Capítulo 3 - Beth

Beth colocou sua garrafa de coca diet de lado, feliz por Bem estar se divertindo na festa de aniversário de seu amigo Zach. Estava justamente pensando que não queria que ele tivesse de ir para casa do pai, quando Melody chegou e sentou-se na cadeira.
— Foi uma boa ideia, não acha? As arminhas de água são um sucesso. — Melody sorriu, seus dentes clareados, talvez um pouco brancos demais, sua pele escura demais, como se ela tivesse acabado de sair de uma sessão de bronzeamento, o que era bem provável. Melody só se preocupava com sua aparência desde o ensino médio e ultimamente parecia mais obcecada com isso.
— Só espero que não mirem suas armas poderosas em nós.
— Melhor não. Falei para o Zach que, se ele fizesse isso, mandaria todo mundo embora — recostou-se na cadeira para sentar mais confortavelmente. — O que tem feito este verão? Não tenho te visto por aí, nem retorna meus telefonemas.
— Eu sei. Desculpe. Tenho sido uma eremita neste verão. Tem sido difícil administrar os cuidados com a Nana, o canil e o treinamento. Não faço ideia do motivo pelo qual Nana o mantém há tanto tempo.
— Nana vai bem?
Nana era a avó de Beth. Ela a havia criado desde os 3 anos de idade, após seus pais terem morrido em um acidente de carro. Beth fez que sim com a cabeça.
— Está melhorando, mas o acidente vascular deixou sequelas. O lado esquerdo de seu corpo ainda está muito fraco. Consegue dar conta de uma parte do treinamento, mas cuidar do canil e do treinamento está além das suas possibilidades. E você sabe como ela exige de si mesma. Sempre me preocupo com o fato de ela estar abusando.
— Percebi que ela voltou ao coral esta semana.
Nana era membro do coral da Primeira Igreja Batista há mais de trinta anos e Beth sabia que cantar no coral era uma de suas paixões.
— Voltou semana passada, mas não sei dizer na verdade o quanto consegue cantar. Depois disso tirou uma soneca de duas horas.
— O que vai acontecer quando as aulas começarem?
— Não sei.
— Vai continuar dando aulas, não vai?
— Espero que sim.
— Você espera? As reuniões dos professores não começam na semana que vem?
Beth não queria pensar nisso, muito menos falar sobre isso, mas sabia que Melody tinha boas intenções.
— Sim, mas não significa que estarei lá. Sei que será um problema para a escola, mas não posso deixar Nana sozinha o dia todo. Pelo menos por enquanto. E quem a ajudaria a cuidar do canil? Ela não tem como treinar os cachorros o dia todo.
— Você não pode contratar uma pessoa?
— Estou tentando. Eu te contei o que aconteceu no começo do verão? Contratei um cara que apareceu lá duas vezes, depois desistiu, assim que chegou o fim de semana. O mesmo aconteceu com o outro que contratei. Depois disso ninguém mais se apresentou para o cargo. A placa “precisa-se de ajudante” continua pendurada na janela.
— David sempre reclama de como bons empregados estão em falta.
— Fale para ele oferecer um salário mínimo. Aí ele vai reclamar mesmo. Até mesmo os alunos do ensino médio não querem limpar o canil. Dizem que é nojento.
— É nojento.
Beth riu.
— Eu sei. Mas não tenho tempo. Duvido que alguma coisa mude até a semana que vem, e se não mudar há coisas piores. Gosto de treinar os cães. Muitas vezes é mais fácil de ensinar a eles do que aos alunos.
— Como os meus?
— Os seus eram fáceis. Pode acreditar.
Melody apontou para Ben.
— Ele cresceu desde a última vez em que o vi.
— Quase 4 centímetros — disse, pensando ser gentil da parte de Melody ter percebido.
Ben sempre tinha sido pequeno para a sua idade. Na foto da turma de classe estava sempre posicionado ao lado esquerdo nafila da frente. Já Zach, o filho de Melody, era totalmente o contrário, lado direito, fila atrás, sempre o mais alto da turma.
— Ouvi falar que Ben não vai jogar futebol no próximo semestre — disse Melody.
