanhecer, já pegavam a estrada novamente, assim não dava tempo de alguém tentar bancar o espertinho. Até o momento, ninguém os havia incomodado.
Imaginava ter caminhado mais de 30 quilômetros, por dia, embora não tivesse feito um registro formal do tempo e das distâncias percorridas. Esse não era o objetivo da viagem. Imaginava que algumas pessoas acreditavam que ele viajava para esquecer as lembranças do mundo que havia deixado para trás, o que dava à viagem uma conotação poética. Outros pensavam que ele caminhava simplesmente pelo prazer de caminhar. Estavam todos errados. Ele gostava de caminhar e tinha um destino ao qual chegar. Simples assim. Gostava de partir quando sentia vontade, no seu próprio ritmo, para o lugar que quisesse. Depois de passar anos cumprindo ordens no Corpo j de Fuzileiros Navais, a liberdade o atraía.
Sua mãe se preocupava com ele, mas as mães sempre se preocupam com seus filhos. Pelo menos a dele se preocupava. Telefonava freqüentemente para dizer a ela que estava bem, e, ao desligar, pensava que não estava sendo honesto com ela. Tinha estado praticamente ausente nos últimos cinco anos, e, antes das três idas ao Iraque, teve de ouvir seus sermões por telefone, lembrando-o de não tomar nenhuma decisão estúpida. Não tomou, mas chegou bem perto muitas vezes. Mesmo que não contasse todos os detalhes a ela, sabia que sua mãe lia o jornal. — E agora mais essa — sua mãe lamentou na noite em que ele havia partido. — A coisa toda me parece uma loucura. Talvez fosse. Talvez não. Ele não estava bem certo.
— O que você acha, Zeus?
O cachorro levantou a cabeça ao escutar seu nome e ficou ao lado de seu dono.
— Já sei. Está com fome. Que novidade!
Thibault parou no estacionamento de um hotel precário na entrada da cidade. Pegou a tigela e colocou o restante da comida do cão. Enquanto Zeus comia, ele ficou observando a cidade.
Hampton não era nem de longe o pior lugar que havia visto, mas também não era o melhor. Ficava às margens do South River, a 55 quilômetros de Wilmington e da costa e, à primeira vista, não parecia diferente dos milhares de vilarejos e cidades com Comunidades autossuficientes, de trabalhadores braçais, orgulhosos e cheios de histórias e tradições típicas do sul. Havia alguns semáforos pendurados nos fios que interrompiam o tráfego em direção à ponte sobre o South River. De ambos os lados da rua principal podiam-se ver pequenas casas térreas de tijolos, geminadas, estendendo-se por mais de meio quilômetro, com nomes das lojas escritos nas vitrines, anunciando lugares para comer, beber ou comprar ferramentas. Algumas velhas magnólias espalhavam-se por lá e suas raízes rachavam as calçadas. Mais ao longe, dava para ver um outdoor antigo de uma barbearia, e até uns velhinhos sentados no banco, em frente à loja. Sorriu. Curioso! Parecia uma fantasia dos anos 1950.
Entretanto, depois de uma análise mais minuciosa, percebeu que as primeiras impressões eram enganadoras. Apesar de estar localizada à margem do rio — ou talvez por isso, supôs — percebeu a decadência nos telhados, nos tijolos próximos às fundações, nas manchas de água salobra um pouco acima das fundações, o que indicava graves inundações no passado. As lojas estavam todas vazias, e ficou imaginando quanto tempo ainda ficariam abertas dada a ausência de carros estacionados à frente delas. Os centros comerciais das cidadezinhas pareciam estar fadados ao mesmo fim dos dinossauros e, se aquela não fosse diferente das outras pelas quais havia passado, um centro comercial j mais novo, provavelmente ancorado em lojas do tipo Walmart ou Piggly Wiggly, seria levada à falência.
Mesmo assim era estranho. Estar ali. Não tinha certeza de como imaginava que Hampton seria, mas não era assim.
Isso não importava. Enquanto Zeus acabava de comer, tentou calcular quanto tempo precisaria para encontrá-la. A mulher da fotografia. A mulher a quem viera encontrar.
Mas ele iria encontrá-la. Disso tinha certeza. Pegou sua mochila.
— Está pronto?
Zeus inclinou a cabeça para o lado.
