Capítulo 7 - Beth
Domingo.
Depois da igreja, deveria ser um dia de descanso, para se
recuperar e carregar as baterias para a semana seguinte. Era um dia para se
passar em família, preparar um assado na cozinha e caminhar, relaxantemente, à
beira do rio. Talvez, até agarrar-se a um bom livro, tomando uns goles de vinho
ou um banho de espuma na banheira.
O que não queria fazer era passar o dia todo limpando cocô de
cachorro no gramado de treinamento dos cães, nem limpando as casinhas dos
cachorros, ou treinando uma dúzia deles, um após o outro, muito menos sentar em
um escritório claustrofóbico recebendo pessoas, vindo buscar seus cachorrinhos
de estimação, relaxados em casinhas com ar condicionado. Mas, obviamente, era
exatamente isso o que ela estava fazendo desde que tinha voltado da igreja pela
manhã.
Dois cães já haviam sido entregues, porém mais quatro ainda
estavam agendados para aquele dia. Nana tinha sido muito gentil deixando todas
as fichas arrumadas antes de entrar em casa para assistir ao jogo. O Atlanta
Braves jogava contra o Mets, Nana não só tinha uma fervorosa paixão pelo
Atlanta Braves, que Beth achava ridícula, como também amava toda e qualquer
parafernália relacionada ao time. O que obviamente explicava as xícaras de café
do Atlanta Braves empilhadas em cima do balcão, as bandeiras do Atlanta Braves
penduradas nas paredes, calendário de mesa do Atlanta Braves e o abajur do
Atlanta Braves perto da janela.
Mesmo com a porta aberta, era sufocante dentro do escritório. Era
um daqueles dias quentes e úmidos de verão, ótimos para nadar no rio, mas
inadequados para qualquer outra atividade. Sua camisa estava ensopada de suor
e, como estava de shorts, as pernas grudavam no forro de vinil da cadeira. Cada
vez que mexia as pernas, ouvia o som delas se desgrudando, como se estivesse
tirando a fita adesiva de uma caixa de papelão. Nojento!
Apesar de Nana achar imperativo que os cães se mantivessem
frescos, nunca havia se preocupado em ampliar os cabos do ar-condicionado até o
escritório. “Se sentir
calor, apenas deixe a porta que dá para os canis aberta." Era o que
ela sempre dizia, ignorando o fato de que, diferente dela, a maioria das
pessoas normais não suportava o barulho de latido de cachorro o dia todo. E
hoje havia dois tagarelinhas: dois cães da raça terrier, Jack e Russel,
que não paravam de latir desde que Beth tinha chegado. Beth imaginava que
deviam ter latido a noite toda, pois a maioria dos outros cachorros estava meio
rabugenta. A cada minuto, os outros cães pareciam se unir em um coro nervoso, o
som cada vez mais intenso e agudo, como se o único desejo de cada um fosse
mostrar ao vizinho do lado que conseguia acoar seu desprazer em um tom mais
alto. Isso significava que não haveria chance nenhuma de ela abrir a porta para
refrescar o escritório.
Pensou em ir buscar um copo de água gelada em casa, mas tinha a
estranha sensação de que, assim que saísse do escritório, os donos da cocker
spaniel viriam buscá-la do treinamento de obediência. Tinham telefonado há
meia hora, dizendo que estavam a caminho. "Em dez minutos estaremos
aí" — e eram daquele tipo de pessoa que se chateava se sua cocker
spaniel tivesse de passar um minuto a mais do que o necessário no canil,
considerando que já tinha ficado ali por duas semanas.
Mas eles já haviam chegado? Claro que não!
