Capítulo 5
Violet, Klaus e Sunny:
Quando vocês lerem este bilhete, minha vida terá
chegado a seu própio fim. Meu coração está frio como Belo, e a vida para mim
tornou-se repussiva. Sei que, como crianças, não podem compreender o coração
urlulante de uma tristre viúva, pois não conhecem as razões que me levaram a um
acto tao desesperado, mas saibam que me sinto muito mais feliz assim. Como minha
última vontade, deixo vocês três sob a guarda do capitão Sham, homem honrado e
de bom coração. Por favor, pensem em mim com carinho apesar de eu ter feito
essa coisa terrível.
Sua tia Josephine
– Pare! – gritou
Violet. – Pare de ler isso em voz alta!
Já sabemos o que está escrito aí.
– Eu
simplesmente não posso acreditar – disse Klaus, percorrendo o papel com os
olhos pela enésima vez. Os órfãos Baudelaire estavam sentados melancolicamente
em volta da mesa da sala de jantar com o caldo frio de limas nas tigelas e
terror no coração. Violet ligara para o Sr. Poe e lhe contara o que tinha
acontecido, e os Baudelaire, ansiosos demais para dormir, passaram a noite
inteira em claro, esperando-o chegar na primeira barca do dia. As velas já
haviam quase se apagado por completo, e
Klaus tivera que se inclinar para a frente a fim de ler o bilhete de Josephine.
– Este bilhete tem qualquer coisa de
engraçado, mas eu não consigo descobrir exatamente o que é.
– Como é que
você pode dizer uma coisa dessas? – perguntou Violet. – Tia Josephine se atirou pela janela. Não há
absolutamente nada de engraçado nisso.
– Não estou
dizendo engraçado como numa piada engraçada – disse Klaus. – Estou dizendo engraçado como num cheiro
engraçado. Vejam, logo na primeira frase ela diz 'minha vida terá chegado a seu
própio fim'.
– E chegou – disse Violet, estremecendo.
– Não é isso
que eu quero dizer – disse Klaus, impaciente. – É que ela escreve própio em vez de próprio.
– Ele pegou o cartão do capitão Sham,
que continuava em cima da mesa. – Lembram
quando ela viu este cartão? 'Cada barco tem sua própia vela.' Ela disse que
esse era um erro ortográfico muito grave.
– Ora, quem
está ligando para erros ortográficos? – perguntou Violet. – Tia Josephine pulou da janela!
– Mas tia
Josephine teria ligado – observou Klaus. – Era para isso que ela mais ligava, para a
gramática. Lembra que ela dizia que 'a gramática é a maior alegria da vida'?
– Tudo bem, mas
não foi suficiente – disse Violet com tristeza. – Por mais que ela gostasse de gramática,
no bilhete está escrito que ela achava a vida repulsiva.
– Mas esse é
outro erro que tem no bilhete – disse Klaus. – Não está escrito repulsiva, com L antes do
S, e sim repussiva, com dois SS.
– Você está
sendo repulsivo sem dois SS – gritou Violet.
– E você está
sendo idiota sem dois ii – revidou Klaus.
– Aget! – gritou Sunny, o que queria dizer: ''Parem
de brigar!'', ou algo do gênero. Violet e Klaus olharam para a irmãzinha e
depois um para o outro. É comum as pessoas, quando estão infelizes, quererem
fazer outras pessoas infelizes também. Mas isso nunca ajuda.
– Desculpe,
Klaus – disse Violet mansamente. – Você
não está sendo repulsivo. Nossa situação é que é repulsiva.
– Eu sei – disse Klaus com tristeza. – Também peço
desculpas. Você não está sendo idiota, Violet. Você é muito inteligente. Na
verdade, acho que inteligente o bastante para nos tirar desta situação. Tia
Josephine pulou da janela e nos deixou aos cuidados do capitão Sham, e não sei
o que podemos fazer a respeito disso.
– Bem, o Sr.
Poe está a caminho – disse Violet. – Ele
disse no telefone que estaria aqui de manhã bem cedo, de modo que não vamos ter
que esperar muito. Talvez o Sr. Poe possa nos dar alguma ajuda.
– Imagino que
sim – disse Klaus, mas ele e as irmãs se entreolharam e deram um suspiro.
Eles sabiam que as chances de o Sr. Poe ajudá-los para valer eram bem
reduzidas. Na ocasião em que os Baudelaire moravam com o conde Olaf, o Sr. Poe
não ajudou em nada quando as crianças lhe contaram sobre a crueldade do conde
Olaf. Na ocasião em que os Baudelaire moravam com o tio Monty, o Sr. Poe não
ajudou em nada quando as crianças lhe contaram sobre a perfídia do conde Olaf.
Parecia claro que o Sr. Poe também não ajudaria em nada na situação em que se
achavam agora.
Uma das velas se apagou, exalando como que um suspiro
de fumaça, e as crianças afundaram ainda mais em suas cadeiras. Vocês
provavelmente já ouviram falar da dionéia, uma planta carnívora que cresce nos
trópicos. O alto dessa planta tem a forma de uma boca aberta em cujos cantos há
espinhos que lembram dentes. Quando uma mosca, atraída pelo perfume da flor,
pousa na dionéia, a boca da planta começa a se fechar, prendendo a mosca. A
mosca, aterrorizada, zumbe, agitando-se dentro da boca fechada da planta, mas
não há nada que possa fazer, e aos poucos, lentamente, a planta acaba com sua
presa. Quando a escuridão da casa se abateu sobre eles, os jovens Baudelaire se
sentiram como a mosca nessa situação. Era como se o incêndio catastrófico que
tirara a vida de seus pais houvesse sido o começo de uma armadilha e eles nem
sequer tivessem se dado conta disso. Zumbiram de um lugar para outro — da casa
do conde Olaf, na cidade, para a casa do tio Monty, no campo, e, agora, na casa
de tia Josephine, com vista para o lago —, mas sua infelicidade ia
envolvendo-os, apertando-os cada vez mais, e os três irmãos tinham a impressão
de que essa infelicidade não demoraria muito a acabar com eles.