— Ele quer fazer algo diferente.
— Como o quê?
— Quer aprender a tocar violino. Vai ter aulas com a Sra. Hastings.
— Ela ainda dá aulas? Deve ter pelo menos uns 90 anos.
— Mas tem paciência com iniciantes. Ou pelo menos foi o que ela me disse. Esse é o principal motivo.
— Que bom para ele. Acho que vai se dar muito bem. Mas o Zach vai ficar chateado.
— Eles na iam ficar no mesmo time. Zach vai jogar no time principal, não vai?
— Se ele conseguir.
— ele vai conseguir.
E ele conseguiria. Zach era daquelas crianças naturalmente confiantes, competitivas, que amadureciam cedo e levavam consigo para o campo outros jogadores menos talentosos. Como Ben. Até mesmo agora, correndo atrás dele com a arma de água pelo quintal, Ben não conseguia acompanhá-lo. Ano anterior, seu ex-marido ficava em pé na linha do campo, com uma expressão de raiva, mais um motivo para Ben não querer jogar.
— David vai ajudar o treinador novamente?
David era o marido da Melody e um dos dois pediatras da cidade.
— Ele ainda não decidiu. Desde que Hoskins saiu, tem trabalhado demais. Ele odeia, mas o que pode fazer? Estão tentando contratar outro médico, mas não é fácil. Nem todo mundo quer vir trabalhar em uma cidade pequena, especialmente sendo o hospotal mais próximo em Wilmington, a quarenta e cinco minutos de distância. Isso aumenta o horário de trabalho. David chega em casa depois das 20 horas grande parte da semana. Às vezes, até mais tarde.
Beth percebeu o tom preocupado na voz de Melody e imaginou se ela ainda estaria abalada com o caso que David havia confessado ter tido há um ano e meio. Beth sabia o suficiente para não tecer comentários sobre isso. Logo que ouviu os primeiros boatos, decidiu que só tocaria no assunto quando a iniciativa viesse de Melody. E se ela não quisesse falar sobre isso? Tudo bem, também. Isso não era da sua conta.
— E você? Tem saído com alguém?
Beth sorriu.
— Não. Não desde Adam.
— O que houve?
— Não faço ideia.
— Não posso dizer que tenho inveja de você. Nunca gostei de namorar.
— Ah, é. Mas pelo menos você era boa nisso. Eu sou péssima.
— Você está exagerando.
— Não estou mesmo. Mas isso não é grande coisa. Nem sei se ainda tenho energia sobrando para isso. Usar Lingerie, fazer depilação, flertar, fingir que gosto dos amigos dele. Parece-me um esforço enorme.
Melody torceu o nariz.
— Você não se depila?
— Claro que sim — depois falou baixinho: — Pelo menos, quase sempre. Mas você está certa, não é fácil namorar. Especialmente para alguém da minha idade.
— Ah, me poupe. Você não tem nem 30 anos e é linda.
Beth sempre ouvia isso e não era imune ao fato de que os homens, mesmo os casados, sempre viravam a cabeça para vê-la passar. Nos seus três primeiros anos como professora, só teve uma reunião de pais cujos pais apareceu sozinho. Em todas as outras, as mães tinham ido. Lembrava-se de que, quando comentou isso com Nana, anos atrás, ela lhe disse:
— Não querem você sozinha com seus maridos porque você é tão linda como uma roseira em flor.
Nana tinha um jeito peculiar de dizer as coisas.
— Você parece ter esquecido a cidade em que moramos — retrucou Beth. — Não há muitos homens solteiros em minha idade. E se estão solteiros, há um motivo para tal.
— Não é verdade.
— Talvez em uma cidade grande. Mas por aqui? Pode acreditar. Vivi toda a minha vida aqui e, mesmo quando estava na faculdade, ia e voltava todos os dias e, nas poucas vezes em que me convidaram para sair, depois de três vezes paravam de telefonar. Não me pergunte o motivo. Mas isso não interessa. Tenho Ben e Nana. Não estou sozinha por aí, cercada por dúzias de gatos...
— Não mesmo. Está cercada de cães.
— Mas não são meus. São de outras pessoas. É diferente.
