Capítulo 2
– Este é o
aquecedor – disse tia Josephine, apontando com um dedo pálido e magricela
para um aquecedor. – Por favor, nem
cheguem perto. Pode ser que vocês sintam muito frio aqui dentro de casa. Eu
nunca ligo o aquecedor porque tenho medo de que aconteça uma explosão, de modo
que de noite, às vezes, fica meio gelado.
Violet e Klaus se entreolharam por um breve instante,
e Sunny olhou para os dois. Tia Josephine estava mostrando para eles sua nova
casa, e a impressão que dava era de que tinha medo de tudo lá dentro, desde o
capacho da entrada — no qual, tia Josephine explicou, alguém podia tropeçar, e
em seguida levar um tombo e quebrar o pescoço — até o sofá na sala de estar,
que, segundo ela, podia cair para trás e jogá-los no chão.
– Este é o
telefone – disse tia Josephine, indicando com um gesto o telefone. – É para ser usado somente em emergências,
porque a pessoa que o usa corre o risco de ser eletrocutada.
– Eu li muito
sobre eletricidade – disse Klaus. – E
tenho certeza absoluta de que o telefone é perfeitamente seguro.
As mãos de tia Josephine se agitaram em torno dos
cabelos como se alguma coisa tivesse saltado sobre sua cabeça.
– Não dá para acreditar em tudo o que se lê – observou ela.
– Eu montei um
telefone inteirinho, peça por peça – disse Violet. – Se você quiser, posso desmontar o seu
telefone e lhe mostrar como ele funciona. Talvez com isso você se sinta mais
tranquila.
– Não sei não – disse tia Josephine, franzindo a testa.
– Delmo! – exclamou Sunny, o que
provavelmente significava: ''Se quiser,
eu mordo o telefone para provar que é inofensivo'', ou algo do gênero.
– Delmo? – perguntou tia Josephine, curvando-se para apanhar um fiapo de tecido no
desbotado tapete decorado com motivos florais. – O que você quer dizer com 'delmo'?
Considero-me uma especialista em nossa língua e não faço ideia do que
signifique a palavra delmo. Ela está falando alguma outra língua? –
– É que Sunny
ainda não fala fluentemente – disse Klaus, pegando a irmãzinha no colo. – A maior parte do que diz é em língua de
bebê.
– Grum! – ,
gritou Sunny, o que queria dizer mais ou menos: ''Protesto! Você não tem o direito de chamar a
minha fala de língua de bebê!''.
– Bem, eu vou
ter que ensinar a ela o idioma correto – disse tia Josephine em tom severo. – Tenho certeza de que todos vocês estão
precisando dar uma retocada na sua gramática, forçosamente. A gramática é a
maior alegria da vida, não acham?
Os três irmãos se entreolharam. Era mais provável que
Violet achasse que a maior alegria da vida era inventar, Klaus diria que era
ler, e Sunny, é claro, não sabia de prazer maior que o de
morder coisas. O que os Baudelaire pensavam sobre gramática — todas aquelas
regras sobre como escrever e falar a língua — era o mesmo que pensavam sobre,
por exemplo, pudim de pão: legal, mas nada que merecesse muito estardalhaço. De
qualquer modo, seria uma grosseria contradizer tia Josephine.
– Sim – disse
Violet, finalmente. – Nós sempre
adoramos gramática.
Tia Josephine assentiu com a cabeça e deu um
sorrisinho para os Baudelaire.
– Bem,
vou levá-los para o seu quarto, e percorreremos o resto da casa após o jantar.
Quando forem abrir a porta, basta que dêem um empurrãozinho na madeira, aqui.
Nunca usem a maçaneta. Sempre fico com medo de que ela se parta em milhões de
pedaços e um deles atinja o meu olho.
Os Baudelaire começavam a achar que não lhes seria
permitido tocar em nenhum dos objetos da casa, mas sorriram para tia Josephine,
empurraram a madeira, e a porta se abriu, revelando um quarto espaçoso e bem
iluminado, com paredes brancas e um tapete liso azul no chão. Dentro havia duas
camas de bom tamanho e um berço também de bom tamanho, obviamente para Sunny,
cobertos, cada qual, por uma colcha lisa azul, e ao pé de cada cama havia um
baú para guardar objetos pessoais. No outro extremo do quarto, havia um armário
grande para as roupas de todos eles, uma janelinha para olhar para fora e uma
pilha não muito grande de latas sem finalidade aparente.
