Capítulo 2 - Thibault
Era estranho pensar nas reviravoltas que a vida de um homem pode
dar. Até no ano anterior, Thibault teria pulado de alegria diante da
oportunidade de passar um fim de semana ao lado de Amy e suas amigas.
Provavelmente, era exatamente disso de que precisava, mas, quando elas o
deixaram na entrada da cidade de Hampton, com o calor da tarde de agosto em seu
ápice, ele acenou para elas, sentindo-se estranhamente aliviado. Colocar uma
carapuça de normalidade o havia deixado exausto.
Depois de sair do Colorado, há cinco meses, ele não havia passado
mais do que algumas horas sozinho com alguém por livre e espontânea vontade, a
única exceção tinha sido um senhor de idade em uma fazenda de laticínios, no
sul de Little Rock, que o tinha deixado dormir em um quarto vazio do
andar de cima da casa depois de um jantar em que havia falado tão pouco quanto
o convidado. Agradeceu o fato de o senhor não ter sentido a necessidade de
questioná-lo sobre as circunstâncias por que aparecera por lá. Nenhuma
pergunta, nenhuma curiosidade, nenhum conselho gratuito. Só a aceitação de que
Thibault não tinha vontade de conversar. Em agradecimento, Thibault ficou por
lá alguns dias ajudando o fazendeiro a consertar o telhado do celeiro e depois
pegou a estrada novamente, com a mochila cheia e Zeus sempre atrás dele.
Além da carona das garotas, não havia pegado mais nenhuma.
Caminhara o tempo todo. Depois de deixar as chaves de seu apartamento no
escritório da administradora, na metade do mês de março, havia gasto oito pares
de sapatos, e sobrevivia às custas de barras de proteínas e água durante suas
longas e solitárias caminhadas de uma cidade para outra. Uma vez, quando estava
no Tennessee, depois de passar fome por praticamente três dias, chegou a comer
cinco pilhas enormes de panquecas. Junto com Zeus, viajava durante tempestades
de neve, de granizo, chuvas fortes e um calor tão intenso que chegava a causar
bolhas nos braços. Tinha visto um tomado na linha do horizonte em Tulsa,
Oklahoma, e quase foi atingido por um raio duas vezes. Pegou inúmeros desvios,
tentando ficar longe das estradas principais, aumentando assim o tempo de
viagem, às vezes por puro capricho. Caminhava até ficar cansado e procurava
algum lugar para acampar no fim do dia, em qualquer lugar em que achasse que
ele e Zeus não seriam incomodados. Antes do amanhecer, já pegavam a estrada
novamente, assim não dava tempo de
alguém tentar bancar o espertinho. Até o momento, ninguém os havia incomodado.
Imaginava ter caminhado mais de 30 quilômetros, por dia, embora
não tivesse feito um registro formal do tempo e das distâncias percorridas.
Esse não era o objetivo da viagem. Imaginava que algumas pessoas acreditavam
que ele viajava para esquecer as lembranças do mundo que havia deixado para
trás, o que dava à viagem uma conotação poética. Outros pensavam que ele
caminhava simplesmente pelo prazer de caminhar. Estavam todos errados. Ele gostava
de caminhar e tinha um destino ao qual chegar. Simples assim. Gostava de partir
quando sentia vontade, no seu próprio ritmo, para o lugar que quisesse. Depois
de passar anos cumprindo ordens no Corpo j de Fuzileiros Navais, a liberdade o
atraía.
Sua mãe se preocupava com ele, mas as mães sempre se preocupam com
seus filhos. Pelo menos a dele se preocupava. Telefonava freqüentemente para
dizer a ela que estava bem, e, ao desligar, pensava que não estava sendo
honesto com ela. Tinha estado praticamente ausente nos últimos cinco anos, e,
antes das três idas ao Iraque, teve de ouvir seus sermões por telefone,
lembrando-o de não tomar nenhuma decisão estúpida. Não tomou, mas chegou bem
perto muitas vezes. Mesmo que não contasse todos os detalhes a ela, sabia que
sua mãe lia o jornal. — E agora mais essa — sua mãe lamentou na noite em que
ele havia partido. — A coisa toda me parece uma loucura. Talvez fosse. Talvez
não. Ele não estava bem certo.