— Ah, é. Bem diferente. — zombou Melody.
Do outro lado do quintal, Ben corria atrás do grupo com sua arma de água, dando o melhor de si para acompanhá-los, quando, de repente, tropeçou e caiu. Beth o conhecia o bastante para saber que não poderia se levantar e ir até lá para ver se ele estava bem. Na última vez em que havia feito isso, percebeu como ele havia ficado visivelmente envergonhado. Tateou na grama até encontrar os óculos, levantou-se e voltou a correr.
— Como eles crescem depressa, não é? — disse Melody, interrompendo os pensamentos de Beth. — Sei que é clichê, mas é verdade. Lembro-me da minha mãe dizendo que isso ia acontecer e eu nem imaginava o que ela estava falando. Não podia esperar até que Zach ficasse um pouquinho mais velho. Tudo bem que naquela época ele tinha cólicas e eu não dormia mais do que duas noites por mês. Mas agora, em um piscar de olhos, eles já vão começar o sexto ano.
— Calma! Ainda tem um ano pela frente.
— Eu sei. Mas mesmo assim fico nervosa.
— Por quê?
— Sabe como é... é uma idade difícil. As crianças entram em uma fase em que começam a entender o mundo dos adultos, sem terem a maturidade dos adultos para que possam lidar com tudo o que passa ao seu redor. Acrescente a isso todas as tentações, o fato de não te ouvirem mais como antes, o temperamento adolescente, e eu serei a primeira a admitir que não estou ansiosa por isso. Você é professora. Você sabe.
— É por isso que dou aulas para o segundo ano.
— Sábia escolha. Ficou sabendo do que houve com Elliot Spencer?
— Não estou sabendo sobre nenhum assunto ultimamente. Tenho sido uma eremita, lembra-se?
— Foi pego vendendo drogas.
— Mas ele só é alguns anos mais velho que o Ben.
— E ainda nem concluiu o ensino fundamental.
— Agora você está me deixando nervosa.
Melody revirou os olhos.
— Não fique. Se meu filho fosse mais parecido com Ben eu não teria motivos para ficar nervosa. Ben tem uma alma antiga. É sempre educado, sempre gentil, sempre o primeiro a ajudar as crianças mais novas. É solidário. Eu, em contrapartida, tenho Zach.
— Zach é maravilhoso também.
— Eu sei disso, mas sempre foi mais difícil do que Ben. E Zach constantemente tem sido “Maria vai com as outras” do Ben.
— Você já viu os dois brincando? De onde estou sentada parece-me que quem está indo atrás dele é Ben.
— Você sabe do que estou falando.
Na verdade, ela sabia. Mesmo sendo muito jovem, Ben sempre quis escolher seu próprio caminho. O que era bom, tinha de admitir, porque ele frequentemente escolhia um bom caminho. Apesar de não ter muitos amigos, ele tinha muitos interesses próprios. Não se interessava muito por vídeo games, nem pela internet e assistia à televisão de vez em quando, mas sempre acabava desligando após meia hora. Em vez disso, lia ou jogava xadrez (um jogo que parecia ter aprendido de forma intuitiva) em um joguinho eletrônico que havia ganho no Natal. Adorava ler e escrever e, embora gostasse dos cães do canil, a maioria deles ficava muitas horas lá dentro e tendia a ignorá-los. Passava muitas tardes jogando bolas de tênis que, quando muito, alguns deles iam buscar.
— Vai dar tudo certo!
— Espero que sim — disse Melody, colocando a bebida de lado. — É melhor eu ir pegar o bolo, não é? O Zach tem treino às 17 horas.
— Vai estar quente.
— Com certeza vai querer levar a arma de água para ensopar o treinador.
— Precisa de ajuda?
— Não, obrigada. Sente aí e relaxe. Eu já volto.