– Sinto muito
que vocês três tenham que partilhar o quarto – disse tia Josephine, – mas esta casa não é das maiores. Fiz o
possível para provê-los de tudo o que pudessem necessitar, e espero
sinceramente que se sintam bem instalados.
– Tenho certeza
que sim – disse Violet, levando sua mala para o quarto. – Muito obrigada, tia Josephine.
– Dentro de
cada baú – disse tia Josephine, – há
um presente.
Presentes? Os Baudelaire não recebiam presentes fazia
muito, muito tempo. Sorrindo, tia Josephine foi até o primeiro baú e o abriu.
– Para Violet – disse, – uma bela boneca com sua coleção de roupas e
adereços. – Tia Josephine puxou do fundo
do baú uma boneca de plástico com boquinha pequena e olhos desmesuradamente
abertos. – Não é adorável? Chama-se
Perfeita Fortuna.
– Oh, obrigada
– disse Violet, que, aos catorze anos, tinha passado da idade de brincar com
bonecas e que, aliás, nunca fora muito ligada em bonecas. Com um sorriso
forçado, pegou Perfeita Fortuna dos braços de tia Josephine e acariciou sua
cabecinha de plástico.
– E para Klaus
– disse tia Josephine, – um trem de
montar. – Abriu o segundo baú e tirou
dali um trenzinho em miniatura. – Você
pode armar os trilhos naquele canto vazio do quarto.
– Que divertido
– disse Klaus, tentando parecer fascinado. Klaus nunca se interessara por
trens de montar, por causa do trabalho que dava juntar todas as partes e que,
no fim, era compensado apenas por uma coisa que dava voltas e mais voltas em
círculos intermináveis.
– E para a
pequena Sunny – disse tia Josephine, procurando com o braço esticado dentro
do baú menor, que ficava ao pé do berço, – um chocalho. Veja, Sunny, faz um barulhinho.
Sunny sorriu para tia Josephine, mostrando os quatro
dentes afiados, mas seus irmãos mais velhos sabiam que Sunny desprezava
chocalhos e os sons irritantes que eles produziam ao ser agitados. Sunny havia
recebido de presente um chocalho quando era bem pequena, e foi a única coisa
que ela não lamentou ter perdido no incêndio devastador que destruiu a casa dos
Baudelaire.
– Você é tão
generosa – disse Violet, – em nos dar
todas essas coisas. – Porque era
bem-educada, não acrescentou que aquelas coisas estavam longe de ser do agrado
deles.
– Bem, estou
muito feliz por tê-los aqui – disse tia Josephine. – Tenho um amor tão grande pela gramática!
Fico radiante de poder partilhar meu amor pela gramática com três crianças tão
interessantes como vocês. Bem, vocês dispõem de alguns minutos para se instalar
e depois vamos jantar. Até daqui a pouco.
– Tia Josephine
– , perguntou Klaus, – essas latas servem
para quê?
– Essas latas?
Para assaltantes, naturalmente – disse tia Josephine, ajeitando o coque no
alto da cabeça. – Vocês devem ter tanto
medo de assaltantes quanto eu. Assim, é só pôr essas latas bem perto da porta,
todas as noites, que os assaltantes, ao entrar, vão tropeçar nas latas e vocês
vão acordar.
– E o que vamos
fazer, quando acordarmos num quarto com um assaltante furioso? – perguntou
Violet. – Eu preferiria dormir durante o
assalto.
Tia Josephine esgazeou os olhos de medo.
– Assaltantes furiosos? – , repetiu ela. – Assaltantes furiosos? Por que você está
falando em assaltantes furiosos? Está tentando apavorar mais ainda todos nós?
– Claro que não
– gaguejou Violet, sem sequer mencionar que tia Josephine é que havia puxado
o assunto. – Desculpe-me. Não tive
intenção de apavorá-la.
– Bom, nem mais
uma palavra sobre isso – disse tia Josephine, olhando nervosamente para as
latas como se um assaltante estivesse tropeçando nelas naquele exato momento. – Vejo-os no jantar daqui a alguns minutos.
A nova tutora fechou a porta, e os órfãos Baudelaire
ouviram seus passos se afastando rapidamente no corredor antes de eles falarem.
– Sunny pode ficar com Perfeita Fortuna – disse Violet, passando a boneca para a irmã. – O plástico é duro o bastante para ser
mordido, acho eu.
– E você pode
ficar com o trem de montar, Violet – disse Klaus. – Talvez você possa aproveitar as locomotivas
e inventar alguma coisa.