— O que você acha, Zeus?
O cachorro levantou a cabeça ao escutar seu nome e ficou ao lado
de seu dono.
— Já sei. Está com fome. Que novidade!
Thibault parou no estacionamento de um hotel precário na entrada
da cidade. Pegou a tigela e colocou o restante da comida do cão. Enquanto Zeus
comia, ele ficou observando a cidade.
Hampton não era nem de longe o pior lugar que havia visto, mas
também não era o melhor. Ficava às margens do South River, a 55 quilômetros de
Wilmington e da costa e, à primeira vista, não parecia diferente dos milhares
de vilarejos e cidades com Comunidades autossuficientes, de trabalhadores
braçais, orgulhosos e cheios de histórias e tradições típicas do sul. Havia
alguns semáforos pendurados nos fios que interrompiam o tráfego em direção à
ponte sobre o South River. De
ambos os lados da rua principal podiam-se ver pequenas casas térreas de
tijolos, geminadas, estendendo-se por mais de meio quilômetro, com nomes das
lojas escritos nas vitrines, anunciando lugares para comer, beber ou comprar
ferramentas. Algumas velhas magnólias espalhavam-se por lá e suas raízes
rachavam as calçadas. Mais ao longe, dava para ver um outdoor antigo de uma
barbearia, e até uns velhinhos sentados no banco, em frente à loja. Sorriu.
Curioso! Parecia uma fantasia dos anos 1950.
Entretanto, depois de uma análise mais minuciosa, percebeu que as
primeiras impressões eram enganadoras. Apesar de estar localizada à margem do
rio — ou talvez por isso, supôs — percebeu a decadência nos telhados, nos
tijolos próximos às fundações, nas manchas de água salobra um pouco acima das
fundações, o que indicava graves inundações no passado. As lojas estavam todas
vazias, e ficou imaginando quanto tempo ainda ficariam abertas dada a ausência
de carros estacionados à frente delas. Os centros comerciais das cidadezinhas
pareciam estar fadados ao mesmo fim dos dinossauros e, se aquela não fosse
diferente das outras pelas quais havia passado, um centro comercial j mais
novo, provavelmente ancorado em lojas do tipo Walmart ou Piggly Wiggly, seria
levada à falência.
Mesmo assim era estranho. Estar ali. Não tinha certeza de como
imaginava que Hampton seria, mas não era assim.
Isso não importava. Enquanto Zeus acabava de comer, tentou
calcular quanto tempo precisaria para encontrá-la. A mulher da fotografia. A
mulher a quem viera encontrar.
Mas ele iria encontrá-la. Disso tinha certeza. Pegou sua mochila.
— Está pronto?
Zeus inclinou a cabeça para o lado.
— Vamos procurar um quarto. Quero comer e tomar um banho. E você
também precisa de um.
Thibault deu alguns passos e percebeu que Zeus não saía do lugar.
Olhou por cima dos ombros.
— Não me olhe assim. É óbvio que você precisa um banho. Você está
fedendo.
Zeus mantinha-se imóvel.
— Muito bem. Faça como achar
melhor. Eu vou.
Foi em direção à recepção para fazer o cadastro, sabendo que Zeus
viria em seguida. No fim, Zeus sempre vinha. Até ter encontrado a fotografia, a
vida de Thibault ia como há muito havia planejado. Ele sempre tinha um plano.
Quis ser bem-sucedido na escola e conseguiu; quis praticar vários esportes e
cresceu praticando quase todos. Quis aprender violino e tornou-se competente o
suficiente para compor sua própria música. Depois de se formar na Universidade
do Colorado, planejou entrar para os Fuzileiros Navais; e o recrutador ficou
emocionado com sua decisão de alistar-se como soldado em vez de oficial.
Chocado, porém emocionado. A maioria dos universitários não mostrava interesse
por esse cargo, mas era exatamente isso que ele queria.
