Capítulo 4 - Thibault
Os fuzileiros Navais baseiam-se no número 3. É uma das
primeiras coisas que ensinam aos recrutas durante o treinamento básico. Isso
torna as coisas fáceis de ser entendidas. Três fuzileiros formam uma unidade
militar, três unidades formam um esquadrão, três esquadrões formam um pelotão,
três pelotões formam uma companhia, três companhias formam um batalhão e três
batalhões formam um regimento. Na teoria, pelo menos. Quando invadiram o
Iraque, seu regimento tinha sido combinado com elementos de outras unidades,
incluindo o Batalhão de Reconhecimento Blindado, Batalhões de Infantaria do 11°
Regimento dos Fuzileiros Navais, o Segundo e o Terceiro Batalhões de Ataque
Anfíbio, a Companhia B do Primeiro Batalhão de Engenharia de Combate e o
Batalhão 115 de Apoio ao Serviço e ao Combate. Massivo. Preparado para tudo.
Quase seis mil militares no total.
Conforme Thibault caminhava debaixo de um céu que
começava a mudar de cor com a aproximação do crepúsculo, pensou novamente
naquela noite, tecnicamente seu primeiro combate em território hostil. Seu Regimento,
Primeiro Batalhão do Quinto Regimento, foi a primeira unidade a atravessar o
Iraque com a intenção de encontrar os campos de petróleo de Rumaylah. Todo
mundo se lembra de que, durante a guerra do Golfo, Saddam Hussein tinha
incendiado a maioria dos postos de petróleo do Kuwait e ninguém queria que isso
acontecesse novamente. Para encurtar a história, o batalhão, juntamente com
outros, chegou a tempo. Apenas sete poços pegavam fogo quando o local foi
considerado seguro. E, de lá, o esquadrão de Thibault foi mandado para o norte,
para Bagdá, para ajudar a conquistar a capital. O Primeiro Batalhão do Quinto
Regimento foi o mais condecorado dentre os fuzileiros. Sendo assim, foi
escolhido para o ataque mais incisivo dentro do território inimigo da história
do Corpo de Fuzileiros Navais. Sua primeira estada no Iraque havia durado pouco
mais de quatro meses
Após cinco anos, a maioria dos detalhes sobre a sua
primeira estada era obscura. Havia cumprido missão e teve de voltar para
Pendleton. Não tocava no assunto. Tentava não pensar nele, com exceção de um
detalhe: Ricky Martinez e Bill Kincaid, dois homens do esquadrão de Thibault
que eram protagonistas de uma história da qual ele jamais se esqueceria.
Pegue três pessoas
aleatoriamente, coloque-as juntas, e haverá diferenças. Até aí, nenhuma
surpresa. E eles eram diferentes em princípio. Ricky tinha sido criado em um
apartamento em Midland, no Texas, era ex-jogador de beisebol e fanático por
levantamento de peso, chegando a competir no Minnesota Twins antes de se
alistar; Bill tinha tocado trompete na banda da escola, era do norte de Nova
York e tinha sido criado juntamente com cinco irmãs, em uma fazenda de
laticínios. Ricky gostava de loiras, Bill, de morenas; Ricky mascava tabaco,
Bill fumava; Ricky gostava de rap e Bill de música country. Isso não era
problema para eles. Passaram pelo mesmo treinamento, comiam juntos e dormiam
juntos. Falavam de esportes e política. Conversavam sem parar, como se fossem
irmãos e pregavam peças um no outro. Bill costumava acordar com uma sobrancelha
raspada; na manhã seguinte era a vez de Ricky acordar com ambas raspadas.
Thibault tinha aprendido a levantar ao mais leve som e, assim, suas
sobrancelhas ficaram intactas. Riram dessas brincadeiras por meses. Uma noite,
quando estavam os dois bêbados, fizeram tatuagens idênticas que proclamavam sua
fidelidade aos fuzileiros.