Seria bem mais fácil se Ben estivesse por perto. Viu-o na igreja
de manhã, tão triste quanto ela já esperava junto com o pai. Como sempre, não
se divertiu nem um pouco. Ele telefonou para ela antes de dormir dizendo que
Keith havia ficado quase a noite toda sentado na varanda enquanto ele limpava a
cozinha. Ela tentava imaginar qual seria o problema. Por que será que ele não
poderia curtir a presença do filho? Ou sentar-se com ele para conversar? Ben
era o menino mais fácil de se levar, ela não estava sendo parcial ao dizer
isso. Tudo bem, estava sendo um pouco parcial, mas, sendo professora, passava
boa parte do tempo com outras crianças e sabia o que estava falando. Ben era
esperto. Tinha senso de humor. Era naturalmente gentil. Era educado. Ben era
maravilhoso, e o fato de Keith não se dar conta disso a deixava louca.
Ela queria muito mesmo estar dentro de casa fazendo... alguma
coisa. Qualquer outra coisa. Até lavar roupa era melhor que aquilo. Ali onde
estava, fi-cava com muito tempo disponível para pensar. Não em Ben, mas também
em Nana. E se ia dar aula neste ano ou não. E até mesmo no estado lastimável em
que sua vida amorosa se encontrava, o que sempre a deixava deprimida. Pensou
que seria maravilhoso encontrar alguém com quem pudesse sair para jantar ou ir
ao cinema. Um homem normal, alguém que se lembrasse de esticar o guardanapo sobre as pernas em um
restaurante e, de vez em quando, segurasse a porta para ela passar. Não era
pedir muito, era? Não tinha mentido para Melody quando disse que a cidade não
oferecia muitas escolhas, e era a primeira a admitir-se uma pessoa exigente,
mas, com exceção do curto período em que saiu com Adam, havia passado quase
todo fim de semana em casa no último ano; 49 de 52 fins de semana. Com certeza,
ela não era assim tão exigente. Acontece que Adam tinha sido o único a
convidá-la para sair e, por um motivo que ela não conhecia, de repente parou de
procurá-la. Isso praticamente era o resumo da sua vida amorosa nos últimos
anos. Mas tudo bem! Tinha sobrevivido todo aquele tempo sozinha e ia continuar
prosseguindo. Além disso, esse fato não a incomodava a maior parte do tempo. Se
não estivesse tão miseravelmente quente, duvidava que estivesse se preocupando
com isso no momento. O que definitivamente significava que precisava de um
refresco. Senão, logo ia começar a divagar sobre o passado, algo que não queria
mesmo fazer. Pegou o copo vazio e decidiu ir buscar água gelada, trazendo uma
toalhinha para sentar em cima.
Ao se levantar da cadeira, deu uma olhada pelo caminho de cascalho
e escreveu um bilhete dizendo que estaria de volta em dez minutos. Colou-o na
porta da frente do escritório. Lá fora, o sol queimava, fazendo-a correr para
debaixo da sombra da magnólia e para o caminho de cascalho que dava para a casa
em que havia crescido. Tinha sido construída em 1920, imitando uma casa de
fazenda ampla e baixa, cercada por uma vasta varanda, com figuras entalhadas
nas calhas. O quintal dos fundos, escondido do canil e do escritório por altas
cercas vivas, era coberto pela sombra de carvalhos gigantes e possuía uma série
de terraços que transformavam qualquer refeição ali em um imenso prazer. Na
época, deveria ter sido um lugar deslumbrante, mas, como acontecia com muitas
propriedades rurais de Hampton, o tempo e a natureza conspiravam contra ela.