O atentado ao World Trade Center não teve muito a ver com sua decisão,
pois alistar-se no serviço militar parecia ser algo natural a ser feito, já que
sei pai tinha sido Fuzileiro Naval por quinze anos. Sei pai havia-se iniciado
como soldado raso e terminado sua carreira como um daqueles sargentos
grisalhos, de queixos de aço, que intimidavam a todos menos suas esposas e os
pelotões que comandava. Tratava aqueles jovens como se fossem seus filhos, sua
única intenção, costumava dizer a eles, era trazê-los de volta para casa, para suas
mães, sãos e salvos e mais adultos. Nesse tempo, seu pai deve ter assistido a
mais de 50 casamentos de homens que não se imaginavam casando sem a sua bênção.
Também era um bom fuzileiro. Havia sido condecorado com um Bronze Star e
dois Purple Hearts no Vietnã, e pelos anos em que serviu em Granada, Panamá, Bósnia
na Primeira Guerra do Golfo. Seu pai não se preocupava com transferências, por
isso Thibault havia passado a maior parte da adolescência mudando de um lugar
para outro, vivendo em diferentes bases militares ao redor do mundo. De certa
forma, Okinawi tinha mais cara de lar do que o Colorado e, apesar de seu
japonês estar um pouco enferrujado, acreditava que após uma semana em Tóquio
resgataria a fluência do passado. Assim como seu pai, imaginava que se
aposentaria na Marinha, mas, diferente dele, pretendia viver muito tempo depois
disso. Seu pai havia falecido de um ataque cardíaco apenas dois anos após ter
pendurado definitivamente a farda no cabide, um infarto agudo que veio do nada.
Em um instante ele estava tirando a neve da entrada da casa com a pá e, no
outro, estava morto. Isso havia acontecido há treze anos. Thibault tinha 15
anos na época.
Aquele dia e o dia do
funeral representavam as lembranças mais marcantes da sua vida antes de se
alistar na marinha. Ter sido criado como filho de militar ajudava a amenizar
situações como essas, simplesmente por causa da freqüência das mudanças de
ambientes.
Os amigos vão e vêm, as malas são feitas e desfeitas, a casa
possui somente o estritamente necessário e, assim, não há muito que fique de
significativo. Ensina-os que mesmo que algumas pessoas sejam deixadas para
trás, outras inevitavelmente pegarão eu lugar e que todo lugar tem aspectos
positivos — e negativos — a oferecer. Isso obriga uma criança a amadurecer
precocemente.
Até mesmo o tempo de faculdade foi obscuro, apesar de ter sido um
capítulo da sua vida com rotinas próprias. Estudar durante a semana, divertir-se
nos fins de semana, dar duro para passar nos exames tais, comer a péssima
comida da faculdade, e namorar duas garotas, uma delas por mais de um ano. Todo
mundo que passa pela universidade tem as mesmas histórias para contar, poucas
com um impacto duradouro. No fim, o que resta mesmo é o acadêmico. Na verdade,
sentiu que sua vida havia mesmo começado no dia em que se apresentou em Parris
Island para o treinamento básico. Assim que saltou do ônibus, sargento
encarregado começou a berrar em seus ouvidos. Nada como um sargento para fazer
você sentir que, até aquele momento, sua vida não tivera significado algum. Os
recrutas eram sua propriedade ponto final. Eram bons nos esportes? "Faça
50 flexões Sr. Vigilante." Tem nível superior? "Monte esse fuzil
Einstein." Papai foi fuzileiro naval?”Limpe os banheiros assim como seu
papai um dia também limpou. Os mesmos velhos clichês. Correr, marchar, bater
continência, rastejar na lama, escalar paredes: não havia nada no treinamento
básico que não fosse esperado.
Tinha de admitir que a maior parte do treinamento funcionou.
Aquebrantou e achatou as pessoas o máximo possível de forma a transformá-las em
fuzileiros navais. Pelo menos é o que diziam. Ele não se sentiu assim.
Adaptou-se aos movimentos, manteve cabeça baixa, fez o que mandaram fazer e
continuou sendo o mesmo homem de sempre. Mesmo assim tornou-se um fuzileiro
naval.