– Nós
poderíamos rasgar o bilhete – disse Klaus, finalmente. – Assim, o Sr. Poe não ficaria sabendo das
vontades de tia Josephine, e nós não seríamos confiados à guarda do capitão
Sham.
– Mas eu já
contei ao Sr. Poe que tia Josephine deixou um bilhete – disse Violet.
– Bem, nós
poderíamos forjar um bilhete – disse Klaus, usando um verbo que aqui
significa ''escrever alguma coisa pelo
próprio punho e fingir que outra pessoa a escreveu''. – Escrevemos tudo o que ela escreveu, menos a
parte que fala sobre o capitão Sham.
– Ah-ah! – gritou Sunny. Essa palavra era uma das favoritas de Sunny, e diversamente do
que acontecia com a maioria de suas palavras, não precisava de tradução. O que
Sunny queria dizer era ''Ah-ah!'' mesmo, uma expressão de descoberta.
– Claro! – exclamou Violet. – Foi isso que o
capitão fez! Ele escreveu essa carta, e não tia Josephine!
Os olhos de Klaus brilharam atrás dos óculos.
– Isso explica o própio!
– Isso explica
o repussiva! – disse Violet.
– Liip! – gritou Sunny, o que provavelmente queria dizer: ''O capitão Sham atirou tia Josephine pela
janela e depois escreveu o bilhete para ocultar o seu crime''.
– Que coisa
terrível! – disse Klaus, estremecendo só de pensar em tia Josephine caindo no
lago de que ela sentia tanto medo.
– Imagine só as
coisas terríveis que ele fará conosco – disse Violet, – se não denunciarmos o seu crime. Não vejo a
hora do Sr. Poe chegar, para nós podermos lhe contar o que aconteceu.
Assim que Violet terminou de falar, a campainha tocou,
e os Baudelaire correram para atendê-la. Violet, seguida dos irmãos, avançou
pelo corredor, olhando pesarosamente para o aquecedor enquanto lembrava do medo
que tia Josephine tinha dele. Klaus ia logo atrás, tocando suavemente em cada
maçaneta de porta, numa homenagem às advertências de tia Josephine sobre como
elas poderiam se partir em milhões de pedaços. E quando chegaram à porta, Sunny
olhou tristemente para o capacho da entrada, no qual, segundo tia Josephine,
alguém podia tropeçar, e em seguida levar um tombo e quebrar o pescoço. Tia
Josephine se esmerara para evitar qualquer coisa que ela achava que pudesse vir
a lhe fazer mal, e, no entanto, mesmo assim o mal acabou por lhe
ser feito.
Violet abriu a porta branca com a pintura descascando,
e lá estava o Sr. Poe, sob a luz melancólica do alvorecer. – Sr. Poe – , disse Violet. Ela pretendia lhe
contar imediatamente a teoria deles sobre a falsificação, mas tão logo o viu,
de pé na entrada, com um lenço branco numa das mãos e uma maleta preta na
outra, as palavras morreram em sua garganta. As lágrimas são uma coisa curiosa,
pois, assim como os terremotos e os camelôs, podem surgir em qualquer momento,
sem nenhum aviso e sem um bom motivo. –
Sr. Poe – voltou a dizer Violet, e sem
nenhum aviso ela e os irmãos se desmancharam em lágrimas. Violet chorou, os
soluços sacudindo os ombros; Klaus chorou, as lágrimas fazendo seus óculos
escorregarem nariz abaixo, e Sunny chorou, com a boca aberta, exibindo os quatro
dentes. O Sr. Poe pousou a maleta no chão e se livrou do lenço. Ele não era
muito bom em consolar pessoas, mas abraçou as crianças o melhor que pôde e
murmurou:
– Pronto, pronto – , palavra
que algumas pessoas murmuram para consolar outras pessoas.
O Sr. Poe não conseguiu imaginar outra fórmula capaz
de consolar os órfãos Baudelaire, mas eu agora gostaria de ter o poder de
recuar no tempo e falar a essas três crianças em pranto. Se isso me fosse
possível, iria dizer aos Baudelaire que, como os terremotos e os camelôs, suas
lágrimas estavam aparecendo não apenas sem aviso mas também sem um bom motivo.
Os garotos estavam chorando, é claro, porque pensavam que sua tia Josephine
havia morrido, e eu gostaria de ter o poder de recuar no tempo para lhes dizer
que eles estavam enganados. Mas, evidentemente, isso não me é possível. Eu não
estou no alto do morro, olhando para o Lago Lacrimoso, naquela manhã
melancólica. Estou sentado em meu quarto, no meio da noite, escrevendo esta
história e olhando pela janela para o cemitério que fica atrás de minha casa.
Não posso dizer aos órfãos Baudelaire que eles estão enganados, mas posso
contar para vocês, enquanto os órfãos choram nos braços do Sr. Poe, que tia
Josephine não morreu.
Pelo menos por enquanto.
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