Capítulo 5 - Clayton
Eram 21 horas de sábado e ele tinha de ficar preso em casa,
cuidando do filho. Ótimo. Demais. De que outra forma aquele dia poderia ter
terminado? Primeiro, uma das garotas quase o havia pego tirando fotografias,
depois roubaram a câmera fotográfica do departamento, e daí, Logan Thibault
fura seus pneus. E o pior de tudo, teve de explicar ao seu pai sobre a perda da
máquina e o furo dos pneus, o Sr. Delegado de Polícia. Como previsto, seu pai
ficou louco da vida e não acreditou nem um pouco na história que ele havia
inventado. Em vez disso, não parava de fazer perguntas. No fim das contas,
Clayton já estava ficando com vontade de dar um fim no velhote. Seu pai podia
ser um figurão para muita gente da região, mas isso não lhe dava o direito de
tratá-lo como um imbecil. Mas Clayton manteve sua história — pensou ter visto
alguém suspeito, decidiu averiguar e não percebeu que passou por cima de alguns
pregos. Mas e a máquina fotográfica? Não pergunte para ele. Ele nem sabia que
estava na viatura, para começo de conversa. Não era uma desculpa muito boa, mas
dava para o gasto.
Esse buraco parece ter sido feito por canivete — disse seu pai ao
examinar o pneu.
— Já disse que foram pregos.
— Mas não há construções por lá.
— Também não sei como aconteceu. Só estou dizendo o que aconteceu!
— Cadê eles?
— Como é que eu vou saber? Joguei no meio do mato.
Seu pai não se convenceu com a história, mas Clayton sabia que não
podia mudá-la. Teria de mantê-la sempre assim. As pessoas constantemente se
enrolam nos detalhes ao recontar uma história. Essa é a regra básica nas salas
de interrogatório da polícia. Finalmente seu velho resolveu deixar para lá, e
Clayton colocou os steps e guardou o carro na garagem para consertarem os pneus
originais. Nisso, duas horas haviam passado e ele estava atrasado para o
encontro com um tal Sr. Logan Thibault. Ninguém, mas ninguém mesmo poderia se
meter com Keith Clayton, ainda
mais um hippie vagabundo que pensou ter aprontado uma para ele.
Passou o resto da tarde dirigindo pelas ruas de Arden, perguntando
se alguém o havia visto. Um cara como aquele não era de passar despercebido,
ainda mais com o vira-lata ao seu lado. Sua busca não deu em nada, o que o
deixou ainda com mais raiva, pois significava que Thibault tinha mentido bem na
sua cara, e Clayton nem se deu conta disso na hora.
Mas ele ia encontrar o cara. Tinha certeza de que ia encontrá-lo,
especialmente por causa da máquina fotográfica, ou melhor, por causa das
fotografias. Especialmente as "outras" fotografias. A última coisa
que queria ver acontecer era Thibault entrar na delegacia e colocar a belezinha
em cima do balcão, pior ainda, ir direto para o jornal. A delegacia parecia dos
males o menor, pois sabia que seu pai ia colocar uma pedra no assunto. Apesar
de ficar furioso e provavelmente colocá-lo para fazer serviço burocrático por
várias semanas, abafaria o caso. Seu pai não valia nada, mas para isso era bom.
Já o jornal... era outra história. É claro que o vovô ia mexer os
pauzinhos e fazer o possível para tentar abafar a história por lá, mas seria
muito difícil manter esse tipo de informação em completo sigilo. Era quente
demais e ia se espalhar como fogo pela cidade toda, com ou sem um artigo anexo.
Clayton já era tido como a ovelha negra da família e não queria dar ao vovô
mais uma razão para rechaçá-lo. O vovô via sempre o lado negativo das coisas.
Até hoje discordava do fato de ele e Beth terem se divorciado. Como se isso
fosse da conta dele! Ele sempre falava do fato de Clayton não ter feito
faculdade, quando a família se reunia. Com suas notas, teria entrado
facilmente, mas não conseguia suportar a idéia de ficar mais quatro anos preso
em uma sala de aula, portanto decidiu ser policial e ajudar seu pai. Isso foi o
suficiente para tranqüilizar o vovô. Parecia que tinha passado metade da sua
vida tentando acalmá-lo.