Foi escalado para o Primeiro Batalhão do Quinto Regimento de
Fuzileiros Navais, com base em Cam Pendleton. San Diego era seu tipo de cidade,
com um clima maravilhoso, lindas praias e mulheres ainda mais bonitas. Mas
aquilo não duraria. Em janeiro de 200; logo após completar 23 anos, foi
designado para Kuwait, para participar da Operação Liberdade ao Iraque. Camp
Doha, área industrial da Cidade do
Kuwait, ativa desde a Primeira Guerra do Golfo, eram autossuficientes. Havia um
ginásio e um centro de informática, loja de conveniência para os militares,
restaurantes e tendas montadas até perder de vista. Um lugar bem movimentado
que ficara ainda mais com iminência de uma invasão, um caos desde o início, os
dias eram uma sequência de reuniões intermináveis, treinos de quebrar os ossos
e ensaios para prováveis ataques, de acordo com planos constantemente
alterados. Treinou vestir o fardamento de proteção para a guerra química pelo
menos umas 100 vezes. Os rumores também eram intermináveis. O mais difícil era
descobrir qual rumor poderia ser verdadeiro. Todo mundo conhecia alguém que
conhecia alguém que sairia da "verdadeira história". Um dia era para
estarem prontos para entrar em combate imediatamente e, no outro, era para
aguardarem. Primeiro, era para entrar pelo norte e pelo sul, depois era só pelo
sul e, por fim, nem era para entrar. Falavam que o inimigo tinha armas químicas
e tinha intenção de usá-las. No dia seguinte, a história era que não usariam
armas químicas, pois tinham medo de que os Estados Unidos fossem retaliar com
armas atômicas. Havia boatos de que a Guarda Nacional ia montar uma barreira
suicida bem em frente à fronteira. Outros juravam que só fariam na entrada de
Bagdá. E havia ainda quem dissesse que a barreira seria montada somente ao
redor dos campos de petróleo. Enfim, ninguém sabia de nada, o que servia apenas
para alimentar a imaginação da 150 mil tropas montadas no Kuwait.
A maioria dos soldados não passa de crianças. As pessoas se
esquecem disso às vezes. Tem 18, 19, 20 anos — metade dos homens em serviço não
tem nem idade legal para comprar cerveja. Estavam confiantes, bem treinados e
ansiosos para entrar em ação, mas era impossível ignorar a realidade do que
estava para acontecer. Alguns deles morreriam. Uns falavam abertamente sobre o
assunto, outros escreviam carta às famílias e as entregavam ao capelão. Os
ânimos estavam à flor da pele. Alguns não conseguiam dormir, outros dormiam
quase o tempo todo. Thibault só observava tudo com uma estranha sensação de
desapego. "Bem-vindo à guerra", seu pai parecia sussurrar-lhe.
"É sempre a mesma coisa: situação normal, tudo ferrado."
Thibault não era totalmente imune a essa crescente tensão e, como
todo mundo, precisava de uma válvula de escape. Resolveu jogar pôquer. Seu pai
o havia ensinado a jogar, conhecia o jogo... ou pelo menos achava que conhecia.
Não demorou muito para descobrir que havia gente que conhecia muito mais. Nas
primeira três semanas, perdeu tudo que havia guardado desde que decidira
alistar-se, blefava quando deveria passar a vez e passava quando deveria
continuar jogando. Para começar, nem era tanto dinheiro assim; se não tivesse perdido no jogo, não teria
mesmo outros lugares para gastá-lo, mas isso o deixou de mau humor por vários
dias. Detestava perder.
O único antídoto eram as longas corridas que fazia assim que
acordava, antes mesmo do nascer do sol. Apesar de estar no Oriente Médio há um
mês e meio, ainda se espantava com o frio da manhã no deserto. Corria duro
debaixo do céu repleto de estrelas, sempre com a respiração curta.
No fim de uma das suas corridas, quando já avistava as tendas,
começou a diminuir o ritmo. Nessa hora, o sol já começava a nascer no
horizonte, espelhando seus raios dourados pela paisagem árida. Recuperava o
fôlego com as mãos na cintura, quando viu o brilho pálido de uma fotografia,
meio enterrada na areia. Parou para pegá-la e percebeu que a plastificação era barata,
mas bem feita, provavelmente para protegê-la das intempéries. Tirou o pó para
ver a imagem com mais nitidez e foi então que a viu pela primeira vez.