Depois de tanto tempo juntos, chegaram a um ato em que
já podiam prever o que o outro ia fazer. Cada um, alternadamente, havia salvo a
vida de Thibault, ou pelo menos havia evitado que ele tivesse se ferido
gravemente. Bill havia agarrado o colete de Thibault quando ele estava prestes
a sair em campo aberto; um pouco depois, um atirador de elite feriu dois homens
próximos a eles. Na segunda vez, Thibault, distraído, quase foi atropelado por
um Humvee que vinha a toda velocidade, guiado por um fuzileiro; dessa vez foi
Ricky que agarrou seu braço, fazendo-o parar. Mesmo na guerra, as pessoas
continuavam morrendo em acidentes de carro. É só se lembrar do caso Patton.
Depois da conquista dos postos de petróleo, checaram à
divisa de Bagdá com o resto da companhia. A cidade ainda não havia caído. Eram
parte de um comboio, três homens no meio de centenas, fechando o cerco na
cidade. Além do ronco dos motores dos veículos aliados, a cidade estava em
silêncio. Ao ouvirem o som de tiros, vindo de uma rua paralela, o esquadrão de
Thibault foi verificar.
Examinaram o cenário.
Prédios de dois e três andares, geminados de ambos os lados em uma rua toda
esburacada. Um cachorro vira-lata buscava algo em meio ao lixo. Um pouco mais
adiante, um carro em chamas. Esperaram. Não viram nada. Esperaram mais um
pouco. Não ouviram nada. Finalmente, Thibault, Ricky e Bill receberam ordens
para atravessar a rua. De lá, o esquadrão começou a atravessar a rua,
adentrando no desconhecido.
Quando ouviram novamente o som de tiros naquele dia,
não era um só. Eram dezenas e depois centenas de balas automáticas,
encurralando-os em um círculo de fogo. Thibault, Ricky e Bill e todo o resto do
esquadrão, que havia ficado do outro lado da rua, estavam confinados aos
batentes das portas, com poucos lugares para se esconder.
A troca de tiros não durou muito tempo, as pessoas
disseram depois. Durou tempo suficiente. O fogo caía em forma de cascata sobre
eles, vindo dos andares mais altos. Thibault e seu esquadrão, instintivamente,
apontaram suas armas para cima e dispararam mais de uma vez. Do outro lado da
rua, dois de seus homens estavam feridos, mas os reforços não tardaram a
chegar. Um tanque veio em seguida, com a infantaria logo atrás. O ar vibrou
quando o canhão disparou, e os andares superiores de um prédio vieram abaixo,
estilhaços por toda a parte. Thibault ouvia gritos vindos de todos os lados e
viu civis fugindo dos prédios para as ruas. A fuzilaria continuava; o vira-lata
havia sido atingido e agonizava. Um outro fuzileiro tinha sido atingido na
perna. Thibault, Ricky e Bill não podiam sair de onde estavam, presos pelo fogo
constante que arrancava pedaços das paredes próximas a eles. Mesmo assim,
continuavam disparando. O ar vibrou com mais uma explosão e outro prédio ruiu.
O tanque aproximava-se deles. De repente, os disparos do inimigo começaram a
vir de duas direções diferentes, e não de apenas uma. Bill olhou para ele e ele
olhou para Bill. Eles sabiam o que tinha de ser feito. Era hora de sair de lá;
se ficassem, morreriam, Thibault levantou primeiro.
Naquele momento, tudo ficou branco de repente, depois
negro.
Em Hampton, cinco anos mais tarde, Thibault não
conseguia se lembrar de todos os detalhes; nítida mesmo era a sensação de ter
sido jogado em uma máquina de lavar. Caiu na rua após a explosão, seus ouvidos
zuniam. Seu amigo Victor veio rapidamente em seu auxílio, assim como o médico
assistente. O tanque continuava disparando e, aos poucos, a rua controlada.
Só soube dos detalhes depois do ocorrido, assim como
soube que uma granada do tipo RPG havia causado a explosão. Um oficial lhe
disse que o alvo da granada era o tanque e
por pouco não o atingiu. Em vez disso, como se estivesse destinada a eles, voou
na direção de Thibault, Ricky e Bill.
Thibault foi colocado em um Humvee e retirado do
local. Milagrosamente, havia sofrido apenas ferimentos leves e, três dias
depois, já estava de volta ao seu esquadrão. Ricky e Bill não voltaram. Foram
enterrados depois com honras militares. Ricky estaria a uma semana de celebrar
seu vigésimo segundo aniversário. Bill tinha 20 anos. Não seriam as primeiras,
nem as últimas baixas feitas pela guerra, que continuou.
