Capítulo 23 - Beth

— Gosto dele de verdade, Nana.
De pé, no banheiro, estava fazendo o possível para enrolar o cabelo, mas suspeitava de que, com a chuva, seu esforço seria em vão. Depois de a chuva dar uma pequena trégua, aguardava-se a primeira de duas das tempestades tropicais anunciadas.
— Acho que está na hora de ser honesta comigo. Você não gosta dele simplesmente. Está na cara que o considera o homem da sua vida.
— Não está na minha cara.
— Claro que está. Só falta sentar na varanda para ficar brincando de bem-me-quer, mal-me-quer.
Beth sorriu.
— Acredite se quiser, eu entendi a metáfora, na verdade.
— Acidentes acontecem. O que importa é o seguinte: sei que você gosta dele, mas ele gosta de você?
— Claro, Nana.
— Já se perguntou o que isso significa?
— Sei o que significa.
— Só queria ter certeza — Nana olhou-se no espelho e arrumou o cabelo. — Porque eu também gosto dele.
Foi com Nana até a casa de Logan, preocupada com o fato de os limpadores de pára-brisa não conseguirem dar-lhe a visão necessária. O nível do rio estava elevado em razão dos temporais sem fim e já começava a atingir um lado da rua. "Mais alguns dias como este", pensou, "e a estradas seriam fechadas". As lojas mais próximas à beira do rio iriam logo começar a se proteger com sacos de areia, na tentativa de evitar que a água destruísse as mercadorias que ficavam perto do chão.
— Duvido que as pessoas cheguem à igreja. Mal da para ver pela janela.
— Um pouco de chuva não afasta os que amam ao Senhor — enfatizou Nana.
— É muito mais do que um pouco de chuva. Você já deu uma olhada no rio?
— Vi. Está bravo, com certeza.
— Se subir mais um pouco, talvez nem possamos chegar à cidade.
— Vai dar tudo certo — disse Nana.
Beth olhou-a de relance.
— Está de bom humor hoje.
— Você não está? Até passou a noite fora!
— Nana! — protestou Beth.
— Não a estou julgando. Só estou falando. Você já é adulta e faz o que quiser da sua vida.
Beth já estava mais do que acostumada às frases de efeito de sua avó.
— Obrigada.
— Então, está tudo bem? Mesmo com seu ex que querendo arrumar encrenca?
— Acho que sim.
— Você acha que vão se casar?
— Acho que ainda é cedo para pensar nisso. Ainda estamos nos conhecendo.
Nana inclinou-se para frente e limpou os vidros do carro que estavam embaçados. Apesar de a umidade desaparecer momentaneamente, as marcas dos dedos permaneciam.
— Assim que vi seu avô, sabia que ele era o homem da minha vida.
— Ele me disse que vocês namoraram seis meses antes de pedi-la em casamento.
— Namoramos. Mas não significa que não teria dito sim antes. Após poucos dias, já sabia que éramos feitos um para o outro. Sei que parece loucura. Mas eu e ele éramos uma combinação perfeita, assim como pão com manteiga, desde o começo.
Fechou os olhos para se lembrar desses tempos com um sorriso nos lábios.
— Estava sentada com ele no parque. Devia ser a segunda ou terceira vez que estávamos sozinhos, falávamos sobre pássaros quando um jovem, obviamente de fora da cidade, aproximou-se para ouvir a conversa. Seu rosto estava sujo, não tinha sapatos, e as roupas, além de estarem rasgadas. pareciam não lhe servir. Seu avô abriu um sorriso e continuou falando, como se estivesse dizendo ao garoto que sua companhia era bem-vinda e ele correspondeu com um sorriso. Fiquei tocada por ele não ter julgado o jovem pela aparência. Seu avô continuava falando. Acho que ele sabia o nome de todas as aves da região. Sabia a época em que migravam, onde faziam seus ninhos e os sons que usavam para se comunicar uns com os outros. Depois de algum tempo o rapaz ficou sentado, somente olhando para sei que tinha a capacidade de transformar toda conversa em... algo encantador. E não era só o garoto. E também sentia o mesmo. Seu avô tinha uma voz serena, parecia uma canção de ninar e, enquanto ele falava, tive a impressão de que deveria ser o tipo de pessoa que não conseguia ficar bravo com algo mais do que alguns minutos, a raiva não combinava com ele. Não dava margem para ressentimentos ou amargura e foi ali que percebi que seria o tipo de homem que ficaria casado para sempre. E, nessa mesma hora, decidi que seria eu a mulher a me casar com ele.
Apesar de conhecer as histórias de Nana, Beth ficou emocionada.
— Que história comovente!