Atualmente, a varanda estava caindo aos pedaços, o assoalho rangia, e, quando batia
um vento forte, os papéis voavam de cima do balcão até mesmo com a porta
fechada. E não era diferente dentro de casa: a estrutura era sólida, mas o
lugar precisava de uma reforma, especialmente a cozinha e os banheiros. Nana
sabia disso e às vezes tocava no assunto, mas os projetos eram sempre deixados
para lá. Mesmo assim, Beth tinha de admitir que o lugar possuía um encanto
próprio. Não só o quintal dos fundos, que era um verdadeiro oásis, mas aparte
interna também. Durante anos, Nana frequentou lojas de antiguidades, e gostava
de tudo que fosse francês e do século 19. Também havia passado boa parte de
seus fins de semana em casas cujas famílias estavam vendendo seus bens
pessoais, inspecionando velhos quadros. Tinha um talento para escolher quadros
e desenvolveu um bom relacionamento com alguns proprietários de galerias por
todo o sul. Havia quadros em quase todas as paredes da casa. Só de curiosidade,
uma vez Beth pesquisou no
Google o nome de dois pintores e soube que havia obras expostas no Metropolitan
Museum of Art, em Nova York e na Biblioteca Huntington, em San Marino,
Califórnia. Quando mencionou o que havia acabado descobrir, Nana sorriu e
disse: — É como saborear champanhe, não é? — Nana vivia usando de metáforas
engraçadas para disfarçar seu instinto apurado.
Assim que chegou à varanda da frente e abriu a porta, Beth sentiu
uma onda de ar fresco, tão agradável que ficou parada à entrada da porta,
curtindo aqueça sensação.
Feche a porta — gritou Nana por cima dos ombros. — Está deixando o
ar fresco sair — virou-se na cadeira, olhando Beth de cima a baixo. — Parece
que está com calor.
— Estou com calor.
— Creio que o escritório esteja uma fornalha hoje.
— Você crê?
— Creio que deveria ter aberto a porta que dá para o canil, como
eu falei. Mas essa sou eu. Bem, entre e se refresque um pouco.
Beth apontou para a televisão.
— Como está indo o Braves hoje?
— Parece um maço de cenouras.
— Isso é bom ou mau?
— Cenoura sabe jogar beisebol?
— Acho que não.
— Então, você já sabe a resposta.
Beth sorriu ao ir para a cozinha. Nana ficava meio irritada sempre
que o Braves estava perdendo.
Pegou uns cubos de gelo do refrigerador. Depois de jogá-los no
copo, encheu-o de água e tomou um longo e satisfatório gole. Percebeu que também
estava com fome, pegou uma banana na fruteira e voltou para a sala de estar.
Jogou-se no braço do sofá, sentindo o suor evaporar em meio ao ar frio, com o
olhar atento em Nana e no jogo ao mesmo tempo Uma parte dela queria perguntar
quantos touchdowns tinham sido marcados, mas sabia que o humor de Nana não estava para isso.
Pelo menos não no dia em que o Braves jogava como um maço de cenouras. Olhando
no relógio, soube que tinha de voltar para o escritório.
— Foi um prazer estar com você, Nana.
— O prazer foi meu, querida. Tente não passar muito calor.
— Farei o melhor que puder.
Beth fez o mesmo caminho na volta ao escritório e percebeu,
desapontada, que não havia carro algum no estacionamento, o que significava que
os donos ainda não haviam chegado. Entretanto, havia um homem do em direção à
entrada, com um pastor-alemão seu lado. Espirais de poeira levantavam atrás
deles, e a cabeça do cão estava baixa, com a língua de fora. Beth ficou
pensando por que estariam fora de casa em um dia como aquele. Até mesmo os
animais preferiam ficar dentro de casa. Lembrou-se de que aquela deveria ser a
primeira vez que alguém vinha a pé trazer seu animal para o canil. E não parava
por aí, mas quem quer que fosse, não tinha marcado hora. As pessoas deixavam
seus animais ali sempre marcavam hora.
Imaginou que chegariam juntos, acenou e ficou surpresa quando o
homem parou para encará-la. O cão fez a mesma coisa, até ficou de orelhas em
riste. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que ele se parecia com
Oliver, o pastor-alemão que Nana trouxe para casa quando ela tinha 13 anos.
Tinha as mesmas manchas pretas e marrons, o mesmo jeito de inclinar a cabeça, a
mesma postura intimidadora diante de estanhos. Não que ela tivesse sentido medo
de Oliver alguma vez. Durante o dia era mais de Drake do que dela, mas Oliver
dormia ao lado da cama de Beth toda noite, sentindo a presença reconfortante
dela.