Mas, nesse caso, não tinha escolha. Apesar de particularmente não
gostar do vovô — ele era um batista do sul que ia à igreja todos os domingos e
achava que beber e dançar eram pecados, coisas que Clayton considerava
ridículas. Sabia o que o vovô esperava dele e vamos dizer que tirar fotos de
estudantes nuas não estava em sua lista de coisas para fazer. Nem as outras
fotos dele com outras damas em posições comprometedoras, que também estavam no
cartão de memória da máquina. Era o tipo de coisa que causava uma séria
decepção no vovô e ele não tinha muita paciência com quem o decepcionava, mesmo
sendo da família. Especialmente sendo da família. A família Clayton vivia em
Hampton desde 1753 e, em vários aspectos, eram o condado de Hampton. Entre os membros da família havia
juízes, advogados, médicos, fazendeiros; até o prefeito havia casado com alguém
da família, mas todo mundo sabia que quem sentava na cabeceira da mesa era o
vovô. Vovô administrava tudo como um chefão da máfia, e a maioria das pessoas
na cidade não se cansavam de tecer elogios sobre a pessoa maravilhosa que ele
era. Vovó gostava de acreditar que era por dar apoio a tudo, da biblioteca ao
teatro, além da escola local, mas Clayton sabia que o verdadeiro motivo estava
no fato de vovô ser dono de quase todos os prédios comerciais do centro da
cidade, e também da madeireira, das duas marinas, das três lojas de carros, dos
três complexos de armazém e do único condomínio de apartamentos da cidade, além
de vastos terrenos agrícolas. Tudo isso havia transformado sua família em
extremamente milionária — e poderosa — e, como Clayton recebia a maior parte de
seu dinheiro dos fundos de investimento da família, não queria ver um estranho
lhe causando problemas na cidade.
Graças a Deus, Ben havia nascido durante o curto período em que
ficou com Beth. Vovô tinha uma ideia fixa sobre linhagem familiar e, como Ben
tinha o mesmo nome ao vovô — uma idéia de mestre, como sempre dizia a si mesmo
—, ele adorara o menino. Na maior parte do tempo, Clayton achava que vovô
gostava mais de seu bisneto Ben do que de seu próprio neto.
Clayton sabia que Ben era um bom menino. Não era só vovô que
achava isso — todo mundo pensava da mesma forma. E ele também gostava do
menino, embora o achasse um chato às vezes. De onde estava olhando, na varanda
da frente, viu pela janela que Ben havia acabado de limpar a cozinha e estava
sen-tado no sofá. Sabia que devia ficar com ele, mas não estava pronto para
isso. Não queria perder a calma e dizer algo de que pudesse vir a se arrepender
mais tarde. Estava tentando melhorar nesse sentido; vovô tinha conversado com
ele uns meses atrás sobre como era importante ser uma influência estável.
Bobagem.O que ele deveria ter feito era ter conversado com Ben sobre fazer o
que seu pai mandasse quando ele mandasse, pensou Clayton. Aquele menino já o
tinha irritado hoje à noite, mas, em vez de perder a calma, lembrou-se do que o
vovô havia dito, mordeu os lábios e saiu de perto.
Ultimamente, parecia que tudo que Ben queria fazer era irritá-lo.
Mas não era culpa dele! Ele havia honestamente tentado desenvolver um bom
re-lacionamento com o filho. Até que começaram bem. Falaram sobre a escola,
comeram hambúrgueres e assistiram a um programa esportivo na televisão. Tudo
ótimo. Mas, então, começou o show de horrores. Ele mandou Ben limpar a cozinha.
Como se fosse pedir muito, certo? Clayton não tinha tido tempo para fazer isso
na última semana e sabia que ele faria um bom trabalho. Ben disse que ia fazer,
mas não saiu do lugar. O tempo passou e ele continuou, sentado. Assim, Clayton pediu novamente e
tinha certeza de que havia pedido gentilmente — embora não estivesse bem certo.