— Ele era um homem maravilhoso. E quando um homem é assim, tão especial, você percebe mais rápido do que o normal. Você reconhece intuitivamente e tem a certeza de que, aconteça o que acontecer, nunca mais encontrará alguém como ele.
Neste momento, Beth chegou à rua de cascalho em que Thibault morava; ao aproximar-se da casa, aos solavancos, e espalhando lama pelo caminho, viu que eleja estava de prontidão na varanda, vestia o que parecia ser uma jaqueta esportiva e calças de algodão.
Quando ele acenou, ela não conseguiu esconder o sorriso que ia de ponta a ponta.
O culto começou e acabou com música. O solo de Nana foi muito aplaudido, e o pastor agradeceu a Thibault por sua disponibilidade em substituir Abigail ao piano, na última hora, e à Nana por demonstrar as maravilhas operadas pela graça de Deus quando se têm obstáculos a serem superados.
O sermão foi informativo, interessante e comunicado com o humilde reconhecimento de que os mistérios das obras de Deus nem sempre são entendidos. Beth percebeu que o talento do pastor era uma das razões pelas quais a comunidade estava sempre em crescimento.
Do seu lugar, no balcão superior, podia ver Nana e Logan facilmente. Gostava de sentar naquele lugar quando Ben estava na casa do pai, pois ficava fácil para ele encontrá-la. Geralmente, entreolhavam-se duas ou três vezes durante o culto; neste dia ele olhava para ela constantemente, como se compartilhando seu espanto por ser amigo de alguém tão talentoso. Mas Beth mantinha-se distante de seu ex. Não por causa do que tinha descoberto sobre ele recentemente — embora isso já fosse suficiente —, mas porque facilitava as coisas para Ben. Apesar dos impulsos sexuais de Keith, na igreja comportava-se como se visse lá dentro uma força destruidora que pudesse de alguma forma derrubar seu clã. Vovô sentava-se no centro da primeira fileira, com a família toda de ambos os lados e na fileira de trás. De seu lugar, Beth percebia que ele acompanhava as leituras da Bíblia, fazia anotações, e ouvia atentamente o que o pastor tinha a dizer. De toda a família, era dele de quem Beth mais gostava — ele sempre tinha sido justo e educado com ela, ao contrário de muitos dos demais. Quando se encontravam depois do culto, sempre fazia algum comentário agradável sobre ela e agradecia pelo excelente trabalho que vinha fazendo com Ben.
Havia honestidade na maneira como ele falava com ela, mas também havia uma linha imaginária traçada entre eles, e Beth sabia que não poderia ultrapassar o limite. Vovô sabia que ela desempenhava um papel muito melhor na educação de Ben do que Keith e que ele estava se transformando em um excelente rapaz por causa dela, mas o fato de ter consciência disso não se sobrepunha ao fato de que Ben era, e sempre seria, um Clayton.
Mesmo assim, gostava dele, apesar de Keith, apesar da linha imaginária. Ben gostava dele também, e ela tinha a sensação de que, muitas vezes, vovô exigia que Keith levasse Ben para vê-lo, para poupá-lo de ter de passar um fim de semana inteiro com seu pai.
Tudo aquilo estava longe da sua cabeça ao ver Logan tocando piano. Não sabia o que esperar. Quantas pessoas estudaram piano? Quantas pessoas alegaram tocar bem? Não levou muito tempo para perceber a habilidade excepcional de Logan, muito acima do que estava esperando. Seus dedos deslizavam pelo teclado e seus movimentos eram fluidos; nem parecia olhar para a partitura a sua frente. Enquanto Nana cantava, porém, sua atenção estava voltada para ela, ao mesmo tempo em que mantinha ritmo e andamento perfeitos. Estava muito mais interessado na atuação dela do que em sua própria.
Enquanto ele continuava tocando, ela pensava na história que Nana havia lhe contado no carro. Dispersou-se do culto para relembrar as suas conversas com Logan, da sensação que o abraço dele lhe transmitia, da sua maneira natural de conviver com Ben. Sabia que havia muita coisa desconhecida sobre ele ainda, mas tinha uma certeza: Logan a completava de uma forma que jamais havia considerado possível. Saber os fatos não era o mais importante, disse a si mesma, pois sabia, usando as palavras da sua avó, que ele era o pão da sua manteiga.
Depois do culto, Beth ficou observando de longe, divertindo-se com o fato de que Logan estava sendo tratado como celebridade. Tudo bem que se tratava de uma celebridade cujos fãs eram todos dependentes da Previdência Social, mas, pelo que podia perceber, ele parecia ao mesmo tempo orgulhoso e envergonhado pela atenção inesperada.
