Capítulo 8 - Thibault

Thibault não queria retornar ao Iraque, porém, uma vez mais, em fevereiro de 2006, o Primeiro Batalhão do Quinto Regimento foi convocado. Dessa vez, o regimento foi enviado para Ramadi, capital da província de Al Anbar, cuja região do sudoeste era conhecida como o Triângulo da Morte. Thibault ficou sete meses por lá.
Carros-bomba e bombas de fabricação caseira. Dispositivos simples, mas assustadores: geralmente uma carapaça de morteiro com um fusível acionado via telefone celular. Mesmo assim, na primeira vez em que Thibault dirigiu um Humvee e passou por cima de um desses, sabia que a situação poderia ter sido pior.
— Ainda bem que eu ouvi a bomba — disse Victor mais tarde. Victor e Thibault quase sempre faziam as rondas juntos nessa última missão. — Significa que ainda estou vivo.
— Nós dois estamos vivos — corrigiu Thibault.
— Mas seria melhor se não passasse por mais nenhuma dessas.
— Se nós dois não passássemos.
Mas não era fácil desviar das bombas. Na ronda do dia seguinte, foram atingidos por outra. Uma semana depois, o Humvee em que estavam foi atingido por um carro-bomba, mas essa não foi uma ação inesperada. Humvees geralmente eram atingidos por esses dois tipos de bomba em quase todas as rondas. A maior parte dos fuzileiros poderia sinceramente afirmar ter sobrevivido a duas ou três bombas antes de voltar a Pendleton. Alguns chegaram a sobreviver a quatro ou cinco. O sargento sobreviveu a seis. Aquele lugar funcionava dessa maneira e quase todo mundo tinha ouvido falar em Tony Stevens, um fuzileiro da Vigésima Quarta Unidade Expedicionária de Fuzileiros Navais, que havia sobrevivido à explosão de nove bombas. Um dos principais jornais da região avia escrito um artigo sobre ele, intitulado "Um fuzileiro de muita sorte". Ninguém tinha interesse em quebrar o seu recorde.
Mas Thibault quebrou. Quando foi embora de Ramadi, já tinha sobrevivido a 11 explosões. Mas havia uma explosão em especial que não parava de assombrar seus pensamentos.
Foi a explosão número oito. Victor estava com a mesma velha história de sempre com um fim muito pior. Eram quatro Humvees em comboio fazendo ronda em uma das principais ruas da cidade. Um RPG atingiu o Humvee da frente e causou poucos danos, felizmente, mas foi o suficiente para fazer o comboio parar por algum tempo. Dos dois lados da rua havia carros estacionados caindo aos pedaços e enferrujados. Os tiros começaram. Thibault saiu do carro para ter um ângulo de visão melhor. Victor veio atrás dele. Protegeram-se do fogo e prepararam armas. Vinte segundos mais tarde, um carro-bomba explodiu, levando-os ao chão e destruindo o Humvee que os abrigava há pouquíssimos segundos. Três fuzileiros foram mortos; Victor ficou inconsciente. Thibault levou-o de volta ao comboio e retornou à zona de segurança.
Foi nessa ocasião que Thibault começou a ouvir rumores. Percebeu que os outros fuzileiros de seu pelotão começaram a agir de uma forma diferente quando ele estava por perto, como se acreditassem que, de alguma maneira, Thibault fosse imune aos perigos da guerra. Os outros poderiam morrer, mas ele não. Pior que isso, os fuzileiros pareciam suspeitar de que, como Thibault tinha uma sorte especial, os que faziam ronda com ele é que perdiam totalmente a sorte. Não era sempre visível, mas não dava para negar a mudança dos membros de seu pelotão em relação a ele. Ficou em Ramadi por mais dois meses depois da morte dos três fuzileiros. Os últimos ataques de bombas a que sobreviveu só pareciam intensificar os rumores. Os outros fuzileiros começaram a evitá-lo. Apenas Victor parecia tratá-lo como antes. Quando a missão em Ramadi estava chegando ao fim, de guarda em um posto de gasolina, ele percebeu as mãos de Victor tremerem ao acender um cigarro. Acima de suas cabeças havia um céu carregado de estrelas cintilantes.
— Está tudo bem?
— Estou pronto para voltar para casa. Já fiz minha parte.
— Não vai voltar no ano que vem?
Victor deu uma longa tragada.
— Minha mãe quer que eu fique em casa e meu irmão arrumou um em-prego para mim. Construção de telhados. Acha que me darei bem construindo telhados?
— Acho. Você será um ótimo construtor.
— Minha namorada, Maria, está esperando por mim. Eu a conheço desde os 14 anos.
— Eu sei. Você já me disse.
— Vou casar com ela.
— Você também já me disse.
— Quero que você vá ao casamento.
Em razão da luz do cigarro de Victor, ele percebeu um leve sorriso.