Beth observou Melody afastar-se, percebendo pela primeira vez o quanto ela havia emagrecido. Cinco a sete quilos a menos desde a última vez que a vira. Devia ser estresse, pensou. O caso de David tinha mexido com ela, mas, diferente de Beth quando passou pela mesma situação, Melody estava determinada a salvar seu casamento. Por outro lado, seus casamentos eram completamente diferentes. David havia cometido um grande erro e machucão Melody, mas, no geral, Beth sempre os considerou um casal feliz. Já o casamento de Beth tinha siso um fiasco desde o início. Do jeitinho que Nana havia previsto. Nana tinha a habilidade de avaliar as pessoas instantaneamente, e encolhia os ombros quando não gostava de alguém. Quando Beth anunciou que estava grávida e que, em vez de ir pra faculdade, ela e seu ex planejavam se casar, Nana começou a encolher os ombros de uma forma tão intensa que mais parecia um tic nervoso. É claro que Beth a ignorou na época, pensando que ela não havia nem dado uma chance a ele. Ela nem o conhecia. O casamento poderia dar certo. Não mesmo! Nunca deu certo. Nana sempre foi educada e cordial quando ele estava por perto, mas os ombros só pararam de encolher quando Beth voltou para casa, há dez anos. O casamento durou menos de nove meses. Ben tinha cinco semanas. Nana estava certa o tempo todo.
Melody foi para dentro de casa e voltou um pouco depois com David logo atrás dela. Ele carregava pratos de papel e garfinhos, obviamente preocupado.
Dava para ver os tufos de cabelo branco nas têmporas e as marcas de expressão na testa. Essas ela já tinha percebido da última vez em que o vira e imaginou ser mais um sinal do estresse pelo qual estava passando.
Às vezes Beth ficava imaginando como seria a sua vida se fosse casada. Não com seu ex marido, é claro.
Esse pensamento lhe causava arrepios. Ter de lidar com ele de quinze em quinze dias já era suficiente, muito obrigada. Mas com outra pessoa. Alguém... melhor. Pelo menos teoricamente parecia uma boa idéia. Dez anos haviam se passado, tinha se adaptado à vida que levava e ter uma pessoa com quem pudesse compartilhar suas noites, após um dia de trabalho, não seria uma má idéia. Alguém que lhe fizesse uma massagem nas costas de vez em quando, e seria muito bom também passar um sábado inteiro de pijamas quando desse vontade. Algo que ela fazia às vezes. E Ben também. Eles chamavam de dias de preguiça. Eram os melhores. Às vezes passavam um dia desses sem fazer absolutamente nada, terminando por pedir uma pizza e assistir a um filme. Divino!
Além disso, se relacionamentos eram difíceis, casamentos eram ainda piores. Não eram apenas Melody e David que passavam por momentos delicados; parecia que a maior parte dos casais passava por isso. Território minado. Como é mesmo que Nana sempre diz? "Coloque duas pessoas diferentes, com expectativas diferentes, debaixo do mesmo teto e nem sempre haverá feijoada na Páscoa."
Exatamente. Mesmo sem saber ao certo de onde Nana tirava suas metáforas.
Olhou para o relógio e sabia que tinha de ir ver como Nana estava assim que a festa acabasse. Sabia que a encontraria no canil, sentada atrás da escrivaninha, ou cuidando dos cachorros. Nana era teimosa. E dai se a perna esquerda mal suportava o peso de seu corpo? "Minha perna esquerda não é perfeita, mas também não é de cera." Ou que ela pudesse cair e se machucar? "Não sou um vaso de porcelana." Ou que seu braço esquerdo estava basicamente inútil? "Contanto que consiga tomar sopa, não preciso mesmo dele."
Ela era uma pessoa única, um coração abençoado. Sempre foi assim.
— Mamãe?
Perdida em seus pensamentos, não percebeu que Ben se aproximava. Seu rosto cheio de sardas estava todo suado. A roupa estava ensopada e havia marcas do gramado em sua camiseta as quais tinha certeza que nunca mais sairiam.
— Oi, querido!
—Posso dormir na casa do Zach?
— Pensei que ele tivesse treino de futebol.
— Depois do treino. Algumas pessoas vão ficar e ele ganhou Guitar Hero da mãe dele de presente de aniversário.
Beth sabia por que ele pedia isso.
— Hoje não dá. Você não pode. Seu pai vem te buscar às 17 horas.
— Você pode ligar para ele e perguntar?
— Posso tentar. Mas você sabe...
