Capítulo 6

Quando as circunstâncias são más, elas têm o dom de estragar o que, não fosse por elas, seria agradável. Foi o que aconteceu com os órfãos Baudelaire e o filme Zumbis na neve. A tarde inteira as três crianças passaram sentadas com suas preocupações na Sala dos Répteis sob o olhar zombeteiro de Stephano e ouvindo a conversa de alienado do tio Monty — a palavra ‘’alienado’’ aqui significa ‘’sem saber que Stephano era realmente o conde Olaf e, portanto, sem consciência do perigo real que corria’’. De tal forma que, ao anoitecer, os irmãos não estavam com a melhor das disposições para assistir a uma sessão de cinema. O jipe do tio Monty era na verdade pequeno demais para que coubessem o tio, Stephano e os três órfãos; assim, Klaus e Violet dividiram um assento, enquanto a pobre da Sunny teve que ficar no colo do abominável Stephano, mas os três Baudelaire estavam preocupados demais para notar seu desconforto.
As crianças sentaram-se na primeira fila do cinema, com o tio Monty numa das pontas, enquanto Stephano, no meio, monopolizava as pipocas. Mas os Baudelaire, ansiosos como se achavam, não estavam nem aí para pipocas, e a preocupação em descobrir o que Stephano estaria planejando os impedia de desfrutar Zumbis na neve, que era um ótimo filme. Quando os zumbis surgiram dos bancos de neve pela primeira vez, cercando a minúscula aldeia alpina de pescadores, Violet tentou imaginar de que maneira Stephano poderia embarcar no Próspero sem ter uma passagem e acompanhá-los até o Peru. Quando os líderes da aldeia construíram uma barreira com toras de carvalho — em vão, porque os zumbis venceram o obstáculo devorando a madeira —, Klaus tentou tornar claro no seu pensamento o que exatamente Stephano quisera dizer ao mencionar os acidentes. E quando Gerta, a garotinha que ordenhava a vaca, fez amizade com os zumbis e pediu-lhes que por favor parassem de comer os habitantes da aldeia, Sunny, que evidentemente não tinha ainda idade para compreender direito a situação dos órfãos, tentou bolar uma forma de derrotar os planos de Stephano, quaisquer que eles fossem. Na cena final do filme, zumbis e aldeões celebravam juntos o Primeiro de Maio, mas os três órfãos Baudelaire estavam nervosos e amedrontados demais para relaxar e aceitar qualquer tipo de diversão. No caminho de volta para casa, o tio Monty tentou falar com os garotos, o tempo todo preocupados e silenciosos, mas praticamente não obteve resposta alguma e afinal calou-se também.
Quando o jipe estacionou junto aos arbustos em forma de cobras, os Baudelaire saltaram correndo do carro e dispararam em direção à porta da frente sem sequer dar boa-noite para o seu perplexo tutor. Com todo aquele peso no coração, subiram as escadas até os quartos, mas ao chegar diante das portas não suportaram a idéia de separar-se.
 – Não poderíamos passar a noite todos juntos no mesmo quarto? – perguntou Klaus a Violet timidamente.  – A noite passada me senti como se estivesse preso numa cela, solitário às voltas com minhas preocupações.
 – Eu também – confessou Violet.  – Já que não vamos conseguir dormir, pelo menos estaríamos sem dormir, mas juntos no mesmo lugar.
 – Tico – concordou Sunny, e seguiu seus irmãos para dentro do quarto de Violet. Violet lançou um olhar em volta do quarto e lembrou-se da empolgação com que havia tão pouco tempo estreara seu novo espaço. Agora, a enorme janela com vista para os arbustos em forma de cobras tornara-se deprimente e não mais estimulante, enquanto as folhas em branco pregadas em sua parede, em vez de práticas e oportunas, só conseguiam fazê-la lembrar-se dos motivos que tinha para estar tão ansiosa.
 – Estou vendo que você não fez muitos progressos em suas invenções – disse Klaus gentilmente.  – Eu tampouco li muita coisa. Com o conde Olaf por perto, a imaginação fica tolhida.
 – Nem sempre – observou Violet.  – Quando morávamos com ele, você leu tudo em matéria de legislação sobre casamento para descobrir qual era o plano dele, e eu inventei um arpéu para a operação de resgate de Sunny.