Pareceu que Ben tinha virado os olhos e finalmente começou a caminhar bem
lentamente. Essa foi a gota d'água. Odiava quando Ben revirava os olhos quando
falava com ele, e Ben sabia muito bem disso. Era como se ele soubesse
exatamente quais botões apertar, e passasse todo o seu tempo livre imaginando
novos botões para apertar na próxima vez que encontrasse o pai. Sendo assim,
Clayton achou melhor ficar na varanda.
Esse tipo de comportamento era fruto da mãe, disso não tinha
dúvida. Era uma mulher maldita de tão bonita, mas não sabia nada sobre como
transformar um menino em um homem. Não tinha nada contra seu filho ter boas
notas, mas ele não poderia jogar futebol este ano porque ia aprender violino?
Que porcaria é essa? Violino? Melhor seria vestir o menino de cor-de-rosa e
ensiná-lo a andar a cavalo com as pernas para o lado. Clayton fez o possível
para impedir esses absurdos, mas a verdade era que ficava com o menino um dia e
meio a cada duas semanas. Não era sua culpa se o menino segurava o taco de
beisebol como uma menininha. Estava muito ocupado jogando xadrez. E que ficasse
bem claro para todo mundo: nada nesse mundo o faria assistir a uma audição de
violino.
Audição de violino. Pelo amor de Deus. O que está acontecendo com
este mundo?
Voltou a pensar em Thibault e, por mais que quisesse acreditar que
ele tivesse simplesmente saído da cidade, sabia que não era bem assim. Ele
viajava a pé, não tinha como chegar à outra cidade ao anoitecer. Além do mais,
algo o atormentara o dia todo e só havia descoberto o que era quando conseguiu
se acalmar, ali na varanda: se Thibault estivesse falando a verdade sobre morar
no Colorado — e não sabia se isso era verdade, mas supondo que fosse — isso
quer dizer que ele viajava do leste para o oeste. E qual o lugar mais próximo a
leste? Não era Arden. Claro que não. Arden ficava a sudoeste de onde haviam se
encontrado. O caminho para o leste o teria levado para a parte velha de Hampton.
Ali mesmo, sua terra natal. O que significava, obviamente, que ele poderia
estar a menos de quinze minutos de onde Clayton estava sentado.
Mas onde estava Clayton? Procurando pelo homem? Não, servindo de
babá do próprio filho.
Olhou novamente o filho pela janela. Estava sentado no sofá,
lendo, a única coisa que gostava de fazer. Ah, com exceção do violino. Balançou
a cabeça negativamente, tentando notar se o menino tinha herdado algum gene que
fosse seu. Não era provável. Era o garotinho da mamãe da cabeça aos pés. O
filho da Beth.
Beth...
É, o casamento não tinha dado certo. Mas ainda existia algo entre
eles. Sempre existiria. Ela podia ser teimosa e cheia de dar sermões, mas ele
sempre tomaria conta dela, não só por causa de Ben, mas por ter sido a mulher
mais bonita com quem havia dormido na vida. Bonita naquela época e talvez ainda
mais bonita agora. Muito mais bonita do que as estudantes que havia visto hoje
de manhã. Estranho. Era como se Beth tivesse chegado à idade ideal, e de alguma
forma tivesse parado de envelhecer a partir daí. Sabia que a beleza não duraria
para sempre. A lei da gravidade eventualmente viria cobrar seu preço, mas,
mesmo assim, não conseguia parar de pensar em dar uma rapidinha com ela. Em
nome dos velhos tempos e para ajudá-lo a... relaxar.
Pensou em ligar para Angie. Ou talvez Katie. Uma tinha 20 anos e
trabalhava na loja de animais, a outra era um ano mais velha e limpava os
banheiros do hotel Stanford Inn. As duas tinham um corpo bonito e pegavam fogo
quando se tratava de... relaxar. Sabia que Ben não ia se importar se ele
chamasse uma delas, mas, provavelmente, teria de convencê-las primeiro. As duas
tinham ficado bem bravas na última vez em que ficaram juntos. Teria de pedir
desculpas e jogar seu charme, mas não sabia se estava disposto a vê-las
mascando chicletes enquanto não paravam de falar sobre a MTV ou o National
Inquirer. As vezes elas davam trabalho demais.