— Vamos procurar um quarto. Quero comer e tomar um banho. E você também precisa de um.
Thibault deu alguns passos e percebeu que Zeus não saía do lugar. Olhou por cima dos ombros.
— Não me olhe assim. É óbvio que você precisa um banho. Você está fedendo.
Zeus mantinha-se imóvel.
— Muito bem. Faça como achar melhor. Eu vou.
Foi em direção à recepção para fazer o cadastro, sabendo que Zeus viria em seguida. No fim, Zeus sempre vinha. Até ter encontrado a fotografia, a vida de Thibault ia como há muito havia planejado. Ele sempre tinha um plano. Quis ser bem-sucedido na escola e conseguiu; quis praticar vários esportes e cresceu praticando quase todos. Quis aprender violino e tornou-se competente o suficiente para compor sua própria música. Depois de se formar na Universidade do Colorado, planejou entrar para os Fuzileiros Navais; e o recrutador ficou emocionado com sua decisão de alistar-se como soldado em vez de oficial. Chocado, porém emocionado. A maioria dos universitários não mostrava interesse por esse cargo, mas era exatamente isso que ele queria.
O atentado ao World Trade Center não teve muito a ver com sua decisão, pois alistar-se no serviço militar parecia ser algo natural a ser feito, já que sei pai tinha sido Fuzileiro Naval por quinze anos. Sei pai havia-se iniciado como soldado raso e terminado sua carreira como um daqueles sargentos grisalhos, de queixos de aço, que intimidavam a todos menos suas esposas e os pelotões que comandava. Tratava aqueles jovens como se fossem seus filhos, sua única intenção, costumava dizer a eles, era trazê-los de volta para casa, para suas mães, sãos e salvos e mais adultos. Nesse tempo, seu pai deve ter assistido a mais de 50 casamentos de homens que não se imaginavam casando sem a sua bênção. Também era um bom fuzileiro. Havia sido condecorado com um Bronze Star e dois Purple Hearts no Vietnã, e pelos anos em que serviu em Granada, Panamá, Bósnia na Primeira Guerra do Golfo. Seu pai não se preocupava com transferências, por isso Thibault havia passado a maior parte da adolescência mudando de um lugar para outro, vivendo em diferentes bases militares ao redor do mundo. De certa forma, Okinawi tinha mais cara de lar do que o Colorado e, apesar de seu japonês estar um pouco enferrujado, acreditava que após uma semana em Tóquio resgataria a fluência do passado. Assim como seu pai, imaginava que se aposentaria na Marinha, mas, diferente dele, pretendia viver muito tempo depois disso. Seu pai havia falecido de um ataque cardíaco apenas dois anos após ter pendurado definitivamente a farda no cabide, um infarto agudo que veio do nada. Em um instante ele estava tirando a neve da entrada da casa com a pá e, no outro, estava morto. Isso havia acontecido há treze anos. Thibault tinha 15 anos na época.
Aquele dia e o dia do funeral representavam as lembranças mais marcantes da sua vida antes de se alistar na marinha. Ter sido criado como filho de militar ajudava a amenizar situações como essas, simplesmente por causa da freqüência das mudanças de ambientes.
Os amigos vão e vêm, as malas são feitas e desfeitas, a casa possui somente o estritamente necessário e, assim, não há muito que fique de significativo. Ensina-os que mesmo que algumas pessoas sejam deixadas para trás, outras inevitavelmente pegarão eu lugar e que todo lugar tem aspectos positivos — e negativos — a oferecer. Isso obriga uma criança a amadurecer precocemente.
Até mesmo o tempo de faculdade foi obscuro, apesar de ter sido um capítulo da sua vida com rotinas próprias. Estudar durante a semana, divertir-se nos fins de semana, dar duro para passar nos exames tais, comer a péssima comida da faculdade, e namorar duas garotas, uma delas por mais de um ano. Todo mundo que passa pela universidade tem as mesmas histórias para contar, poucas com um impacto duradouro. No fim, o que resta mesmo é o acadêmico. Na verdade, sentiu que sua vida havia mesmo começado no dia em que se apresentou em Parris Island para o treinamento básico. Assim que saltou do ônibus, sargento encarregado começou a berrar em seus ouvidos. Nada como um sargento para fazer você sentir que, até aquele momento, sua vida não tivera significado algum. Os recrutas eram sua propriedade ponto final. Eram bons nos esportes? "Faça 50 flexões Sr. Vigilante." Tem nível superior? "Monte esse fuzil Einstein." Papai foi fuzileiro naval?”Limpe os banheiros assim como seu papai um dia também limpou. Os mesmos velhos clichês. Correr, marchar, bater continência, rastejar na lama, escalar paredes: não havia nada no treinamento básico que não fosse esperado.