Tenho de ir para a cama às 21 horas como eu ainda estivesse no segundo ano ou algo assim. Eu nem estou com sono ainda. E, amanhã, ele fica o dia todo me dando coisas para fazer.
— Pensei que ele fosse te levar na casa do seu avô para o café da manhã, depois da igreja.
— Mesmo assim não quero ir.
"Também não quero que você vá", pensou. Mas que ela poderia fazer?
— Por que você não leva um livro? Pode ler à noite, no quarto, e amanhã, quando se sentir chateado.
—Você sempre faz a mesma sugestão.
"Por que não sei mais o que posso sugerir", pensou.
— Quer ir até a livraria?
— Não — ele disse, mas Beth percebeu que era da boca para fora.
— Então, venha comigo. Quero comprar um livro para mim.
— Está bem.
— Você sabe que eu sinto muito, não é?
— Eu sei.
Ir à livraria não ajudou muito a melhorar o humor de Ben. Apesar de ter escolhido dois livros de mistério dos Hardy Boys, ela percebeu o desânimo na hora de pagar. Voltando para casa, abriu um dos livros e fingiu lê-lo. Mas Beth sabia que ele estava apenas tentando evitar mais perguntas, ou que ela tentasse, com carinho forçado, fazer com que ele se sentisse melhor em relação ao fato de ter de passar a noite na casa do pai. Com 10 anos de idade, Ben já sabia muito bem prever o comportamento da mãe.
Beth detestava o fato de ele não gostar de ir para casa de seu pai. Observou-o entrar em casa, indo em direção ao seu quarto, sabendo que ia arrumar sua mala. Em vez de ir atrás dele, sentou-se na escada da varanda, desejando pela milésima vez ter um balanço ali. Ainda estava quente e, pela choradeira no canil, era óbvio que os cães também estavam incomodados com o calor. Tentou perceber se ouvia Nana fazendo algum barulho dentro de casa. Se ela estivesse na cozinha, teria ouvido quando Ben entrou. Nana era uma cacofonia ambulante. Não por causa do acidente vascular, mas porque fazia parte de sua personalidade. Ela gargalhava, batia nas panelas com a colher ao cozinhar, adorava beisebol e aumentava o rádio em um nível que arrebentava os tímpanos sempre que tocavam músicas do estilo das Big Bands. "Música desse tipo não dá em árvores, sabia." Antes do acidente, costumava usar galochas, macacões e um enorme chapéu de palha, andando para lá e para cá pelo quintal quase todos os dias, ensinando os cães a sentarem sobre as patas traseiras, e ficarem junto dela ou onde estavam.
Anos atrás, junto com seu marido, Nana ensinava os cães a fazer quase tudo. Juntos, haviam criado e treinado cães de caça, detectores de drogas para a polícia, cães de guarda e de segurança doméstica. Esse tempo era passado, isso agora só acontecia ocasionalmente.
Não porque ela não soubesse o que fazer, ela sempre tinha cuidado da maior parte dos treinos. Mas treinar um cão para segurança doméstica levava catorze meses, e, levando em conta que Nana se apaixonava até mesmo por um esquilo, ela sempre ficava de coração partido ao término do treinamento. E sem o avô por perto para lhe dizer: "Mas já está vendido, não há outra escolha". Nana achava mais fácil deixar de lado essa parte do contrato.
Em vez disso, atualmente Nana dirigia uma escola de obediência. As pessoas deixavam seus cães por algumas semanas — recrutamento de cães, ela dizia — e Nana os ensinava a sentar, deitar, ficar junto, atender chamados e sentar sobre as patas traseiras. Ordens simples, descomplicadas, que qualquer cão aprendia rapidamente. Normalmente havia de 15 a 20 cães em um treino de duas semanas, e eram necessários vinte minutos por dia para cada um deles. O cão perdia o interesse se os períodos de treino fossem mais longos. Até que não era tão ruim quando havia 15 cães por lá, mas manter 25 cães exigia longas horas de trabalho, levando em conta que cada um deles tinha de ter um tempo para passear. Além disso, havia a alimentação, a limpeza do canil, o relacionamento com os clientes e a documentação. Beth trabalhava de doze a catorze horas por dia durante todo o verão.