– Mas aí a
única coisa que sobra para você é o chocalho – disse Violet. – Não me parece justo.
– Chu! – gritou Sunny, provavelmente querendo dizer algo como: ''Faz muito tempo que nada em nossas vidas tem
sabor de justiça''.
Os Baudelaire se entreolharam com sorrisos amargos.
Sunny tinha razão. Não era justo que seus pais tivessem sido arrebatados deles.
Não era justo que o perverso e revoltante conde Olaf os perseguisse aonde quer
que fossem, movido unicamente pelo interesse em sua fortuna. Não era justo que
eles se mudassem da casa de um parente para a de outro, com coisas terríveis
acontecendo em cada um de seus novos lares, como se os Baudelaire viajassem em
algum ônibus macabro que só parasse em estações de injustiça e desgraça. E, é
claro, certamente não era justo que Klaus só tivesse um chocalho para brincar
em sua nova casa.
– Tia Josephine
deve ter feito um esforço danado para preparar este quarto para nós – disse
Violet com tristeza. – Ela parece ser
uma boa pessoa. Não deveríamos nos queixar, nem mesmo entre nós.
– Certo, Violet
– disse Klaus, pegando seu chocalho e agitando-o sem muita convicção. – Não deveríamos nos queixar.
– Tuí! – ,
gritou Sunny, provavelmente querendo dizer algo como: ''Vocês dois têm razão. Não deveríamos nos
queixar''.
Klaus foi até a janela e olhou para a paisagem;
escurecia. O sol se punha nas sombrias profundezas do Lago Lacrimoso, e um frio
vento noturno começava a soprar. Mesmo estando do lado protegido da vidraça,
Klaus se sentiu tomado por um calafrio.
– Quero me queixar, não importa! – disse.
– O jantar está
pronto! – disse tia Josephine, chamando-os da cozinha. – Por favor, venham para a mesa!
Violet pousou a mão no ombro de Klaus e lhe deu um
apertãozinho em sinal de consolo; sem dizer mais nada, os três Baudelaire
percorreram de volta o corredor e foram para a sala de jantar. Tia Josephine
arrumara a mesa para quatro, providenciando um almofadão para Sunny e outra
pilha de latas no canto da sala, para o caso de assaltantes tentarem roubar o
jantar deles.
– Hoje teremos
sopa – disse tia Josephine.
– Ótimo! – ,
exclamou Violet. – Nada como uma sopa
bem quentinha numa noite gelada.
– Na verdade, não é uma sopa quente – disse
tia Josephine. – Nunca preparo nada
quente porque tenho medo de acender o fogão; ele pode explodir e pegar fogo.
Fiz um caldo frio de pepinos.
Os Baudelaire se entreolharam e tentaram disfarçar sua
decepção. Como vocês provavelmente sabem, caldo frio de pepinos é um prato que
cai muito bem num dia de extremo calor. Eu mesmo adorei uma vez em que tomei
esse caldo no Egito, quando visitei um amigo que trabalha como encantador de
serpentes. Se bem preparado, o caldo frio de pepinos tem um delicioso sabor de
menta, que refresca como se fosse uma bebida. Mas num dia de temperatura baixa,
numa sala varrida por correntes de ar, o efeito era tal qual o de um enxame de
vespas empestando uma festa de aniversário. As três crianças, em silêncio
mortal, permaneceram sentadas à mesa com tia Josephine e se esforçaram ao
máximo para empurrar goela abaixo a receita fria e viscosa. O único som era o
dos quatro dentes de Sunny trepidando na colher de sopa enquanto ela tomava o
jantar gélido. Como vocês bem sabem, quando ninguém fala à mesa de jantar, a
refeição parece durar horas, e, por assim dizer, uma eternidade de tempo havia
passado quando tia Josephine finalmente rompeu o silêncio.
– Meu adorado
marido e eu nunca tivemos filhos – disse ela, – porque era uma ideia que nos dava medo. Mas
quero que saibam que fico muito feliz por vocês estarem aqui. Às vezes me sinto
muito só no alto deste morro sem nenhuma companhia, e quando o Sr. Poe me
escreveu contando os desgostos por que vocês passaram, desejei que não se
sentissem tão sós como eu me senti quando perdi meu adorado Belo.
– O nome do seu
marido era Belo? – , perguntou Violet.
Tia Josephine sorriu, mas não olhava para Violet; era
como se falasse mais para si própria do que para os Baudelaire.
– Sim – , disse com uma voz distante. – Belo era meu marido, mas era muito mais que
isso. Era o meu melhor amigo, meu parceiro na gramática, e a única pessoa que
conheci capaz de assobiar com bolachas na boca.