 – Só que na situação atual – disse Klaus melancolicamente,– nem sequer sabemos o que o conde Olaf pretende fazer. Como podemos arquitetar um plano se não sabemos qual é o plano dele?
 – Bem, vamos tentar tirar isso a limpo – disse Violet, usando uma expressão que aqui significa ‘’esmiuçar uma questão, discutindo-a e analisando-a até compreendê-la inteiramente’’.  – O conde Olaf, sob o falso nome de Stephano, veio para essa casa disfarçado e é evidente que está atrás da fortuna dos Baudelaire.
 – E – continuou Klaus, – uma vez que se apodere dela, planeja matar-nos.
 – Tadu – murmurou Sunny solenemente, com a provável intenção de significar algo como ‘’Estamos metidos numa encrenca dos diabos’’.
 – No entanto – disse Violet, – se ele nos fizer mal, lá se vai a chance de ficar com nossa fortuna. Foi por isso que tentou casar-se comigo da última vez.
 – Graças a Deus isso não funcionou – disse Klaus, estremecendo todo.  – Senão, o conde Olaf seria meu cunhado. Mas desta vez ele não está planejando casar-se com você. Ele mencionou alguma coisa sobre um acidente.
 – E ir para um lugar onde seja mais difícil apurar crimes – disse Violet, lembrando palavra por palavra do que ele havia dito.  – Ou seja, o Peru. Mas Stephano não vai para o Peru. Tio Monty rasgou a passagem dele.
 – Duc! – gritou Sunny, num desabafo genérico de frustração, e socou o chão com o pequeno punho. A palavra ‘’genérico’’ aqui significa ‘’quando a gente é incapaz de pensar em qualquer outra coisa para dizer’’, e não era somente Sunny que se via nessa situação: Violet e Klaus já não tinham mais idade, naturalmente, para dizer coisas como  ‘’Duc!’’ mas bem que gostariam de desabafar assim. Gostariam de ser capazes de adivinhar o plano do conde Olaf. Gostariam que a sua situação não parecesse tão misteriosa e tão sem esperanças, e gostariam de ter uma idade que lhes permitisse simplesmente gritar ‘’Duc!’’ e socar o chão com seus punhos. Mais que tudo, é claro, gostariam que seus pais estivessem vivos e que os Baudelaire estivessem sãos e salvos no lar onde nasceram.
E tão ardorosamente quanto os órfãos Baudelaire gostariam que a situação deles fosse diferente, eu desejaria poder de algum modo mudar as circunstâncias desta história para vocês. Mesmo sentado aqui onde estou, em toda a segurança e tão longe do conde Olaf, mal consigo suportar escrever mais uma palavra. Talvez o melhor fosse vocês fecharem este livro imediatamente e não lerem nunca a continuação desta horripilante história. Podem imaginar, se assim desejarem, que uma hora depois os órfãos Baudelaire tiveram uma súbita percepção do que Stephano estava planejando fazer e conseguiram salvar a vida do tio Monty. Podem visualizar a polícia chegar com todos os pisca-piscas e sirenes ativados, e levar Stephano algemado para passar o resto da vida na cadeia. Podem fazer de conta — mesmo que não seja verdade — que os Baudelaire moram felizes com o tio Monty até hoje. Ou, melhor ainda, podem alimentar a ilusão de que os Baudelaire pais não morreram, e que o incêndio terrível e o conde Olaf e o tio Monty e todos os outros tristes acontecimentos não passaram de um sonho, uma fantasia da imaginação.
Mas esta não é uma história feliz, e não me agrada dizer-lhes que os órfãos Baudelaire passaram o restante da noite sentados, emudecidos, no quarto de Violet. Se ao nascer do sol alguém espiasse pela janela do quarto, teria visto as três crianças agarradas juntinhas na cama, com os olhos bem abertos e sombrios de preocupação. Mas ninguém espiou pela janela. Alguém bateu à porta, quatro pancadas firmes como que para pregar alguma coisa que não devesse se soltar mais.
As crianças pestanejaram e se entreolharam.
 – Quem é? – perguntou Klaus para ser ouvido pelo lado de fora, mas com a voz falhando por causa do longo tempo que passara em silêncio.
