Capítulo 4
Naquela noite, as crianças Baudelaire sentaram à mesa
com tia Josephine e jantaram com um buraco frio no estômago. Metade do buraco
se devia ao caldo de lima gelado preparado por tia Josephine. Mas a outra
metade — se é que era apenas metade — se devia ao fato de saberem que o conde
Olaf voltara a fazer parte da vida delas.
– Aquele
capitão Sham é sem dúvida uma pessoa encantadora – disse tia Josephine, pondo
um pedaço de casca de lima na boca. – Deve
se sentir muito só, tendo se mudado para uma nova cidade e depois perdendo uma
perna. Poderíamos convidá-lo para um jantar.
– Nós já lhe
dissemos mais de uma vez, tia Josephine – disse Violet. – Ele não é o capitão Sham. É o conde Olaf
disfarçado.
– Basta dessas
asneiras – disse tia Josephine. – O Sr.
Poe me contou que o conde Olaf tem uma
tatuagem no tornozelo esquerdo e uma única sobrancelha acima dos olhos. O
capitão Sham não tem o tornozelo esquerdo e só tem um olho. Não posso acreditar
que vocês ousem duvidar de um homem com problemas na vista.
– Eu tenho
problemas na vista – disse Klaus, apontando para os seus óculos, – e você está duvidando de mim.
– Agradeceria
se você não fosse impertinente – disse tia Josephine, usando uma expressão
que aqui quer dizer ''ficasse me mostrando
que estou errada, pois isso me aborrece''. – É muito aborrecido. Vocês têm que aceitar,
de uma vez por todas, que o capitão Sham não é o conde Olaf. – Enfiou a mão no bolso e tirou o cartão. – Vejam este cartão. Aqui está escrito conde
Olaf? Não. É capitão Sham que está escrito. Está certo que o cartão tem um erro
ortográfico grave, mas não deixa de ser uma prova de que o capitão Sham é quem
ele diz que é.
Tia Josephine pôs o cartão na mesa de jantar, e os
Baudelaire olharam para ele e suspiraram. Cartões evidentemente não provam
coisa alguma. Qualquer um pode ir a uma gráfica e mandar imprimir cartões com
os dizeres que bem entender. O rei da Dinamarca pode encomendar cartões onde
esteja escrito que ele vende bolas de golfe. Sua dentista pode encomendar
cartões onde esteja escrito que ela é sua avó. A fim de escapar do castelo de
um inimigo meu, mandei imprimir certa vez cartões em que eu aparecia como
almirante da marinha francesa. O fato de uma coisa estar impressa — ou em
cartão, ou em jornal, ou em livro — não significa que essa coisa seja
verdadeira. Os três irmãos não tinham a menor dúvida sobre isso, mas não
encontravam palavras capazes de convencer tia Josephine. Assim, simplesmente
olharam para ela, suspiraram, e em silêncio fingiram comer o prato que ela
havia preparado.
O sossego era tão grande na sala de jantar que todos
pularam — Violet, Klaus, Sunny e até mesmo tia Josephine — quando o telefone
tocou.
– Meu Deus! – disse tia
Josephine. – Que faremos?
– Minca! – gritou Sunny, provavelmente querendo dizer: ''Vamos atender, é claro!''.
Tia Josephine se levantou, mas não fez nenhum
movimento, nem quando o telefone tocou uma segunda vez.
– Talvez seja importante – disse, – mas não sei se vale correr o risco de ser eletrocutada.
– Se com isso
você se sentir mais aliviada – disse Violet, limpando os lábios com o
guardanapo, – eu atendo o telefone. – Violet se levantou e andou até o telefone,
ainda em tempo de atendê-lo no terceiro toque.
– Alô? – disse ela.
– É a Sra.
Anwhistle? – perguntou uma voz ofegante.
– Não – respondeu Violet. – Aqui fala Violet Baudelaire. Em que posso
ajudá-lo?
– Ponha a velha
no aparelho, órfã – disse a voz, e Violet ficou gelada ao perceber que era o
capitão Sham. Mais que depressa, ela olhou para a tia Josephine, que agora
observava Violet nervosamente.