– Nossa mãe
sabia fazer isso – , disse Klaus, sorrindo. – Sua especialidade era a Sinfonia nº 14 de
Mozart.
– A de Belo era
o Quarteto nº 4 de Beethoven – replicou tia Josephine. – Pelo visto, é uma característica da família.
– Pena que nós
não o conhecemos – disse Violet. – Parece
que era uma pessoa maravilhosa.
– Ele era
maravilhoso – , disse tia Josephine, mexendo sua sopa e soprando-a apesar de
estar gelada. – Fiquei tão triste quando
ele morreu. Tive a sensação de perder as duas coisas mais
especiais da minha vida.
– Duas? – perguntou Violet. – Como assim?
– Perdi Belo – disse tia Josephine, – e perdi o Lago
Lacrimoso. Quer dizer, claro que não perdi realmente o lago. Ele continua lá
embaixo, no vale. Mas cresci nas suas margens, costumava nadar ali todos os dias.
Sabia quais praias eram arenosas e quais eram rochosas. Conhecia todas as ilhas
em meio às suas águas e todas as grutas ao longo de suas margens. Era como se o
Lago Lacrimoso fosse um amigo meu. Mas quando arrebatou Belo de mim, senti
muito medo de me aproximar dele novamente. Parei de nadar. Nunca mais voltei à
praia. Cheguei até a evitar os livros que tratavam do lago. O único lugar de
onde suporto olhar para ele é a janela ampla da biblioteca.
– Biblioteca? – perguntou Klaus, animando-se. – Você
tem uma biblioteca?
– Claro – disse tia Josephine. – Onde mais poderia
guardar todos os meus livros de gramática? Se todos acabaram de tomar a sopa,
vou mostrar-lhes a biblioteca.
– Não consigo
tomar nem mais uma colherada – disse Violet, sem faltar à verdade.
– Irm! – gritou Sunny, concordando.
– Não, não,
Sunny – , disse tia Josephine. – 'Irm'
não é gramaticalmente correto. O que você quer dizer é: 'Eu também terminei
minha sopa'.
– Irm – ,
insistiu Sunny.
– Minha nossa,
você de fato precisa de umas aulas de gramática – disse tia Josephine. – Mais uma razão para irmos à biblioteca.
Vamos, crianças.
Deixando para trás suas tigelas cheias pela metade, os
Baudelaire seguiram tia Josephine pelo corredor, tendo o cuidado de não tocar
em nenhuma das maçanetas pelas quais passavam. No final do corredor, tia
Josephine se deteve e abriu uma porta que parecia das mais comuns, mas quando
as crianças a transpuseram, entraram numa sala que era tudo menos comum.
A biblioteca não era quadrada nem retangular, como a
maioria das salas, mas curva, num formato oval. Uma das paredes dessa sala oval
estava dedicada a livros — fileiras e fileiras e fileiras deles, e não havia um
só que não fosse de gramática. Havia uma enciclopédia de substantivos colocada
numa série de estantes simples de madeira, curvas para se amoldar à parede.
Havia volumes muito grossos sobre a história dos verbos, alinhados numa estante
metálica que brilhava de tão bem polida. E havia estantes envidraçadas que
continham manuais de adjetivos dispostos como se estivessem à venda na vitrine
de uma loja e não na casa de alguém. No meio da sala achavam-se poltronas de
aparência muito confortável, cada qual com seu respectivo pufe, de modo a
permitir que a pessoa esticasse as pernas enquanto lia.
Mas foi a outra parede, ao
fundo da sala oval, que despertou a atenção das crianças. Do chão ao teto a
parede era uma janela, uma enorme vidraça em curva, e, além da vidraça,
tinha-se uma vista espetacular do Lago Lacrimoso. Quando as crianças avançaram
para ver mais de perto, sentiram-se como se estivessem voando muito acima do
lago, e não apenas olhando para ele de dentro da casa.
– Este é o
único lugar de onde suporto olhar para o lago – disse tia Josephine em voz
baixa. – Daqui, de longe. Se chego muito
mais perto, lembro-me do último piquenique na praia com meu adorado Belo.
Avisei-o de que devia esperar uma hora depois de comer para entrar no lago, mas
ele só esperou quarenta e cinco minutos. Achou que era o suficiente.
– Ele teve
cãibras? – perguntou Klaus. – É o que
pode acontecer quando não se espera uma hora para nadar.