Presa nas lembranças de Drake e Oliver, ela não se deu conta de
que o homem ainda não havia saído do lugar. Nem tinha dito nada. Estranho.
Talvez esperasse encontrar Nana. Como o rosto dele estava na sombra, não dava
para saber bem o que pensava, mas isso não importava. Quando chegou até a
porta, tirou o bilhete e abriu o escritório, acreditando que o homem fosse
entrar quando se sentisse pronto. Deu a volta no balcão e sentou-se na cadeira
de vinil, foi aí que percebeu ter esquecido de trazer a toalha. Já era
esperado.
Pensando ser melhor deixar a documentação pronta para o estranho
deixar seu cachorro, tirou uma ficha do armário e prendeu-a na prancheta.
Procurou uma caneta na gaveta e colocou tudo em cima do balcão, na mesma hora
em que o estranho e seu cão entraram no escritório. O homem sorriu, seus
olhares se encontraram, foi uma das
poucas vezes na vida em que Beth sentiu uma completa incapacidade de encontrar
palavras.
Não era pelo fato de ele estar olhando para ela, mas sim pelo modo
como olhava para ela. Por mais louco que pudesse parecer, ele a olhava como se
a tivesse reconhecido. Mas ela tinha certeza de que nunca o tinha visto antes.
Ela se lembraria dele, mesmo porque a forma como ele parecia dominar o
ambiente, a fazia lembrar um pouco de Drake. Assim como Drake, devia ter mais
de 1,80 metro de altura, braços musculosos e ombros largos. Tinha marcas de expressão
duras, ressaltadas pela calça jeans tingida e a camiseta.
Mas as semelhanças paravam por aí. Os olhos de Drake eram de um
tom castanho-claro, os do estranho eram azuis; Drake sempre deixou os cabelos
curtos. os cabelos do estranho eram compridos, uma aparência quase selvagem.
Ela percebeu que, apesar de ter vindo a pé, ele parecia estar menos suado que
ela.
De repente, sentiu-se envergonhada e virou-se bem na hora em que o
estranho dava uma passo em direção ao balcão. Observou-o pelo canto do olho e viu-o
erguer a palma da mão ligeiramente na direção do cachorro. Tinha visto Nana
fazer o mesmo milhares de vezes, e o cão, atento ao mais simples movimento,
ficou onde estava. O cachorro já estava bem treinado, o que provavelmente
significava que ele queria hospedá-lo por algum tempo.
— Seu cachorro é muito bonito — disse Beth, aproximando o
formulário na direção dele. O som da sua própria voz havia quebrado o silêncio
constrangedor. — Já tive um pastor-alemão. Como ele se chama?
— Este é Zeus. E obrigado.
— Olá, Zeus.
O cachorro inclinou sua cabeça para o lado.
— Só preciso que você preencha o formulário. E se tiver uma cópia
dos registros veterinários, seria ótimo. Ou poderia nos fornecer o telefone do
veterinário.
— Como?
— A ficha veterinária. Você está aqui para hospedar o Zeus, não
está?
- Não. Na verdade, vi a placa na janela. Estou procurando trabalho
e queria saber se o cargo ainda está disponível.
Beth não estava esperando por isso e tentou se recompor.
— Ah!
— Sei que deveria ter telefonado primeiro, mas estava passando por
aqui e pensei se não seria melhor me apresentar pessoalmente e ver se poderia
preencher uma ficha de inscrição. Mas, se preferir, posso voltar amanhã.
— Não, não é isso. Estou só surpresa. As pessoas geralmente não
aparecem aos domingos para se candidatar para um emprego — explicou.
Na verdade, elas não aparecem em nenhum outro dia da semana
também, mas deixou esse comentário para lá.
— Tenho uma ficha em algum lugar por aqui — disse e virou para o
armário atrás dela. — Só me dê um segundo para encontrá-la — abriu a gaveta e
começou a procurar no meio dos arquivos. — Qual o seu nome?
— Logan Thibault.