Elas estavam sempre ocupadas. Não era difícil treinar um cão. Beth ajudara Nana muitas vezes desde os 12 anos. E havia dúzias de livros sobre o assunto. Além disso, a clínica veterinária tinha aulas para cães e seus respectivos donos aos sábados pela manhã, a preços bem razoáveis. Beth sabia que a maioria das pessoas podia usar vinte minutos de seu tempo semanal para treinar seu cão. Mas as pessoas não faziam isso. Pelo contrário, vinham pessoas da Flórida e do Tennessee para que seus cães fossem treinados por quem soubesse fazê-lo. A reputação de Nana como grande treinadora era conhecida, mas tudo que fazia era ensiná-los a sentar, atender aos chamados, sentar sobre as patas e a ficar quietos. Não era algo científico. Contudo, as pessoas estavam sempre extremamente agradecidas. E sempre, sempre, maravilhadas.
Beth olhou para o relógio. Keith, seu ex-marido, logo chegaria. Apesar de ter problemas com ele, Deus sabia que eram problemas sérios, eles tinham a guarda compartilhada do filho, simples assim, e ela tentava fazer o melhor possível para que tudo desse certo. Dizia a si mesma que era importante para Ben passar algum tempo com seu pai. Meninos precisam da companhia dos pais, principalmente quando a adolescência está batendo à porta, além do que, isso ela tinha de admitir, ele não era má pessoa. Era imaturo, mas não era mau. Tomava umas cervejas de vez quando, mas não era alcoólatra; não usava drogas: nunca havia sido agressivo com nenhum deles. Ia à igreja todos os domingos. Tinha um emprego fixo e pagava a pensão alimentícia em dia, ou melhor, sua família pagava. O dinheiro vinha de um fundo, um dos muitos que a família tinha iniciado ao longo dos anos. E, na maior parte do tempo, mantinha sua interminável fila de namoradas longe do filho durante fins de semana em que estava com ele. Pois é, na maior parte do tempo. Tinha melhorado um pouco ultimamente, mas ela tinha plena certeza de que isso se devia mais ao fato de estar sem namorada no momento do que a um renovado compromisso de pai. Isss não era muito importante, exceto pelo fato de as namoradas estarem mais próximas da idade de Ben que da dele e, via de regra, apresentarem um QI comparável ao de uma ostra. Ela não estava sendo rancorosa, até mesmo Ben tinha noção disso. Há alguns meses, ele teve de ajudar uma delas a preparar uma nova panela de macarrão com queijo depois de tê-lo queimado na primeira tentativa. A sequência de adicionar leite e manteiga, mexendo e misturando, extrapolava sua inteligência.
Contudo, não era isso o que mais incomodava Ben. Tudo bem com as namoradas — que por sinal o tratavam mais como um irmão mais novo do que como um filho. Nem eram as tarefas que o preocupavam. Não havia problema em varrer o quintal ou limpar a cozinha e colocar o lixo para fora. Sabia que seu ex-marido não estava fazendo o filho de criado. E era bom para ele ter tarefas; ele também às tinha quando ficava com ela no fim de semana. Não. O problema era a imaturidade de Keith, o desapontamento implacável em relação a Ben. Keith queria que ele fosse um atleta; em vez disso, o filho decide aprender a tocar violino. Queria alguém que saísse com ele para caçar; mas seu filho prefere ler. Queria que seu filho jogasse beisebol ou basquete, mas seu filho é desajeitado e tem a visão deficiente.