A loira sorridente tinha olhos cor de jade, vestia jeans e
camiseta estampada com as palavras “garota de sorte”. Ao fundo, havia uma faixa
com os dizeres “feira de Hampton”. Um pastor-alemão, com o focinho grisalho, ao
lado dela. Na multidão atrás dela, havia dois jovens, ao lado da bilheteria, um
pouco desfocados, ambos com camisetas estampadas. No verso da fotografia, havia
a seguinte frase manuscrita: “Se cuida! E.”
Não que ele tivesse percebido isso tudo de uma vez. Na verdade,
seu primeiro instinto havia sido jogar a fotografia fora. Quando ia fazer isso,
porém, pensou que talvez quem a tivesse perdido gostaria de recuperá-la. Com
certeza era algo significativo para alguém.
Ao voltar ao acampamento, colocou a foto e uma mensagem em um
quadro de avisos na entrada do centro de informática, supondo que todos sempre
acabariam passando por ali mais cedo ou mais tarde e certamente alguém sentiria
falta dela.
Uma semana se passou, depois de dez dias. Ninguém pegou a
fotografia. Nessa altura, seu pelotão treinava por horas, todos os dias, e as
partidas de pôquer estavam cada vez mais sérias. Alguns homens haviam perdido
milhares de dólares. Diziam que um oficial tinha perdido quase 10 mil dólares.
Thibault, que havia desistido de jogar desde a primeira tentativa humilhante,
preferia passar seu tempo livre refletindo sobre a invasão que se aproximava e
sobre como deveria reagir diante das armas de fogo. Três dias antes da invasão,
caminhando pelo centro de informática, viu a foto ainda presa ao quadro de avisos e, por razões que
nunca compreendeu bem, tirou-a de lá e a colocou no bolso.
Victor, seu melhor amigo pelotão — estavam juntos desde o
treinamento básico —, convidou-o para o jogo de pôquer naquela noite, apesar
das restrições de Thibault. Ainda mal nas finanças, Thibault começou a jogar
cautelosamente e pensou em ficar só meia hora por lá. Passou nas três primeiras
rodadas e depois fez um straight na quarta partida e um full house na
sexta. As cartas não paravam de cair na sua mão — flushes, straight, full
houses — e na metade da noite tinha recuperado as perdas anteriores.
Thibault ficou. Os jogadores iniciais foram substituídos por outros. Thibault
continuou. Sua maré de sorte continuou e, até o cair da noite, tinha ganho mais
do que seis meses de salário como fuzileiro naval.
Só quando estava para sair do jogo com Victor é que percebeu que a
fotografia esteve o tempo todo em seu bolso. Quando voltaram para sua tensa,
mostrou a foto para Victor, ressaltando as palavras na camiseta da mulher.
Victor, cujos pais eram imigrantes ilegais que moravam perto de Bakersfield, na
Califórnia, não era somente religioso, como também acreditava em presságios de
todos os tipos. Raios e trovões, encruzilhadas e gatos pretos eram seus
prediletos e, antes de embarcarem, contou-lhe sobre um tio que supostamente
causava mau olhado:
— Quando ele olha pra você de um jeito, morrer é apenas uma
questão de tempo.
Victor tinha tanta convicção que fazia Thibault sentir-se com 10
anos de idade ao ouvir a história sendo contada à luz da lanterna. Na hora não
disse nada. Todo mundo tem suas manias. E daí se o cara tinha suas crendices? O
que importava mesmo era o fato de Victor ser tão bom atirador que havia sido
escolhido para o pelotão de elite, e Thibault confiava sua vida a ele.
Victor analisou a fotografia antes de devolvê-la:
— Você disse que a achou ao nascer do dia?
— Sim.
— Esse é o momento mais poderoso do dia.
— Você já me falou.
— Isso é um sinal. Ela é seu amuleto da sorte. Olha só a camiseta
dela.
— Ela foi mesmo esta noite.
— Não foi só hoje à noite.
Você achou essa fotografia por um motivo. Ninguém deu falta dela também por um
motivo. Hoje resolveu pegá-la por um motivo. Ela estava destinada a você.