— É francês?
— Por parte de pai.
— Não o vi por aqui antes.
— Sou novo na cidade.
— Achei! — disse ao pegar a ficha de inscrição. — Aqui está ela.
Colocou a ficha e uma caneta na frente dele, em cima do balcão.
Enquanto ele escrevia o nome, percebeu que a pele dele era meio áspera, o que a
levou a crer que ele havia passado muito tempo debaixo do sol. Na segunda linha
da ficha, fez uma pausa e olhou para cima, cruzando seus olhares pela segunda
vez. Beth sentiu um leve rubor no pescoço e tentou esconder ajeitando a camisa.
— Não sei qual endereço escrever. Como disse, acabei de chegar e
estou no Holiday Motor Court. Mas posso pôr o endereço da minha mãe, no
Colorado. Qual você prefere?
— Colorado?
— É, eu sei. Meio longe daqui.
— O que te trouxe aqui?
"Você", pensou. "Vim encontrar você".
— Parece uma boa cidade e pensei em tentar a sorte por aqui.
— Você não tem família aqui?
— Ninguém.
— Ah! — bonito ou não, a história dele tinha alguma coisa estranha
e Beth sentia seu sexto sentido começando a dar sinal de vida. Tinha mais
alguma coisa que não batia na história dele, ela não conseguia tirar isso da
cabeça; levou alguns minutos para entender o que era, mas, quando entendeu, deu
um passo para trás, procurando aumentar a distância entre eles.
— Se você acabou de chegar à cidade, como ficou sabendo que
estávamos contratando no canil? Eu não coloquei anúncio no jornal nesta semana.
— Eu vi a placa.
— Quando? — perguntou, com os olhos semicerrados. — Eu vi quando
você chegou e só dava para ver a placa aproximando-se da porta do escritório.
— Eu vi hoje, um pouco mais cedo. Estávamos caminhando pela
estrada e Zeus ouviu os cães latindo. Veio nessa direção e, quando vim atrás
dele, vi a placa. Não havia ninguém por perto, então pensei em voltar mais
tarde para ver se dava mais sorte.
A história era plausível, mas ela sentia que ele estava mentindo
ou escondendo algo. E por que teria estado ali antes? Estaria espionando o
local?
Ele pareceu perceber a preocupação dela e deixou a caneta de lado.
Tirou o passaporte do bolso e mostrou para ela. Abriu-o na direção dela e ela
olhou para a foto e depois para ele. Reconheceu que o nome estava certo, mas
ainda não foi suficiente para acalmar seu sexto sentido. As pessoas que
costumavam passar por Hampton não desenvolviam a idéia excêntrica de ficar por
lá. Charlotte, sim. Raleigh, bem possível. Greensboro, com certeza. Mas
Hampton? Nem pensar.
— Entendi — disse, com uma vontade súbita de encerrar a conversa.
— Continue preenchendo e deixe seu endereço para correspondência, além de sua
experiência profissional. Afinal, tudo aquilo de que preciso só é de um
telefone de contato e ligarei se for preciso. Ele não parava de olhar para ela.
— Mas você não vai ligar.
Era esperto, pensou. E direto. O que significava que teria de ser
também.
— Não.
Ele concordou.
— Certo. Eu também não ligaria se fosse me basear somente no que
eu disse até agora. Entretanto, antes de tirar conclusões precipitadas, posso
dizer algumas coisas?
— À vontade!
Seu tom deixava claro que nada que ele fosse acrescentar a
deixaria interessada.