– Esse é um dos
riscos – disse tia Josephine, – mas no
Lago Lacrimoso há outro. Se você não espera uma hora depois de comer, as
sanguessugas do lago sentem o cheiro da comida em você e atacam.
– Sanguessugas?
– perguntou Violet.
– Sanguessugas
– explicou Klaus, – são algo assim
como vermes. São cegas, vivem em meios aquáticos, e para se alimentar,
grudam-se na pessoa e sugam seu sangue.
Violet estremeceu.
– Que horrível.
– Suó! – gritou Sunny, provavelmente querendo dizer algo como: ''Por que cargas-d'água alguém iria nadar num
lago repleto de sanguessugas?''
– As
sanguessugas do Lago Lacrimoso – disse tia Josephine, – são muito diferentes das sanguessugas
comuns. Cada uma tem seis fileiras de dentes muito afiados, e um nariz com
olfato apuradíssimo — conseguem sentir a presença de um pedacinho de comida a
grandes distâncias. As sanguessugas do lago são em geral bastante inofensivas,
atacando somente peixes miúdos. Mas se elas sentem cheiro de comida num humano,
juntam-se em volta dele e... e... – Os
olhos de tia Josephine se encheram de lágrimas; ela puxou um lenço rosa-claro e
as enxugou. – Desculpem-me, crianças.
Não é gramaticalmente correto terminar uma frase com a palavra e, mas fico tão
transtornada quando penso em Belo que não consigo falar na morte dele.
– Sentimos
muito ter puxado o assunto – disse Klaus na mesma hora. – Não era nossa intenção transtorná-la.
– Tudo bem – disse tia Josephine, assoando o nariz. –
Só que eu prefiro pensar em Belo de outras maneiras. Belo sempre adorou os
raios do sol, e eu gosto de imaginar que onde ele está agora, seja onde for, é
o lugar mais ensolarado possível. É claro que ninguém sabe o que acontece
conosco depois que morremos, mas é lindo pensar que o meu marido
está num lugar muito, muito quente, vocês não acham?
– Eu acho sim – disse Violet. – É lindo, sem dúvida
nenhuma. – Ela ia dizer mais alguma
coisa para tia Josephine, mas engoliu em seco: quando acabamos de conhecer
alguém, é difícil saber o que essa pessoa gostaria de ouvir. – Tia Josephine – , disse ela timidamente, – você já pensou em se mudar para algum outro
lugar? Se você morasse longe do Lago Lacrimoso, quem sabe não se sentiria
melhor?
– Nós iríamos
com você – disse Klaus de repente.
– Oh, eu jamais
conseguiria vender esta casa – disse tia Josephine. – Morro de medo de corretores.
Os três jovens Baudelaire se entreolharam
sub-repticiamente, palavra que aqui significa ''enquanto tia Josephine não estava olhando''.
Nenhum deles nunca ouvira falar de alguém que tivesse medo de corretores.
Há dois tipos de medo: racional e irracional — ou, em
termos mais simples, medos que têm sentido e medos que não têm sentido. Por
exemplo, o medo que os órfãos Baudelaire sentem do conde Olaf tem todo o
sentido, porque ele é um homem perverso que quer destruí-los. Mas se eles
tivessem medo de torta de limão, esse seria um medo irracional, porque torta de
limão é uma delícia e nunca feriu ninguém. Ter medo de que haja um monstro
debaixo da cama é perfeitamente racional, porque de fato um monstro pode ir
parar um dia debaixo da sua cama e estar pronto para devorá-lo, mas ter medo de
corretores é um medo irracional. Corretores, como vocês bem sabem, são pessoas
que dão assistência na compra e venda de casas. Além de às vezes se apresentar
com um feio paletó amarelo, um corretor pode, na pior das hipóteses,
mostrar-lhe uma casa de que você não goste, de modo que é inteiramente
irracional morrer de medo de corretores. Enquanto Violet, Klaus e Sunny olhavam
para o lago escuro e pensavam em sua nova vida com tia Josephine, sentiram-se
invadidos, eles próprios, por um certo medo, e mesmo para um especialista
mundial em medo seria difícil determinar se esse era um medo racional ou irracional.
O medo dos Baudelaire era que a desgraça não tardaria a atingi-los. Por um
lado, esse era um medo irracional, uma vez que tia Josephine parecia uma boa
pessoa e o conde Olaf não estava visível em parte alguma. Mas, por outro, os
Baudelaire haviam passado por tantas coisas terríveis que parecia racional
pensar que outra catástrofe estava a caminho.
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