Tinha de admitir que a maior parte do treinamento funcionou. Aquebrantou e achatou as pessoas o máximo possível de forma a transformá-las em fuzileiros navais. Pelo menos é o que diziam. Ele não se sentiu assim. Adaptou-se aos movimentos, manteve cabeça baixa, fez o que mandaram fazer e continuou sendo o mesmo homem de sempre. Mesmo assim tornou-se um fuzileiro naval.
Foi escalado para o Primeiro Batalhão do Quinto Regimento de Fuzileiros Navais, com base em Cam Pendleton. San Diego era seu tipo de cidade, com um clima maravilhoso, lindas praias e mulheres ainda mais bonitas. Mas aquilo não duraria. Em janeiro de 200; logo após completar 23 anos, foi designado para Kuwait, para participar da Operação Liberdade ao Iraque. Camp Doha, área industrial da Cidade do Kuwait, ativa desde a Primeira Guerra do Golfo, eram autossuficientes. Havia um ginásio e um centro de informática, loja de conveniência para os militares, restaurantes e tendas montadas até perder de vista. Um lugar bem movimentado que ficara ainda mais com iminência de uma invasão, um caos desde o início, os dias eram uma sequência de reuniões intermináveis, treinos de quebrar os ossos e ensaios para prováveis ataques, de acordo com planos constantemente alterados. Treinou vestir o fardamento de proteção para a guerra química pelo menos umas 100 vezes. Os rumores também eram intermináveis. O mais difícil era descobrir qual rumor poderia ser verdadeiro. Todo mundo conhecia alguém que conhecia alguém que sairia da "verdadeira história". Um dia era para estarem prontos para entrar em combate imediatamente e, no outro, era para aguardarem. Primeiro, era para entrar pelo norte e pelo sul, depois era só pelo sul e, por fim, nem era para entrar. Falavam que o inimigo tinha armas químicas e tinha intenção de usá-las. No dia seguinte, a história era que não usariam armas químicas, pois tinham medo de que os Estados Unidos fossem retaliar com armas atômicas. Havia boatos de que a Guarda Nacional ia montar uma barreira suicida bem em frente à fronteira. Outros juravam que só fariam na entrada de Bagdá. E havia ainda quem dissesse que a barreira seria montada somente ao redor dos campos de petróleo. Enfim, ninguém sabia de nada, o que servia apenas para alimentar a imaginação da 150 mil tropas montadas no Kuwait.
A maioria dos soldados não passa de crianças. As pessoas se esquecem disso às vezes. Tem 18, 19, 20 anos — metade dos homens em serviço não tem nem idade legal para comprar cerveja. Estavam confiantes, bem treinados e ansiosos para entrar em ação, mas era impossível ignorar a realidade do que estava para acontecer. Alguns deles morreriam. Uns falavam abertamente sobre o assunto, outros escreviam carta às famílias e as entregavam ao capelão. Os ânimos estavam à flor da pele. Alguns não conseguiam dormir, outros dormiam quase o tempo todo. Thibault só observava tudo com uma estranha sensação de desapego. "Bem-vindo à guerra", seu pai parecia sussurrar-lhe. "É sempre a mesma coisa: situação normal, tudo ferrado."
Thibault não era totalmente imune a essa crescente tensão e, como todo mundo, precisava de uma válvula de escape. Resolveu jogar pôquer. Seu pai o havia ensinado a jogar, conhecia o jogo... ou pelo menos achava que conhecia. Não demorou muito para descobrir que havia gente que conhecia muito mais. Nas primeira três semanas, perdeu tudo que havia guardado desde que decidira alistar-se, blefava quando deveria passar a vez e passava quando deveria continuar jogando. Para começar, nem era tanto dinheiro assim; se não tivesse perdido no jogo, não teria mesmo outros lugares para gastá-lo, mas isso o deixou de mau humor por vários dias. Detestava perder.