— Eu não perderia esse momento por nada.
Victor deu outra longa tragada e ficaram em silêncio, pensando sobre o futuro, que parecia algo bem longínquo.
— E você? Vai ficar?
Thibault balançou a cabeça negativamente.
— Não. Para mim, chega.
— O que vai fazer quando sair daqui?
— Não sei. Vou ficar um tempo sem fazer nada, talvez vá pescar em Minnesota. Vou procurar algum lugar fresco e verde em que eu possa somente sentar em um barquinho e relaxar.
Victor suspirou.
— Parece muito bom.
— Quer vir comigo?
— Quero.
— Então, eu te ligo quando tiver tudo planejado — prometeu Thibault.
— Estarei lá — disse, sorrindo.
Victor pigarreou.
— Sabe de uma coisa? Você se lembra do tiroteio em que Jackson e os outros morreram depois da explosão do Humvee?
Thibault pegou uma pedrinha e jogou-a ao longe.
— Sim.
— Você salvou a minha vida.
— Não. Não salvei. Só tirei você de lá.
— Thibault, eu fui atrás de você. Quando você saiu do Humvee, eu ia ficar, mas quando vi você sair, sabia que não tinha escolha.
— Do que você está falando?
— Da fotografia. Sei que ela está com você. Peguei carona na sua sorte e me salvei.
No começo, Thibault não entendeu, mas, quando finalmente se deu conta do que Victor estava dizendo, balançou a cabeça, sem conseguir acreditar.
— Victor, é só uma fotografia.
— Ela dá sorte — insistiu Victor, aproximando-se de Thibault. — Você é um homem de sorte. E quando terminar sua missão por aqui, deveria ir procurar a mulher da fotografia. Sua história com ela ainda não acabou.
— Não...
— Ela me salvou.
— Mas não salvou os outros. Muitos outros.
Todos sabiam que o Primeiro Batalhão do Quinto Regimento havia sofrido mais baixas no Iraque do que qualquer outro batalhão do Corpo de Fuzileiros Navais.
— Porque é a você que ela protege. E quando saí do Humvee, acreditei que também ia me proteger, da mesma forma que você sempre acreditou que te protege.
— Não acredito.
— Então, meu amigo, por que ela está sempre com você?

***

Era sexta-feira, seu terceiro dia de trabalho no canil e, embora Thibault tivesse ocultado a maioria dos detalhes de seu passado, estava sempre consciente de que a fotografia continuava em seu bolso. Assim como nunca havia deixado de pensar no que Victor tinha dito aquele dia.
Estava passeando com um mastim por uma trilha arborizada, fora do campo de visão do escritório, mas ainda dentro da propriedade. O cachorro era enorme, mas não era tão grande como um dogue alemão, e a cada dez segundos queria lamber a mão de Thibault. Era dócil.
Já tinha aprendido bem as rotinas fundamentais de sua função: alimentar e exercitar os cães, limpar os cais e agendar as visitas. Simples. Tinha quase certeza de que Nana estava pensando em chamá-lo para ajudá-la no treinamento com os cães. Um dia antes, ela havia pedido que ele observasse seu trabalho com um dos cães, o que o fez se lembrar do treinamento de Zeus: ordens claras e simples, comandos visuais, guia firme pela coleira e muitos elogios. Quando acabou, pediu que caminhasse com ela enquanto devolvia o cão ao canil.
— Você acha que consegue fazer esse tipo de trabalho? — Nana perguntou.
— Acho que sim.
Deu uma olhada por cima do ombro para Zeus que vinha atrás deles.
— Foi assim que treinou Zeus?
— Foi.
Ao ser entrevistado por Nana, Thibault fez dois pedidos. Primeiro, gostaria de poder trazer Zeus para trabalhar com ele. Ele explicou que, depois de passarem tanto tempo juntos, Zeus não ia reagir bem a longas separações diurnas. Felizmente, Nana entendeu.
— Trabalhei muitos anos com pastores, sei o que você quer dizer. Desde que ele não atrapalhe, para mim está tudo bem.
Zeus nunca atrapalhava. Thibault logo aprendeu a não levar Zeus para dentro das casinhas dos canis enquanto alimentava ou limpava os animais, pois sua presença deixava alguns nervosos. Fora isso, Zeus estava totalmente adaptado. Ele o seguia quando Thibault exercitava os outros cães no campo de treinamento e ficava na varanda, na porta do escritório quando Thibault cuidava da papelada. Sempre que um cliente chegava, ficava alerta, como havia sido treinado. Isso era o suficiente para fazer alguns clientes recuarem, mas um simples "está tudo bem" bastava para deixá-lo à vontade.