Thibault ia fazer um comentário sobre quem a perdera e como
poderia se sentir por tê-la perdido, mas resolveu não dizer nada. Em vez disso,
deitou-se com as mãos na nuca.
Victor fez o mesmo.
— Estou feliz por isso. A partir de agora a sorte está do seu
lado.
— Tomara que sim.
— Mas você não pode perder a fotografia jamais!
— como assim?
— Você deixará de ter sorte. E, em uma guerra, não ter sorte é a
última coisa que você pode querer.
O quarto do hotel era tão feio por dentro como era a fachada do
hotel por fora: painéis de madeira, lâmpadas presas aos fios no teto, tapete
áspero, televisão presa no suporte. Parecia ter sido decorado por volta de
1975, e nunca havia sido reformado, o que o fez lembrar-se dos hotéis em que
seu pai os fazia ficar sempre a família tirava férias no sudoeste quando
Thibault era criança. Passavam a noite em lugares à beira da estrada, pois,
estando limpos, seu pai os considerava excelentes. Sua mãe não pensava da mesma
forma, mas o que ela podia fazer? Não havia nenhum hotel cinco estrelas do
outro lado da estrada e, mesmo que houvesse, eles nunca teriam dinheiro para
pagar.
Thibault seguiu a mesma rotina que tinha com seu pai ao entrar em
um quarto de hotel: tirou o edredom para ter certeza de que os lençóis estavam
limpos, verificou se havia lodo na cortina do banheiro e procurou por cabelos
na pia. Apesar das manchas de ferrugem já esperadas, de uma torneira que não
parava de pingar e das queimaduras de cigarro, o lugar estava mais limpo do que
havia imaginado. Além de ser um lugar barato. Havia pago adiantado, em
dinheiro, uma semana, nenhuma pergunta foi feita e não houve cobrança de tarifa
extra pelo cachorro. Um bom negócio, no geral. Um bom sinal. Thibault não tinha
cartões de crédito ou débito, nem tinha endereço oficial ou telefone celular.
Praticamente tudo o que tinha levava consigo. Tinha conta bancária e algum
dinheiro poderia ser enviado, se necessário. Era uma conta de empresa, não de pessoa física. Ele não era
rico. Não era nem classe média. A empresa não estava ativa. Apenas gostava de
privacidade.
Levou Zeus à banheira e deu-lhe um banho com o xampu que tinha na
mochila. Depois, tomou um banho e vestiu as últimas roupas limpas que tinha,
Sentado na cama, folheou a lista telefônica, procurando algo que lhe desse um
sinal, mas não teve sorte. Deixou um recado a si mesmo para lavar a roupa assim
que tivesse um tempo, e decidiu comer alguma coisa no pequeno restaurante que
havia visto na mesma rua do hotel.
Quando chegou lá, não deixaram Zeus entrar, o que não o
surpreendeu. Zeus deitou-se ao lado de fora da porta de entrada e dormiu.
Thibault comeu cheeseburger e batatas fritas acompanhados de um Milk-shake de
chocolate, depois pediu um hambúrguer para viagem para Zeus. Na rua, observou
Zeus engolir o lanche em menos de vinte segundos para depois voltar a olhar
para Thibault.
— Fico feliz que tenha gostado. Vamos!
Thibault comprou um mapa em uma loja de conveniências e sentou-se
em um bando perto da praça da cidade — um daqueles jardins antigos que davam
para quatro ruas alinhadas em lojas. Com grandes árvores e muita sombra em suas
copas, um parque para crianças brincarem e muitas flores, não parecia cheio de
gente: havia um grupo de mães conversando enquanto seus filhos brincavam nos
escorregadores ou nos balanços. Analisou os rostos das mulheres,
certificando-se de que nenhuma delas era a que procurava e voltou a abrir o
mapa antes que sua presença por ali as deixasse nervosas, Mães com crianças
pequenas sempre se apavoram diante da presença de homens sozinhos supostamente
fazendo nada no local. Ele não as culpava. Há muitos pervertidos à solta.
Ao estudar o mapa, orientou-se e tentou decidir o que faria em
seguida. Não tinha ilusão de que seria fácil. Final de contas, não tinha muitas
informações. Tudo o que tinha era a fotografia — nada de nome, nada de
endereço. Não sabia onde trabalhava. Não havia número de telefone. Nem data.