Ele nunca falou nada sobre isso com ela ou Ben, mas não era preciso. Estava muito evidente no desprezo com que assistia a Ben jogando futebol, na maneira como havia se recusado a cumprimentar o filho por ter vencido seu último torneio de xadrez e na forma como forçava Ben a ser alguém que ele não era. Isso deixava Beth louca e, ao mesmo tempo, partia seu coração, mas era muito pior para Ben. Ele havia tentado agradar ao pai por anos, mas isso só serviu para deixá-lo exausto. Ter aulas de beisebol. Nenhum problema, certo? Ben pode até acabar gostando e quem sabe fazer parte da Liga Infantil. Quando Keith sugeriu fazia todo sentido e Ben até se entusiasmou com a idéia, mas passou a odiar depois de um tempo. Quando conseguia pegar três bolas seguidas, seu pai queria que tivesse pego quatro. Quando melhorava, seu pai queria que fizesse ma ainda, que pegasse todas as bolas. E, depois, tinha de pegá-las correndo para frente. Depois correndo para trás. Deslizando. Mergulhando. Pegar a bola lançada pelo pai com toda sua força. E se deixasse cair? O mundo acabava. Seu pai não era do tipo que dizia: "Valeu, campeão, ou boa tentativa". Não. Era do tipo que gritava: "Vai, anda logo, para de fazer manha".
Ah, ela tentou falar com ele sobre isso. Falou até sentir-se enjoada. É claro que entrou por um ouvido e saiu pelo outro para ele. A velha história de sempre. Apesar da sua imaturidade — ou por causa dela — Keith era teimoso e o dono da verdade em muitos assuntos, entre eles na maneira como Ben deveria ser criado. Queria um determinado tipo de filho, e, se Deus permitisse, um dia teria. Como era previsto, Ben começou a reagir conforme sua própria maneira passivo-agressiva. Começou a deixar cair todas as bolas lançadas pelo pai, mesmo as mais altas e mais fáceis, ao mesmo tempo em que fingia ignorar a frustração visivelmente crescente de seu pai, até que ele tirasse as luvas e as jogasse no chão, entrasse em casa e ficasse o resto da tarde de mau humor. Ben fingia nem perceber. Sentava-se debaixo de uma árvore e ficava lendo, até a mãe vir buscá-lo, horas mais tarde. As brigas de Beth e seu ex não eram somente em elação a Ben; eles eram fogo e gelo. Ele era fogo, e ela gelo. Keith ainda sentia atração por ela, o que a deixava ainda mais irritada. Ele tinha a maldita ideia de que ela ia querer alguma coisa com ele, mas isso eslava além de sua vontade, entretanto isso não impedia suas tentativas. Na maior parte do tempo, não conseguia nem mesmo se lembrar dos motivos que um dia a levaram a se sentir atraída por ele. Conseguia se lembrar das razões por ter optado pelo casamento: ser jovem e estúpida eram as principais, além do detalhe de estar grávida e quase parindo, mas agora, ao olhar bem para ele, seus músculos se contraíam por dentro. Ele não fazia seu tipo. Na verdade, nunca tinha feito. Se toda a sua vida fosse uma fita de vídeo, seu casamento seria um dos momentos que apagaria com prazer. Com exceção de Ben, claro.
Gostaria que Drake, seu irmão mais novo, estivesse ali, e sentia a dor que sempre sentia ao pensar nele. — Sempre que vinha, Ben o seguia como os cães seguiam Nana. Juntos, podiam passear para caçar borboletas ou passar horas na casa da árvore que seu avô havia feito, à qual só se tinha acesso por uma ponte capenga passando por cima de dois riachos da propriedade. Diferente de seu ex, Drake aceitava seu sobrinho como ele era, o que, em muitos aspectos, fazia dele mais pai de Ben do que o próprio pai tinha sido um dia. Ben o adorava e Beth amava Drake pela forma serena com que ele alimentava a autoconfiança de Ben. Lembrava-se de ter-lhe agradecido um dia, e tudo o que ele fez foi dar de ombros. "Eu gosto de estar com ele", disse, sem acrescentar detalhes.
Sabia que tinha de ver como Nana estava. Levantou-se e viu a luz no escritório, mas duvidou que Nana estivesse cuidando da papelada. Era mais provável que estivesse andando pelo canil, por isso foi nessa direção. Esperava que Nana não tivesse enfiado na cabeça que tinha de levar um grupo de cães para passear. Ela não tinha como manter o equilíbrio, ou até mesmo segurar os animais se eles esticassem as coleiras, mas essa sempre fora a sua atividade predileta. Achava que a maioria dos cães não se exercitavam o suficiente, e a propriedade era um excelente remédio a suprir tal carência. Com quase 70 acres, possuía várias clareiras delimitadas por matas virgens, com várias trilhas e dois pequenos riachos que desaguavam no South River. A propriedade, comprada quase de graça cinqüenta anos atrás, tinha agora um bom valor. Pelo menos foi o que disse o advogado que veio sondar o interesse de Nana em vendê-la.