– Sinto muito – disse Violet no telefone. – Houve
engano.
– Não me venha
com brincadeiras, sua infeliz... – começou o capitão a dizer, mas Violet
desligou o telefone, com o coração batendo, e se virou para tia Josephine.
– Era alguém
que queria ligar para a Escola de Dança Hopalong – disse ela, sem titubear na
mentira.
– Que menina
corajosa! – murmurou tia Josephine. – Pegou
o telefone sem hesitar!
– Na verdade, é
absolutamente seguro – disse Violet.
– Você nunca
atendeu o telefone, tia Josephine? – perguntou Klaus.
– Belo quase
sempre atendia – disse tia Josephine, – e ele usava uma luva especial de segurança.
Mas agora que vi sua irmã atender, posso fazer uma tentativa a próxima vez que
alguém ligar.
O telefone tocou, e tia Josephine tornou a pular.
– Minha nossa! – disse. – Não pensei que fosse tocar de novo tão cedo.
Que noite mais cheia de aventuras
Violet olhou fixo para o telefone, sabendo que era o
capitão Sham novamente.
– Quer que eu
atenda outra vez? – perguntou.
– Não, não – disse tia Josephine, caminhando na direção do aparelhinho sonante como se este
fosse um Cachorrão a latir ameaçadoramente. – Eu disse que ia tentar, e é o que vou fazer.
– Respirou fundo, estendeu uma das mãos,
nervosa, e pegou o telefone.
– Alô? – disse ela. – Sim, é ela. Oh, olá,
capitão Sham. Que prazer ouvir sua voz. – Tia Josephine ouviu por um momento, depois
enrubesceu vivamente. – Ora, é muita
delicadeza sua dizer isso, capitão Sham, mas... o quê? Oh, está bem. É muita
delicadeza sua dizer isso, Julio. O quê? O quê? Ah! é uma ideia adorável.
Espere um instante, por favor.
Tia Josephine tapou o fone e se dirigiu às três
crianças.
– Violet, Klaus, Sunny, vão
para o seu quarto, por favor – disse. – O capitão Sham, quero dizer, Julio — ele me
pediu que o chamasse pelo primeiro nome —, está preparando uma surpresa para
vocês, crianças, e quer conversar comigo sobre isso.
– Nós não
queremos uma surpresa – disse Klaus.
– Claro que
querem – disse tia Josephine. – Saiam
um pouco, para que eu possa conversar sobre o assunto sem vocês ficarem
bisbilhotando.
– Não estamos bisbilhotando – disse Violet, – mas acho que seria melhor ficarmos aqui.
– Talvez vocês
estejam confundindo o sentido da palavra bisbilhotando', disse tia Josephine. – Significa 'escutando a conversa dos outros'.
Se ficarem aqui, estarão bisbilhotando. Por favor, vão para o quarto.
– Nós sabemos o
que significa bisbilhotando', disse Klaus, mas seguiu suas irmãs pelo corredor
até o quarto. Uma vez lá dentro, entreolharam-se em silenciosa frustração.
Violet tirou da sua cama o trem de brinquedo que havia planejado examinar à noite,
para que os três pudessem se deitar um ao lado do outro e franzir a testa para
o teto.
– Pensei que
estivéssemos em segurança aqui – disse Violet melancolicamente. – Pensei que alguém que tem medo até de
corretores fosse a última pessoa capaz de fazer amizade com o conde Olaf,
qualquer que fosse o disfarce usado por ele.
– Vocês acham
que ele realmente deixou as sanguessugas arrancarem sua perna – perguntou
Klaus, estremecendo, – só para esconder
a tatuagem?
– Chói! – gritou Sunny, o que provavelmente queria dizer: – Acho um pouco drástico demais, mesmo para o
conde Olaf.
– Concordo com
Sunny – disse Violet. – Acho que ele
contou aquela história das sanguessugas só para a tia Josephine ficar com pena
dele.