O único antídoto eram as longas corridas que fazia assim que acordava, antes mesmo do nascer do sol. Apesar de estar no Oriente Médio há um mês e meio, ainda se espantava com o frio da manhã no deserto. Corria duro debaixo do céu repleto de estrelas, sempre com a respiração curta.
No fim de uma das suas corridas, quando já avistava as tendas, começou a diminuir o ritmo. Nessa hora, o sol já começava a nascer no horizonte, espelhando seus raios dourados pela paisagem árida. Recuperava o fôlego com as mãos na cintura, quando viu o brilho pálido de uma fotografia, meio enterrada na areia. Parou para pegá-la e percebeu que a plastificação era barata, mas bem feita, provavelmente para protegê-la das intempéries. Tirou o pó para ver a imagem com mais nitidez e foi então que a viu pela primeira vez.
A loira sorridente tinha olhos cor de jade, vestia jeans e camiseta estampada com as palavras “garota de sorte”. Ao fundo, havia uma faixa com os dizeres “feira de Hampton”. Um pastor-alemão, com o focinho grisalho, ao lado dela. Na multidão atrás dela, havia dois jovens, ao lado da bilheteria, um pouco desfocados, ambos com camisetas estampadas. No verso da fotografia, havia a seguinte frase manuscrita: “Se cuida! E.”
Não que ele tivesse percebido isso tudo de uma vez. Na verdade, seu primeiro instinto havia sido jogar a fotografia fora. Quando ia fazer isso, porém, pensou que talvez quem a tivesse perdido gostaria de recuperá-la. Com certeza era algo significativo para alguém.
Ao voltar ao acampamento, colocou a foto e uma mensagem em um quadro de avisos na entrada do centro de informática, supondo que todos sempre acabariam passando por ali mais cedo ou mais tarde e certamente alguém sentiria falta dela.
Uma semana se passou, depois de dez dias. Ninguém pegou a fotografia. Nessa altura, seu pelotão treinava por horas, todos os dias, e as partidas de pôquer estavam cada vez mais sérias. Alguns homens haviam perdido milhares de dólares. Diziam que um oficial tinha perdido quase 10 mil dólares. Thibault, que havia desistido de jogar desde a primeira tentativa humilhante, preferia passar seu tempo livre refletindo sobre a invasão que se aproximava e sobre como deveria reagir diante das armas de fogo. Três dias antes da invasão, caminhando pelo centro de informática, viu a foto ainda presa ao quadro de avisos e, por razões que nunca compreendeu bem, tirou-a de lá e a colocou no bolso.
Victor, seu melhor amigo pelotão — estavam juntos desde o treinamento básico —, convidou-o para o jogo de pôquer naquela noite, apesar das restrições de Thibault. Ainda mal nas finanças, Thibault começou a jogar cautelosamente e pensou em ficar só meia hora por lá. Passou nas três primeiras rodadas e depois fez um straight na quarta partida e um full house na sexta. As cartas não paravam de cair na sua mão — flushes, straight, full houses — e na metade da noite tinha recuperado as perdas anteriores. Thibault ficou. Os jogadores iniciais foram substituídos por outros. Thibault continuou. Sua maré de sorte continuou e, até o cair da noite, tinha ganho mais do que seis meses de salário como fuzileiro naval.
Só quando estava para sair do jogo com Victor é que percebeu que a fotografia esteve o tempo todo em seu bolso. Quando voltaram para sua tensa, mostrou a foto para Victor, ressaltando as palavras na camiseta da mulher. Victor, cujos pais eram imigrantes ilegais que moravam perto de Bakersfield, na Califórnia, não era somente religioso, como também acreditava em presságios de todos os tipos. Raios e trovões, encruzilhadas e gatos pretos eram seus prediletos e, antes de embarcarem, contou-lhe sobre um tio que supostamente causava mau olhado:
Quando ele olha pra você de um jeito, morrer é apenas uma questão de tempo.
Victor tinha tanta convicção que fazia Thibault sentir-se com 10 anos de idade ao ouvir a história sendo contada à luz da lanterna. Na hora não disse nada. Todo mundo tem suas manias. E daí se o cara tinha suas crendices? O que importava mesmo era o fato de Victor ser tão bom atirador que havia sido escolhido para o pelotão de elite, e Thibault confiava sua vida a ele.
Victor analisou a fotografia antes de devolvê-la:
— Você disse que a achou ao nascer do dia?