Apenas um rosto no meio da multidão.
Mas havia algumas pistas. Analisando os detalhes da fotografia,
como tantas vezes havia feito, começou a pontuar o que realmente sabia. Sabia
que ela havia sido tirada em Hampton. A mulher parecia ter 20 e poucos anos
quando a foto foi tirada. Era atraente. Seu primeiro nome começava com a letra
E. Emma, Elise, Eilleen, Emily, Erin, Erica... pareciam nomes prováveis, apesar
de que no sul havia nomes como Erdine ou Elspeth. Ela tinha ido à feira com alguém
que fora para o Iraque. Havia
dado essa fotografia a essa pessoa e Thibault havia encontrado a foto em
fevereiro de 2003, o que significava que a foto foi tirada antes. Sendo assim,
a mulher estaria agora com quase 30 anos. Havia três árvores lado a lado, ao
longe, na foto. Esses eram os detalhes que sabia. Os “fatos”.
Depois vinham as suposições, começando por Hampton. Era um nome
relativamente comum. Uma busca rápida na internet resultou em vários lugares.
Condados e cidades: Carolina do Sul, Virgínia, New Hampshire, Nebraska,
Georgia. E outras. Muitas outras. E, claro, Hampton, no Condado de Hampton, na
Carolina do Norte.
Embora ao fundo não aparecessem imagens de pontos de referências
locais — nenhuma foto de Monticello na Virgínia, por exemplo, nenhuma placa de
“Bem-vindo a Iowa!” ao longe — a fotografia trazia informações. Não sobre a
mulher, mas sobre os dois jovens ao fundo, na fila da bilheteria. Dois deles
tinham camisetas estampadas. Uma com a imagem do Homer Simpson, não ajudava em
nada. A outra tinha a palavra Davidson estampada no peito, o que a princípio
não parecia ter significado algum, mesmo tendo refletido muito sobre ela.
Primeiramente supôs que fosse uma abreviatura de Harley-Davidson, a
motocicleta. Foi preciso mais uma busca no Google para ajudá-lo. Descobriu que
Davidson era o nome de uma escola de renome perto de Charlotte, na Carolina do
Norte. Seletiva, desafiadora, voltada para as artes liberais. Uma resenha do
catálogo da livraria da escola continha um modelo idêntico da camiseta.
Entretanto, isso não era uma garantia de que a foto havia sido
tirada na Carolina do norte. Alguém que estudava na escola poderia ter dado ao
rapaz, ou talvez ele fosse um aluno de outro estado, talvez apenas gostasse da
cor, talvez fosse ex-aluno e tivesse mudado de cidade. Mas sem mais nada que o
permitisse continuar, antes de sair do Colorado, Thibault resolveu dar um
rápido telefonema para a Câmara do Comércio de Hampton, e soube que todo verão
havia uma feira por lá. Outro bom sinal. Apesar de não ter um fato, já tinha um
destino. Simplesmente “supunha” que aquele seria o lugar certo. Não sabia
explicar o motivo, mas sentia que aquele era o lugar.
Havia outras suposições, mas lidaria com elas mais tarde. A
primeira coisa que tinha de fazer era encontrar o local da feira. Tinha
esperanças de que a feira acontecesse sempre no mesmo local e esperava que a
pessoa que indicasse o caminho também pudesse responder a essa pergunta. O
melhor lugar para encontrar esse tipo de pessoa era em uma das lojas da região.
Nada de lojas de lembrancinhas ou de antiguidades, essas lojas frequentemente
pertenciam a pessoas recém-chegadas que fugiam do norte em busca de uma vida
mais calma e um clima mais agradável. Em
vez disso, pensou que o melhor lugar seria uma loja de ferramentas. Ou um bar.
Ou uma imobiliária. Imaginou que, assim que olhasse para o lugar, saberia ser
aquele o lugar certo.
Queria ver o local exato em que a fotografia havia sido tirada.
Não para ter uma impressão melhor da mulher. O local da feira não ajudaria em
nada.
Queria saber se havia três árvores grandes juntas, árvores com as
copas pontudas, que poderiam crescer em qualquer lugar.
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