– E funcionou – disse Klaus com um suspiro. – Depois
que ele contou para ela essa história de cortar o coração, ela mordeu a isca,
com linha, anzol e tudo.
– Pelo menos
ela não é tão confiante quanto o tio Monty – observou Violet. – Ele deixou que o conde Olaf se mudasse para
dentro de casa.
– Pelo menos
assim nós podíamos ficar de olho nele – replicou Klaus.
– Ôber! – assinalou Sunny, querendo dizer: ''Apesar
de que nem assim tenhamos conseguido salvar o tio Monty'', ou algo do gênero.
– O que vocês
acham que ele está querendo aprontar desta vez? – perguntou Violet. – Talvez planeje sair conosco num de seus
barcos e nos afogar no lago.
– Talvez esteja
querendo fazer esta casa inteira rolar morro abaixo – disse Klaus; – ele empurra, e põe a culpa no Furacão
Hermano.
– Hatfu! – disse Sunny, melancólica, provavelmente querendo dizer algo como: ''Talvez ele queira pôr as sanguessugas do
lago em nossas camas''.
– Talvez,
talvez, talvez – disse Violet. – Isso
tudo não vai nos levar a parte alguma.
– Poderíamos
ligar para o Sr. Poe e contar a ele que o conde Olaf está aqui – disse Klaus.
– Talvez ele viesse nos buscar.
– Esse é o maior talvez de todos – disse
Violet. – É sempre impossível convencer
o Sr. Poe de qualquer coisa, e tia Josephine não acredita em nós, apesar de ter
visto o conde Olaf com seus próprios olhos.
– Ela nem
sequer acha que viu o conde Olaf – concordou Klaus tristemente. – Ela acha que viu o capitão Sham.
Sunny mordiscou sem entusiasmo a cabeça da boneca
Perfeita Fortuna e murmurou:
– Poch! – o que provavelmente queria dizer: ''Você
quer dizer Julio''.
– Então não sei
o que podemos fazer – disse Klaus, – a
não ser ficarmos com os olhos e os ouvidos bem abertos.
– Doma – concordou Sunny.
– Vocês dois
têm razão – disse Violet. – Só nos
resta ficar atentos, vigiando tudo.
Os órfãos Baudelaire assentiram com a cabeça,
solenemente, mas o buraco frio no estômago deles não havia desaparecido. Todos
sentiam que ficar atento não era realmente um grande plano para se defender do
capitão Sham, e, à medida que o tempo foi passando, sua preocupação aumentou
cada vez mais. Violet prendeu o cabelo com uma fita, para não atrapalhar sua
visão, como se estivesse inventando alguma coisa, mas pensou e pensou horas a
fio, e nenhum outro plano lhe veio à cabeça. Klaus olhava para o teto em
absoluta concentração, como se houvesse algo muito interessante escrito ali,
mas não lhe ocorreu nenhuma idéia útil, e o tempo foi passando, passando... E
Sunny mordeu a cabeça de Perfeita Fortuna uma porção de vezes, mas por mais que
se demorasse em cada mordida, não conseguia encontrar solução para o pesadelo
dos Baudelaire.
Tenho uma amiga chamada Gina-Sue que é socialista, e
Gina-Sue tem um ditado favorito: – Casa
arrombada, trancas à porta – (com o
sentido crítico de – roubada ou
arrombada a casa, é tarde demais para trancar a porta – ). Às vezes o melhor
dos planos pode nos ocorrer quando já é tarde demais. É o caso, lamento dizer,
dos órfãos Baudelaire e seu plano de vigiar atentamente o capitão Sham, já que
depois das muitas horas de preocupação ouviram um enorme estrondo de vidros se
partindo e no mesmo instante se convenceram de que seu plano de vigilância não
tinha sido satisfatório.
– Que barulho
foi esse? – disse Violet, levantando-se da cama.
– Pareciam
vidros se quebrando – disse Klaus, preocupado, indo para a porta do quarto.
– Vestu! – gritou Sunny, mas seus irmãos não tiveram tempo para decifrar o que ela queria
dizer, pois dispararam corredor afora.