— Sim, estou temporariamente morando em um hotel, mas pretendo
encontrar um lugar para morar por aqui. Também quero encontrar um emprego —
disse, sem desviar o olhar. — Agora, sobre mim: me formei em 2002, na
Universidade do Colorado, em antropologia. Depois disso, alistei-me no Corpo de
fuzileiros Navais e fui liberado com honras há dois anos. Nunca fui preso, nem
acusado de crime algum, nunca usei drogas e jamais fui demitido por
incompetência. Estou disposto a passar por um teste toxicológico e, se você
achar necessário, pode pedir um atestado de antecedentes para confirmar o que
eu disse. Ou, se achar mais fácil, pode ligar para meu antigo comandante e ele
vai confirmar tudo o que falei. E, embora a lei não exija que eu responda a
perguntas desse tipo, não tomo nenhum tipo de medicação, ou seja, não sou
esquizofrênico, bipolar ou maníaco. E realmente tinha visto a placa hoje cedo.
Ela imaginava que ele ia dizer tudo isso, mas com certeza ele a
havia pego desprevenida.
— Entendi — disse novamente, concentrando-se fato de ele ter sido
militar.
— Continua sendo uma perda de tempo preencher a ficha?
— Ainda não decidi — intuitivamente, sentiu que ele estava dizendo
a verdade dessa vez, mas continuava convencida de que ele ainda escondia alguma
coisa. Mordeu a bochecha. Precisava de um ajudante. O que era mais importante:
saber o que ele estava escondendo ou contratar um novo empregado?
— Por que você quer trabalhar aqui? — a pergunta pareceu suspeita
até para ela. — Com um diploma, provavelmente conseguiria um emprego melhor na
cidade.
Apontou para Zeus.
— Gosto de cachorros.
— O salário é baixo.
— Não preciso de muito.
— A jornada de trabalho é longa.
— Imaginei que fosse.
— Já trabalhou em um canil antes?
— Não.
— Entendi.
Ele sorriu.
— Você fala muito isso.
— Eu falo — disse. "Lembrete para si mesma: parar de falar
isso". — E você tem certeza de que não conhece ninguém na cidade?
— Absoluta.
— Acabou de chegar em Hampton e decidiu ficar.
— Isso mesmo.
— Onde está o seu carro?
— Não tenho carro.
— Como veio para cá?
— Andando.
Beth piscou, sem entender nada.
— Você está me dizendo que andou do Colorado até aqui?
— Sim.
— Não acha isso estranho?
— Suponho que dependa do motivo.
— E qual o seu motivo?
— Gosto de andar.
— Entendi — não conseguiu
pensar em nada novo para dizer. Pegou a caneta enquanto pensava em algo. —
Acredito que não seja casado — disse.
— Não sou.
— Tem filhos?
— Não. Somos só eu e Zeus. Mas minha mãe ainda vive lá no
Colorado.
Sentindo-se meio perdida e confusa, afastou os cabelos suados que
caíam à testa.
— Eu ainda não entendi direito. Você atravessa o país, chega a
Hampton, diz que gostou do lugar e agora quer trabalhar aqui?
— Exatamente isso.
— Não tem mais nada a acrescentar?
— Mais nada.
Ela abriu a boca para dizer algo, mas mudou de idéia.
— Espere um pouco, tenho de falar com uma pessoa.
Beth conseguia resolver muitas situações, mas ela extrapolava seu
discernimento. Por mais que tentasse entender, ela não conseguia engolir o que
ele havia lhe dito. Uma parte até que fazia sentido, mas no geral parecia...
estranho. Se ele estava falando a verdade, ele era bem esquisito; se estava
mentindo, suas mentiras é que eram esquisitas. De qualquer forma, ele era
estranho. Por isso, tinha achado melhor falar com Nana. Se alguém conseguisse
analisar aquele homem, esse alguém seria Nana.
Infelizmente, quando chegou perto de casa, percebeu que o jogo
ainda não havia acabado. Ouviu os comentaristas discutindo sobre o fato de os Mets
deverem substituir ou não seu lançador. Quando abriu a porta, ficou surpresa ao
ver a cadeira de Nana vazia.
— Nana?
Nana colocou a cabeça na porta da cozinha.
— Estou aqui. Estava preparando uma limonada. Quer um pouco?
Consigo fazer com uma mão só.
— Na verdade, preciso falar
com você. Você tem um minutinho? Eu sei que o jogo ainda não acabou...