Em lugar de uma resposta, a pessoa que bateu simplesmente girou a maçaneta e a porta se abriu lentamente. Lá estava Stephano, com as vestes todas amarrotadas e os olhos brilhando mais do que nunca.
 – Bom dia – disse. – Está na hora de partir para o Peru. O espaço no jipe é a conta certa para três órfãos e eu. Vamos logo.
 – Ontem nós lhe dissemos que você não ia – disse Violet. Ela esperava que sua voz tivesse deixado transparecer mais coragem.
 – É o seu tio Monty quem não vai – disse Stephano, e ergueu a parte da testa onde deveriam estar as sobrancelhas.
 – Não seja ridículo – disse Klaus.  – O tio Monty não perderia essa expedição por nada deste mundo.
 – Pergunte a ele – disse Stephano, e os Baudelaire viram no seu rosto uma expressão que lhes era familiar. A boca praticamente imóvel, mas um brilho intenso nos olhos como se tivesse acabado de dizer uma piada.  – Por que não vai perguntar a ele? Está lá embaixo na Sala dos Répteis. 
 – Vamos perguntar a ele sem a menor dúvida – disse Violet.  – Tio Monty não tem nenhuma intenção de deixar que você nos leve sozinho ao Peru. – Ela se levantou da cama, pegou os irmãos pelas mãos e passou às pressas por Stephano, que os encarou com um sorriso escarninho junto à porta.  – Você vai ver – , reforçou Violet, e Stephano fez, com deboche, uma pequena mesura quando as crianças se retiraram do quarto.
O corredor estava estranhamente silencioso, e vazio como o lugar dos olhos numa caveira. 
– Tio Monty? – Violet chamou, chegando ao fim do corredor. Ninguém respondeu.
A não ser por alguns estalidos que ressoavam quando eles desciam os degraus da escada, a casa inteira estava imersa num silêncio fantasmagórico, como se houvesse sido abandonada havia muitos anos. 
– Tio Monty? – Klaus chamou, ao terminar de descer a escada. Não ouviram som algum.
Caminhando na ponta dos pés, Violet abriu a enorme porta da Sala dos Répteis e por um momento os órfãos ficaram olhando para a sala como se estivessem hipnotizados, sob o fascínio da estranha luz azulada que o nascer do sol produzia ao atravessar com seus raios o teto e as paredes de vidro. Nessa iluminação assim tênue eles só conseguiam ver as silhuetas dos inúmeros répteis que se moviam de um lado para o outro em suas gaiolas, ou que dormiam enroscados uns nos outros parecendo escuras massas informes.
Com o eco de seus passos dissolvendo no brilho suave das paredes, os três irmãos caminharam pela Sala dos Répteis até chegar ao extremo mais distante, onde a biblioteca do tio Monty os esperava no seu remanso. Mesmo com toda a sensação de mistério e estranheza que a sala quase às escuras despertava, podia-se dizer que era um mistério confortador e uma estranheza sem ameaças. Eles se lembraram da promessa do tio Monty: uma vez que se informassem devidamente sobre os animais, nenhum mal lhes poderia ser causado ali na Sala dos Répteis. Entretanto, vocês e eu estamos bem lembrados de que a promessa do tio Monty estava carregada de ironia dramática, e agora, no lusco-fusco do amanhecer na Sala dos Répteis, essa ironia viria à mostra brutalmente e os Baudelaire finalmente tomariam conhecimento dela. Pois, ao chegarem aonde estavam os livros, os três irmãos viram à curta distância um vulto sombrio desabado sobre uma das poltronas. Nervoso, Klaus acendeu uma das lâmpadas de leitura para enxergar melhor. O vulto sombrio era o tio Monty. A boca estava meio aberta como se estivesse surpreso, e os olhos escancarados, mas ele não os parecia estar vendo. Seu rosto, em geral tão rosado, estava bastante pálido, e sob seu olho esquerdo viam-se dois furos, alinhados na mesma altura, a marca característica deixada pelas duas presas de uma cobra.
 – Divo otum? – perguntou Sunny, e puxou fortemente pela calça a perna do tio. Monty não se moveu. Confirmando a promessa dele, nenhum mal fora causado aos órfãos Baudelaire na Sala dos Répteis. O que o tio Monty não previra era que a vítima naquela sala seria ele mesmo. 

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