— Sim.
— Esse é o momento mais poderoso do dia.
— Você já me falou.
— Isso é um sinal. Ela é seu amuleto da sorte. Olha só a camiseta dela.
— Ela foi mesmo esta noite.
— Não foi só hoje à noite. Você achou essa fotografia por um motivo. Ninguém deu falta dela também por um motivo. Hoje resolveu pegá-la por um motivo. Ela estava destinada a você.
Thibault ia fazer um comentário sobre quem a perdera e como poderia se sentir por tê-la perdido, mas resolveu não dizer nada. Em vez disso, deitou-se com as mãos na nuca.
Victor fez o mesmo.
— Estou feliz por isso. A partir de agora a sorte está do seu lado.
— Tomara que sim.
— Mas você não pode perder a fotografia jamais!
— como assim?
— Você deixará de ter sorte. E, em uma guerra, não ter sorte é a última coisa que você pode querer.
O quarto do hotel era tão feio por dentro como era a fachada do hotel por fora: painéis de madeira, lâmpadas presas aos fios no teto, tapete áspero, televisão presa no suporte. Parecia ter sido decorado por volta de 1975, e nunca havia sido reformado, o que o fez lembrar-se dos hotéis em que seu pai os fazia ficar sempre a família tirava férias no sudoeste quando Thibault era criança. Passavam a noite em lugares à beira da estrada, pois, estando limpos, seu pai os considerava excelentes. Sua mãe não pensava da mesma forma, mas o que ela podia fazer? Não havia nenhum hotel cinco estrelas do outro lado da estrada e, mesmo que houvesse, eles nunca teriam dinheiro para pagar.
Thibault seguiu a mesma rotina que tinha com seu pai ao entrar em um quarto de hotel: tirou o edredom para ter certeza de que os lençóis estavam limpos, verificou se havia lodo na cortina do banheiro e procurou por cabelos na pia. Apesar das manchas de ferrugem já esperadas, de uma torneira que não parava de pingar e das queimaduras de cigarro, o lugar estava mais limpo do que havia imaginado. Além de ser um lugar barato. Havia pago adiantado, em dinheiro, uma semana, nenhuma pergunta foi feita e não houve cobrança de tarifa extra pelo cachorro. Um bom negócio, no geral. Um bom sinal. Thibault não tinha cartões de crédito ou débito, nem tinha endereço oficial ou telefone celular. Praticamente tudo o que tinha levava consigo. Tinha conta bancária e algum dinheiro poderia ser enviado, se necessário. Era uma conta de empresa, não de pessoa física. Ele não era rico. Não era nem classe média. A empresa não estava ativa. Apenas gostava de privacidade.
Levou Zeus à banheira e deu-lhe um banho com o xampu que tinha na mochila. Depois, tomou um banho e vestiu as últimas roupas limpas que tinha, Sentado na cama, folheou a lista telefônica, procurando algo que lhe desse um sinal, mas não teve sorte. Deixou um recado a si mesmo para lavar a roupa assim que tivesse um tempo, e decidiu comer alguma coisa no pequeno restaurante que havia visto na mesma rua do hotel.
Quando chegou lá, não deixaram Zeus entrar, o que não o surpreendeu. Zeus deitou-se ao lado de fora da porta de entrada e dormiu. Thibault comeu cheeseburger e batatas fritas acompanhados de um Milk-shake de chocolate, depois pediu um hambúrguer para viagem para Zeus. Na rua, observou Zeus engolir o lanche em menos de vinte segundos para depois voltar a olhar para Thibault.
— Fico feliz que tenha gostado. Vamos!
Thibault comprou um mapa em uma loja de conveniências e sentou-se em um bando perto da praça da cidade — um daqueles jardins antigos que davam para quatro ruas alinhadas em lojas. Com grandes árvores e muita sombra em suas copas, um parque para crianças brincarem e muitas flores, não parecia cheio de gente: havia um grupo de mães conversando enquanto seus filhos brincavam nos escorregadores ou nos balanços. Analisou os rostos das mulheres, certificando-se de que nenhuma delas era a que procurava e voltou a abrir o mapa antes que sua presença por ali as deixasse nervosas, Mães com crianças pequenas sempre se apavoram diante da presença de homens sozinhos supostamente fazendo nada no local. Ele não as culpava. Há muitos pervertidos à solta.