Beth sabia exatamente quem estava por trás disso. Nana também sabia, mas se fez de boba na frente do advogado. Ficou olhando para ele com os olhos bem abertos, focados no nada, derrubou as uvas que tinha nas mãos e murmurou palavras desconexas. Quando ele saiu, Beth e ela riram por horas.
Olhou pela janela do escritório e não viu Nana, mas ouviu a voz dela vindo da direção do canil.
— Quieta... vem aqui. Boa menina. Vem.
Beth viu Nana elogiando uma cadela da raça shitzu que vinha em sua direção. Parecia aqueles cães de brinquedo de corda, comprados no Walmart.
— O que está fazendo, Nana? Não devia estar aqui fora.
— Ah, oi, Beth — Nana já não gaguejava mais, como fazia meses atrás.
Beth colocou as mãos na cintura.
— Não devia estar aqui fora sozinha.
— Trouxe um celular. Se tivesse algum problema, poderia ligar.
— Você não tem celular.
— Tenho o seu. Tirei-o da sua bolsa hoje de manhã.
— Então, ia ligar para quem?
Ela parecia não ter pensado sobre isso e franziu a testa ao olhar para a cachorrinha.
— Preciosa, está vendo o que eu tenho de aguentar? Não te falei que a mocinha aí é rápida como uma lebre?
Beth percebeu que ela ia mudar o assunto.
— Onde está Ben?
— Lá dentro, arrumando suas coisas. Vai passar o fim de semana com o pai.
— Aposto que está super feliz com a idéia. Tem certeza de que não foi se esconder na casa da árvore?
— Pega leve. Ele ainda é o pai dele.
— Você é quem acha.
— Eu tenho certeza.
—Você tem certeza de que não saiu com mais ninguém naquela época? Nem sequer uma única noite com um empregado do hotel, com um caminhoneiro ou com alguém da escola? — perguntou, cheia de esperança.
Ela sempre mostrava ter esperança quando tocava nesse assunto.
— Tenho certeza e já te disse isso um milhão de vezes.
Nana piscou.
— Eu sei, mas estou sempre esperando que sua memória melhore.
— Mudando de assunto, há quanto tempo está aqui fora?
— Que horas são?
— Quase 16 horas.
— Então, faz umas três horas.
— Debaixo desse calor?
— Ei, não estou inválida. Foi só um incidente.
— Foi um acidente vascular cerebral.
— Mas não foi grave.
— Não consegue mexer o braço.
— Contanto que eu consiga tomar sopa, não preciso dele. Agora, deixe-me ver meu neto. Quero me despedir dele antes que vá embora — foram andando em direção ao canil. Preciosa atrás dela, ofegante,Abanando o rabo. Linda cachorrinha.
— Acho que quero comida chinesa hoje à noite. Vai querer também?
— Não pensei nisso ainda.
— Então, pense.
—Tudo bem. Pode ser comida chinesa, mas não quero nada pesado. Nem frituras. Está muito calor para isso.
— Você não tem graça.
— Mas tenho saúde.
—É sempre a mesma história. Ah, e já que é tão saudável, você poderia levar a Preciosa ao canil 14? Tenho uma nova piada que quero contar ao Ben.
— Onde aprendeu essa piada?
— Na rádio.
— É adequada?
— Claro que é. Quem você acha que eu sou?
— Sei exatamente quem você é e é por isso que pergunto. A piada é adequada?
— Dois canibais estão comendo um comediante, um vira para o outro e diz “Você achou o gosto engraçado?”
Beth sorriu.
— Ele vai gostar.
— Que bom. Coitadinho! Precisa de alguma coisa que o anime.
— Ele está bem.
— É claro que está. E eu sou a rainha da Inglaterra, sabia?
Quando chegaram ao canil, Nana continuou em direção à casa, mancando mais do que estava de manhã. Estava melhorando, mas o caminho era longo.

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