Ao olhar para ela, viu que em seu olhar havia um silencioso pedido de resgate. Mas tudo o que ela fez foi sorrir e dar de ombros. Não queria interferir. Quando o pastor veio agradecer-lhe novamente, sugeriu que Logan poderia continuar tocando mesmo depois que Abigail se recuperasse do pulso quebrado.
— Tenho certeza de que vamos encontrar uma solução — disse o pastor.
Ficou mais surpresa ainda quando vovô, com Ben ao seu lado, passou no meio da multidão para cumprimentá-lo. Ao longe viu que Keith tinha uma expressão que demonstrava um misto de raiva e repulsa.
— Bom trabalho, meu jovem — vovô estendeu a mão. — Toca como quem foi abençoado.
Pela expressão de Logan, deu para ver que ele reconheceu seu interlocutor, apesar de que Beth não fizesse a menor idéia de como sabia quem ele era. Ele apertou a mão de vovô.
— Obrigado, senhor.
— Ele trabalha no canil com Nana. E acho que ele e a mamãe estão namorando.
Diante disso, fez-se um silêncio por entre a multidão de admiradores, quebrado apenas por algumas pessoas tossindo de embaraço.
Vovô olhou para Logan, mas ela não percebeu nada de diferente em sua expressão.
— É verdade? — perguntou vovô.
— Sim, senhor — respondeu Logan.
Vovô não disse nada.
— Ele também foi fuzileiro naval — disse Ben, sem se dar conta das correntes sociais que se alvoroçavam ao seu redor.
Vovô pareceu surpreso, e Logan concordou com a cabeça.
— Servi no Quinto Batalhão, do Quinto Regimento, baseado em Pendleton, senhor.
Depois de uma longa pausa, vovô balançou a cabeça.
— Então, obrigado pelo serviço prestado ao nosso país também. Você fez um trabalho maravilhoso hoje.
— Obrigado, senhor — disse novamente.
— Você foi tão educado — disse Beth quando voltavam para casa.
Não comentou nada até Nana estar longe o suficiente para não poder ouvir. Lá fora, a grama começava a se transformar em um lago, e a chuva não parava de cair. Passaram para pegar Zeus no caminho de volta e ele agora dormia aos seus pés.
— E por que não seria?
Ela fez uma careta.
— Você sabe por quê.
— Ele não é o seu ex — deu de ombros. — Duvido que saiba o que seu ex anda aprontando. Por quê? Você acha que deveria ter contado a ele?
— De forma alguma.
— Também achei que não. Mas olhei para seu ex quando estava falando com o avô dele e ele estava com cara de quem comeu e não gostou.
— Você também percebeu? Eu até achei engraçado.
— Ele não vai ficar feliz.
— Problema dele. Depois do que ele fez, pode fazer a cara que quiser.
Logan concordou e ela se aninhou nele. Thibault ergueu o braço e a puxou ainda mais para perto de si.
— Você estava tão bonito lá em cima tocando piano.
— Ah, é?
— Sei que não poderia ter pensado nisso, pois estava na igreja, mas não pude evitar. Você devia usar jaquetas com mais frequência.
— Meu trabalho não permite esse traje.
— Mas a sua namorada permite.
Ele fingiu estar confuso.
— Eu tenho namorada?
Ela deu uma cotovelada de brincadeira antes de olhar para ele e beijá-lo no rosto.
— Obrigada por ter vindo para Hampton. E decidido ficar.
Ele sorriu.
— Não tive escolha.
Duas horas depois, um pouco antes do jantar, o carro de Keith veio até a entrada da casa passando pelas poças d'água. Ben saiu do carro. Keith deu marcha à ré e foi embora quando Ben chegou à vara
— Boa noite, mamãe! Boa noite, Thibault!
Logan acenou para ele, e Beth levantou-se e o abraçou.
— Boa noite, querido. Foi tudo bem?
— Sim. Não tive de limpar a cozinha nem colocar o lixo para fora. E sabe de uma coisa?
— Que foi?
Ben sacudiu a água da capa de chuva.
— Acho que quero aprender a tocar piano.
Beth sorriu, pensando por que não estava surpresa.
— Ei, Thibault!
— Sim?
— Quer ver a minha casa da árvore?
Beth interrompeu.
— Querido... com toda essa chuva, não acho que seja uma boa idéia.
— Está tudo bem. Foi o vovô quem fez e eu fui lá há dois dias.
— O nível da água deve ter subido.
— Por favor, não vamos demorar. E Thibault vai estar comigo o tempo todo.
Mesmo contra sua vontade, Beth acabou permitindo.

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