Então, isso estava fora de cogitação. Assim como ir atrás de
Thibault. Não poderia ir atrás dele no dia seguinte também, pois o vovô queria
a família toda reunida depois da igreja. Mas, como Thibault viajava com um
cachorro e uma mochila, era bem provável que não conseguisse carona. Aonde
conseguiria chegar até a tarde do dia seguinte? Trinta quilômetros? Quarenta,
no máximo? Não seria muito mais que isso, o que significava que ele continuaria
por perto. Pediria às delegacias vizinhas que mantivessem os olhos abertos. Não
havia muitas estradas de saída do condado e imaginava que, se fizesse uns
telefonemas aos estabelecimentos comerciais da região, alguém avistaria o
indivíduo. E, quando isso acontecesse, estaria a caminho. Thibault jamais
deveria ter se metido com Keith Clayton.
Perdido em seus pensamentos, Clayton não ouviu a porta da frente
abrir.
— Papai?
— Sim?
— Telefone para você.
— Quem é?
— É o Tony.
— Só podia ser.
Levantou-se da cadeira e ficou imaginando o que Tony queria. Que
fracassado! Esquelético e cheio de espinhas, era um daqueles caras que grudavam
em policiais, tentando rastejar o suficiente para conseguir fingir ser um
deles. Provavelmente, queria saber onde Clayton estava e o que ia fazer mais
tarde, porque não queria ficar sozinho. Desculpa esfarrapada.
Enquanto andava, sua cerveja acabou e jogou a lata no lixo,
ouvindo-a cair no fundo, depois pegou telefone no balcão.
— Alô?
Dava para ouvir um som disforme de música country ao fundo, tocada
em um toca-discos, além de conversa em voz alta, indistinta. Não sabia o que
pensar sobre o telefonema daquele fracassado.
— Oi, estou no Salão de Bilhar Decker's e tem um cara estranho
aqui e achei que você deveria saber.
Clayton ligou as antenas.
— Tem um cachorro ao lado dele? Está de mochila? Meio sujo, como
se tivesse passado um tempo no meio do mato?
— Não.
— Tem certeza?
— Claro que sim. Está jogando sinuca no salão dos fundos. Mas,
escuta! Quero te falar que ele tem na fotografia da sua ex-mulher.
Pego de surpresa, Clayton tentou mostrar desinteresse.
— E daí?
— Achei que gostaria de saber.
— E por que eu ia me importar com isso?
— Sei lá.
— É claro que não. Idiota.
Desligou o telefone pensando
que o cara devia ter salada de batatas no lugar do cérebro, e olhou para a
cozinha com orgulho. Mais limpa que isso impossível. Como sempre, o menino
havia feito um excelente trabalho. Ele quase deu um grito para dizer o que
sentia, mas, em vez disso, ao olhar para Ben, percebeu novamente como ele era
pequeno. Uma parte com certeza era genética, estirões precoces ou tardios e
tudo o mais, mas a outra parte tinha a ver com a saúde geral. Comer
corretamente, fazer exercícios, descansar bastante. Coisas básicas que qualquer
mãe ensina a seu filho. E as mães estão certas. Se não comermos o suficiente,
não temos como crescer. Se não fizermos exercícios suficientes, nossos músculos
não se desenvolvem. E quando é que uma pessoa cresce? À noite. Quando o corpo
se regenera Quando as pessoas sonham.
Sempre duvidava se Ben dormia o suficiente na casa da mãe. Clayton
sabia que ele comia — havia comido o hambúrguer com fritas — e sabia que o
menino era ativo, portanto era a falta de sono que o impedia de crescer. Os
meninos não querem ficar baixinhos, certo? Claro que não. Além disso, Clayton
queria ficar um pouco sozinho. Queria fantasiar sobre o que ia fazer com
Thibault na próxima vez que o encontrasse.
Pigarreou.
— Ei, Ben. Já está meio tarde, não está?
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