– Tia
Josephine! Tia Josephine! – chamou Violet, mas não houve resposta.
Ela percorreu o corredor de
ponta a ponta, mas estava tudo em silêncio.
– Tia Josephine – tornou a chamar. Violet foi na frente, seguida
pelos dois outros órfãos, e os três entraram correndo na sala de jantar, mas
sua tutora tampouco estava lá. As velas sobre a mesa continuavam acesas,
lançando um brilho trêmulo sobre o cartão e as tigelas com o caldo de lima
gelado.
– Tia
Josephine! – chamou Violet mais uma vez, e as crianças voltaram depressa para
o corredor, seguindo em direção à porta da biblioteca. No meio da correria,
Violet não pôde deixar de lembrar como ela e os irmãos haviam chamado pelo nome
do tio Monty, certa manhã bem cedo, pouco antes de tomarem conhecimento da
tragédia que lhe acontecera. – Tia
Josephine! – chamou. – Tia Josephine!
– Não pôde deixar de lembrar de todas as
vezes que acordara no meio da noite chamando pelos nomes de seus pais, sempre
que sonhava com o terrível incêndio que acabara com eles. – Tia Josephine! – disse, chegando à porta
da biblioteca. Violet tinha medo de que tia Josephine já não pudesse ouvi-la
chamar por seu nome.
– Olhe – disse Klaus, e apontou para a porta. Um pedaço de papel, dobrado ao meio,
estava pregado à madeira com uma tachinha. Klaus pegou o papel e o desdobrou.
– O que é? – perguntou Violet, e Sunny esticou o pescocinho para ver.
– É um bilhete
– disse Klaus, e leu em voz alta:
Violet, Klaus e Sunny:
Quando vocês lerem este bilhete, minha vida terá
chegado a seu própio fim. Meu coração está frio como Belo, e a vida para mim
tornou-se repussiva. Sei que, como crianças, não podem compreender o coração
urlulante de uma tristre viúva, pois não conhecem as razões que me levaram a um
acto tão desesperado, mas saibam que me sinto muito mais feliz assim. Como
minha última vontade, deixo vocês três sob a guarda do capitão Sham, homem
honrado e de bom coração. Por favor, pensem em mim com carinho apesar de eu ter
feito essa coisa terrível.
Sua tia Josephine
– Oh, não! – disse Klaus em voz baixa, ao terminar a leitura. Depois examinou o papel várias
vezes, como se o tivesse lido incorretamente, como se ali estivesse escrito
algo diferente. – Oh, não! – tornou a
dizer, com a voz tão sumida que era como se ele nem sequer soubesse que falava
em voz alta.
Sem dizer nada, Violet abriu a porta da biblioteca, e
os Baudelaire entraram, sentindo-se tomados no mesmo instante por fortes
calafrios. Na sala estava um frio de rachar, e um primeiro olhar bastou para
que os órfãos compreendessem por quê. A ampla janela que dava para o lago se
partira. A não ser por alguns fragmentos que ainda aderiam à moldura da
janela, a enorme vidraça sumira, deixando um buraco vazio voltado para o imóvel
negrume da noite.
O ar frio noturno entrava com ímpeto pelo buraco,
causando um matraquear ininterrupto das folhas dos livros nas estantes e
levando os Baudelaire a se abraçar para melhor resistir aos arrepios. Apesar do
frio, os órfãos caminharam com cuidado até o espaço vazio onde antes era a
janela e olharam para baixo. A noite estava tão negra que parecia não haver
absolutamente nada do outro lado da janela. Violet, Klaus e Sunny ficaram ali
em pé por um momento e lembraram do medo que sentiram, dias atrás, quando se
achavam no mesmo lugar e na mesma posição. Agora constatavam que o medo deles
tinha sido racional. Grudados uns nos outros, olhando na direção do abismo
negro, os Baudelaire se convenceram de que seu plano de vigilância surgira
tarde demais. Quando pensaram em trancar a porta, esta já havia sido arrombada
e a pobre tia Josephine já se fora.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)