Thibault esforçou-se para não pensar muito neles.
Podia parecer insensibilidade, mas a guerra fazia sua mente se fechar para
ocorridos daquele tipo. Pensar sobre a morte deles, sobre a ausência deles
doía; assim, não pensava. E quase todo mundo no esquadrão fazia o mesmo.
Concentrou-se no fato de ainda estar vivo. Concentrou-se em manter os outros em
segurança.
Mas hoje sentia as agulhadas da memória, da perda, e
não as enterrava. Permaneciam com ele ao percorrer as pacatas ruas da cidade,
indo em direção às cercanias do outro lado. De acordo com as instruções
recebidas na recepção do hotel, teria de ir para leste, pela estrada 54,
caminhando pela grama, do lado de fora da estrada. Em suas viagens, havia
aprendido a nunca confiar nos motoristas. Zeus caminhava atrás dele, muito
ofegante. Parou e deu a ele toda a água que restava na garrafa.
Havia lojas dos dois lados da estrada. Uma loja de
colchões, uma funilaria, uma brinquedoteca, um posto de gasolina que vendia
comida fedida, embrulhada em filme plástico e duas fazendas caindo aos pedaços
que pareciam não pertencer ao mesmo lugar. Era como se a modernidade tivesse
florescido ao redor delas. Supôs que tivesse sido exatamente isso que
acontecera. Imaginava quanto tempo as pessoas ainda aguentariam morar dessa
forma ou o porquê de alguém querer morar em um lugar bem no meio de um centro
comercial. Os carros vinham de ambas as direções. As nuvens começavam a
crescer, cinzas no céu. Sentiu o cheiro de chuva antes de receber o primeiro
pingo, mas bastaram alguns passos para começar a maior chuvarada, que durou
quinze minutos, porém as nuvens carregadas dirigiram-se para a costa, deixando
apenas uma leve neblina. Zeus sacudiu seu pelo para retirar a água. Os pássaros
cantaram novamente nas árvores enquanto um vapor subia da terra úmida.
Finalmente, chegou ao local da feira, mas estava
deserto. Nada de mais, pensou, ao examinar o local. Só o básico: o
estacionamento em uma área de cascalho à esquerda; uns celeiros antigos à
direita; um vasto gramado para as atrações entre as duas áreas, tudo cercado
por arame farpado.
Não precisou pular a cerca
nem olhar para a fotografia. Já a tinha visto milhares de vezes. Continuou
andando, orientando-se, e acabou encontrando a bilheteria. Atrás da bilheteira
havia uma abertura em forma de arco onde se poderia instalar uma bandeira.
Chegando lá, virou em direção ao norte, focando seu ângulo de visão entre a
bilheteria e o arco, como na fotografia.
A base dos fuzileiros navais é o número três. Três
homens formam uma unidade militar, três unidades formam um esquadrão, três
esquadrões formam um pelotão. Ele havia ido três vezes ao Iraque. Olhando no
relógio, percebeu que estava em Hampton há três horas, e lá na frente,
exatamente onde deveriam estar, havia três árvores juntas.
Thibault voltou à estrada, sabendo que estava perto de
encontrá-la. Estava chegando cada vez mais próximo desse momento.
Ela havia estado ali. Agora, ele tinha certeza disso.
Tudo de que precisava era de um nome. Atravessando o país a pé, teve muito
tempo para pensar nisso e decidiu que havia três maneiras de enfrentar a
situação. Primeiro, poderia entrar em contato com a associação local de
veteranos e perguntar se havia alguém por lá que tinha ido ao Iraque. Segundo,
poderia ir até a escola local e ver se havia cópias dos anuários de dez a
quinze anos atrás. \ Poderia olhar as fotografias uma a uma. Ou, em terceiro
lugar, poderia mostrar a fotografia e fazer perguntas, As três alternativas
tinham desvantagens e nenhuma tinha garantias. A associação dos veteranos não
estava na lista telefônica. Um a zero. Como ainda estavam em férias, não
acreditava que a escola estivesse aberta; mesmo que estivesse, talvez não fosse
fácil ter acesso aos anuários. Dois a zero, pelo menos até agora. O que
significava que a melhor alternativa era sair por aí perguntando se alguém a
conhecia.