Nana deu de ombros.
— Ah, já me enchi do jogo. Pode desligar a TV. O Braves não ganhou
e a última coisa que estou com vontade de ouvir são as desculpas deles. Odeio
desculpas. Eles não tinham nenhum motivo para perder e sabem muito bem disso. O
que está acontecendo?
Beth entrou na cozinha e inclinou-se no balcão. Nana serviu-se de
um pouco de limonada. — Está com fome? Posso fazer um sanduíche.
— Acabei de comer uma banana.
— É muito pouco. É por isso que está fina como um taco de golfe.
Deus te
ouça, pensou Beth.
— Talvez mais tarde. Tem uma pessoa interessada na vaga de
ajudante. Ele está aqui, agora.
— Está falando do moço bonito com o pastor-alemão? Imaginei que
ele tivesse vindo para isso. Como ele é? Diga-me que ele sempre sonhou em
limpar canis.
— Você o viu?
— Claro.
— Como sabia que ele estava interessado na vaga?
— E por que mais você ia querer falar comigo? Beth balançou a
cabeça. Nana estava sempre um passo a sua frente.
— Bem, acho melhor você falar com ele. Não sei bem que ideia faço
dele.
— O cabelo dele tem alguma influência nisso?
— Como assim?
— O cabelo. Você não acha que ele fica meio parecido com o Tarzan?
— Eu nem reparei.
— Claro que reparou, querida. Você não consegue mentir para mim.
Qual é o problema?
Rapidamente, Beth resumiu a
entrevista. Quando ela acabou, Nana não disse nada.
— Ele veio a pé do Colorado?
— Foi o que ele disse.
— E você acreditou nele?
— Nessa parte? — perguntou hesitante. — Sim, acho que ele está
falando a verdade sobre isso.
— É uma longa caminhada.
— Eu sei.
— Quantos quilômetros?
— Sei lá. Muitos.
— Meio estranho, não acha?
— Acho. E tem mais uma coisa.
— O quê?
— Ele era fuzileiro naval.
Nana suspirou.
— Por que você não fica aqui? Eu vou falar com ele.
Nos dez minutos que se seguiram, Beth ficou olhando por detrás das
cortinas da janela da sala de estar. Nana não ficou no escritório para
entrevistá-lo Em vez disso, sentaram-se em um banco de madeira à sombra da
magnólia. Zeus, cochilando aos pés deles, de vez em quando levantava as orelhas
para espantar as moscas. Beth não conseguia entender o que eles conversavam,
mas Nana franziu a testa em alguns momentos, o que poderia indicar que a
entrevista não estivesse indo muito bem. No fim, Logan Thibault e Zeus foram
embora pelo caminho de cascalho, retornando à estrada principal, e Nana os
observava com uma expressão de preocupação.
Beth pensou que Nana fosse voltar para casa, mas em vez disso, ela
começou a caminhar em direção ao escritório. Foi então que percebeu a
caminhonete Volvo entrando no acesso ao canil.
A cocker spaniel.
Tinha se esquecido completamente da entrega, mas era óbvio que Nana ia cuidar
disso. Beth aproveitou o tempo para se refrescar, vestir uma roupa limpa e
fresca e tomar outro copo de água gelada.
Da cozinha, ouviu a porta da frente ranger e Nana entrar.
— Como foi?
— Foi bem.
— O que você achou?
— Foi... interessante. Ele é inteligente e educado, mas você está
certa, com certeza ele está escondendo algo.
— Então, como nós ficamos nessa história? Coloco outro anúncio no
jornal?
— Vamos ver o que vai dar primeiro.
Beth achou não ter entendido o que Nana disse.
— Está dizendo que vai contratá-lo?
— Não. Estou dizendo que já o contratei. Ele começa quarta-feira,
às 8 horas.
— Por que fez isso?
— Confio nele — deu um sorriso triste, como se soubesse exatamente
o que Beth estava pensando. — Mesmo sendo um ex-fuzileiro.
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