Ao estudar o mapa, orientou-se e tentou decidir o que faria em seguida. Não tinha ilusão de que seria fácil. Final de contas, não tinha muitas informações. Tudo o que tinha era a fotografia — nada de nome, nada de endereço. Não sabia onde trabalhava. Não havia número de telefone. Nem data. Apenas um rosto no meio da multidão.
Mas havia algumas pistas. Analisando os detalhes da fotografia, como tantas vezes havia feito, começou a pontuar o que realmente sabia. Sabia que ela havia sido tirada em Hampton. A mulher parecia ter 20 e poucos anos quando a foto foi tirada. Era atraente. Seu primeiro nome começava com a letra E. Emma, Elise, Eilleen, Emily, Erin, Erica... pareciam nomes prováveis, apesar de que no sul havia nomes como Erdine ou Elspeth. Ela tinha ido à feira com alguém que fora para o Iraque. Havia dado essa fotografia a essa pessoa e Thibault havia encontrado a foto em fevereiro de 2003, o que significava que a foto foi tirada antes. Sendo assim, a mulher estaria agora com quase 30 anos. Havia três árvores lado a lado, ao longe, na foto. Esses eram os detalhes que sabia. Os “fatos”.
Depois vinham as suposições, começando por Hampton. Era um nome relativamente comum. Uma busca rápida na internet resultou em vários lugares. Condados e cidades: Carolina do Sul, Virgínia, New Hampshire, Nebraska, Georgia. E outras. Muitas outras. E, claro, Hampton, no Condado de Hampton, na Carolina do Norte.
Embora ao fundo não aparecessem imagens de pontos de referências locais — nenhuma foto de Monticello na Virgínia, por exemplo, nenhuma placa de “Bem-vindo a Iowa!” ao longe — a fotografia trazia informações. Não sobre a mulher, mas sobre os dois jovens ao fundo, na fila da bilheteria. Dois deles tinham camisetas estampadas. Uma com a imagem do Homer Simpson, não ajudava em nada. A outra tinha a palavra Davidson estampada no peito, o que a princípio não parecia ter significado algum, mesmo tendo refletido muito sobre ela. Primeiramente supôs que fosse uma abreviatura de Harley-Davidson, a motocicleta. Foi preciso mais uma busca no Google para ajudá-lo. Descobriu que Davidson era o nome de uma escola de renome perto de Charlotte, na Carolina do Norte. Seletiva, desafiadora, voltada para as artes liberais. Uma resenha do catálogo da livraria da escola continha um modelo idêntico da camiseta.
Entretanto, isso não era uma garantia de que a foto havia sido tirada na Carolina do norte. Alguém que estudava na escola poderia ter dado ao rapaz, ou talvez ele fosse um aluno de outro estado, talvez apenas gostasse da cor, talvez fosse ex-aluno e tivesse mudado de cidade. Mas sem mais nada que o permitisse continuar, antes de sair do Colorado, Thibault resolveu dar um rápido telefonema para a Câmara do Comércio de Hampton, e soube que todo verão havia uma feira por lá. Outro bom sinal. Apesar de não ter um fato, já tinha um destino. Simplesmente “supunha” que aquele seria o lugar certo. Não sabia explicar o motivo, mas sentia que aquele era o lugar.
Havia outras suposições, mas lidaria com elas mais tarde. A primeira coisa que tinha de fazer era encontrar o local da feira. Tinha esperanças de que a feira acontecesse sempre no mesmo local e esperava que a pessoa que indicasse o caminho também pudesse responder a essa pergunta. O melhor lugar para encontrar esse tipo de pessoa era em uma das lojas da região. Nada de lojas de lembrancinhas ou de antiguidades, essas lojas frequentemente pertenciam a pessoas recém-chegadas que fugiam do norte em busca de uma vida mais calma e um clima mais agradável. Em vez disso, pensou que o melhor lugar seria uma loja de ferramentas. Ou um bar. Ou uma imobiliária. Imaginou que, assim que olhasse para o lugar, saberia ser aquele o lugar certo.
Queria ver o local exato em que a fotografia havia sido tirada. Não para ter uma impressão melhor da mulher. O local da feira não ajudaria em nada.
Queria saber se havia três árvores grandes juntas, árvores com as copas pontudas, que poderiam crescer em qualquer lugar.

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