Porém, a quem perguntar?
Ficou sabendo pelo almanaque que em Hampton, Carolina
do Norte, havia nove mil habitantes. Outros 13 mil moravam no condado de
Hampton. Gente demais. A maneira mais eficaz seria limitar a busca aos
candidatos mais prováveis. Uma vez mais, começou com o que já sabia.
Ela parecia ter 20 e poucos anos quando tirou a
fotografia, o que significava que agora estava perto dos 30. Talvez 30 e
poucos. Obviamente, era atraente. Indo mais ao fundo, em uma cidade daquela
proporção, supondo uma distribuição por faixa etária igualitária, significa que
haveria cerca de 2.750 crianças e recém-nascidos e 10 anos de idade, 2.750
pessoas entre 10 e 20 anos de idade, e 5.500 entre 20 e 30 anos de idade, a
faixa etária dela. Grosso modo.
Dentre os quais supôs ser
metade homens e metade mulheres. As mulheres ficariam desconfiadas das suas
intenções. Ele era um estranho. Estranhos eram perigosos. Duvidava que
fornecessem muitas informações.
Talvez os homens ajudassem, dependendo de como fizesse
a pergunta. Sabia, por experiência própria, quase todos os homens prestavam
atenção nas mulheres atraentes da sua idade, especialmente os solteiros.
Quantos homens da faixa etária dela estariam solteiros no momento? Imaginou uns
30%. Poderia estar certo ou não, mas ia seguir esse caminho. Seriam mais ou
menos 900 homens. Calculou que 80% desses homens costumavam morar na região na
época da fotografia. Eram só suposições, mas Hampton parecia mais uma cidade de
emigrantes do que de imigrantes. O que abaixava seu número para 720. Poderia
ainda dividi-lo ao meio, concentrando-se nos homens solteiros entre 25 e 35
anos em vez de entre 20 e 40 anos. Isso resultaria em 360. Imaginou que uma boa
parte desses homens a conhecia ou tinha tido contato com ela cinco anos atrás. Talvez
tivessem feito o ensino médio juntos, talvez não — sabia que havia uma escola
na cidade —, mas saberiam dizer se ela ainda estava solteira. É claro que era
possível que ela não estivesse solteira — as mulheres das cidadezinhas do sul
provavelmente se casam jovens, afinal de contas —, mas primeiro ia lidar com as
suposições que já tinha feito. A frase no verso da fotografia — "Se cuida!
E" — não soava romântica o suficiente para ser escrita a um namorado ou
noivo. Não havia um "Eu te amo" nem um "Vou sentir
saudades". Só uma inicial. Uma amiga,
De 22.000 para 360 candidatos em menos de dez minutos.
Nada mau. E definitivamente um bom número para começar. Supondo, obviamente,
que ela morava ali quando a fotografia foi tirada. Supondo que não esteve ali
somente de passagem.
Sabia que essa era outra suposição importante. Mas
tinha de começar de algum lugar e sabia que ela tinha estado ali uma vez. De um
jeito ou de outro, encontraria a verdade, depois disso decidiria o próximo
passo. Onde os homens solteiros costumam ficar? Homens solteiros com quem fosse
possível iniciar uma conversa? "Nos conhecemos há uns dois anos e ela me
disse para telefonar se eu voltasse aqui, mas perdi o telefone dela e esqueci
seu nome..."
Bares. Com salões de bilhar.
Em uma cidade daquele tamanho, duvidava que houvesse
mais do que três ou quatro lugares que os homens da região frequentassem. Bares
e salões de bilhar tinham a vantagem de vender bebida alcoólica e era sábado à
noite.
Estariam lotados. Imaginou
que conseguiria uma resposta, de um jeito ou de outro, nas próximas vinte
horas.
Olhou para Zeus.
— Tudo indica que você vai ficar sozinho hoje à noite.
Você podia ir comigo, mas não ia poder entrar e não sei quanto tempo eu vou
demorar.
O cachorro continuou andando, com a cabeça baixa, a
língua de fora, cansado e com muito calor. Zeus nem ligava.
—
Vou ligar o ar-condicionado, está bem?
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