O segundo pedido que fez a Nana foi para começar na quarta-feira, assim ele teria algum tempo para colocar a vida em ordem, pedido que ela também aceitou. No domingo, ao sair do canil, comprou um jornal e começou a procurar uma casa para alugar. Não foi uma tarefa difícil, pois só havia quatro casas disponíveis e ele imediatamente já eliminou as duas maiores, pois não precisava de um lugar tão grande.
Ironicamente, as duas opções que restavam ficavam do outro lado da cidade. A primeira que viu era casa de fundo, mais velha, passando o centro da cidade, com vista para o South River. Boas condições. Bom bairro. Mas não era para ele. Não gostava de casas geminadas. Já a segunda, era perfeita, ficava no fim de uma rua de terra, por volta de quatro quilômetros do trabalho, em uma área rural que fazia fronteira com o parque nacional. Podia ir para o canil pelo meio da mata. Não encurtaria muito o caminho, mas daria a Zeus a possibilidade de uma boa corrida. Casa térrea, estilo rústico do sul, devia ter pelo menos uns 100 anos, mas estava em bom estado de conservação. Esfregou a sujeira das janelas com as mãos e deu uma olhadinha dentro. Precisava de uma arrumada, mas nada que impedisse sua mudança. A cozinha era bem antiga, tinha um fogão a lenha em um canto, provavelmente a única fonte de aquecimento da casa. O piso de madeira estava gasto e manchado, os armários deveriam estar lá desde a construção, mas tudo isso parecia agregar valor à casa em vez de depreciá-la. E o melhor é que ela parecia ter somente o básico como mobília: sofá e mesa de cabeceira, abajur e até uma cama.
Thibault ligou para o telefone que constava no anúncio e, duas horas depois, ouviu o carro do proprietário chegar. Conversaram um pouco sobre assuntos gerais e ele descobriu que o homem havia passado vinte anos no exército, os últimos sete em Fort Bragg. A casa era do pai dele, que havia falecido há dois meses. Isso era bom, pois Thibault sabia que casas vazias eram como carros, se não fossem usados regularmente, começavam a entrar em crescente decadência, portanto a casa ainda deveria estar em boas condições. O depósito e o aluguel lhe pareceram um pouco altos, mas ele precisava de um lugar para morar com urgência. Pagou o depósito e mais dois meses adiantados. A expressão de surpresa do dono da casa mostrou que não esperava receber uma quantia tão alta em dinheiro.
Thibault dormiu na casa na segunda-feira de manhã, colocando o saco de dormir em cima do colchão: na terça-feira, foi até a cidade e encomendou um novo colchão, que ficaram de entregar no mesmo dia à noite, depois comprou outros produtos. Voltou para casa com a mochila cheia de lençóis, toalhas e materiais de limpeza. Foi mais duas vezes à cidade para abastecer a geladeira e comprar pratos, copos e talheres, juntamente com um saco de 25 quilos de comida para cachorro. No fim do dia, desde a sua saída do Colorado desejou pela primeira vez que tivesse um carro.
Desde que havia começado, na quarta-feira, havia passado a maior parte do tempo com Nana, conhecendo todos os espaços da casa. Mal viu Beth, ou Elizabeth, como gostava de pensar nela; ela saía de manhã para trabalhar e só voltava no fim da tarde. Nana havia falado qualquer coisa sobre reunião de professores, o que fazia sentido, já que as aulas começariam na semana seguinte. Com exceção de um cumprimento ocasional, a única vez em que haviam conversado foi quando ela o chamou de lado no primeiro dia para pedir que tomasse conta de Nana. Entendeu o que ela quis dizer. Era óbvio que Nana tinha sofrido um acidente vascular cerebral. Durante as sessões de treinamento da manhã, ela parecia respirar com mais dificuldade do que o normal e, ao voltar para casa, mancava mais. Isso o deixava nervoso.
Gostava de Nana. Tinha um jeito de falar que era só dela. Isso o divertia, e o fazia imaginar o quanto não passava de atuação. Excêntrica ou não, era inteligente; isso era inquestionável. Frequentemente tinha sensação de que ela o estava analisando, mesmo em conversas corriqueiras. Tinha uma opinião sobre tudo não tinha medo de expressá-la. Nunca hesitava em falar de si mesma. Contou-lhe sobre o marido e sobre o canil, sobre os treinamentos feitos no passado, sobre alguns lugares que tinha visitado. Também perguntou sobre ele, que obedientemente respondeu a perguntas sobre sua família e sobre sua criação. Estranhamente, porém, ela nunca perguntava nada sobre o serviço militar ou se ele tinha ido ao Iraque, o que parecia incomum. Mas ele não forneceu essas informações voluntariamente, até mesmo porque também não queria falar nesse assunto.
A maneira como Nana cuidadosamente evitava o assunto — e a lacuna de quatro anos em sua vida — dava a entender que ela sabia o motivo de sua reticência. E talvez que sua estada no Iraque tivesse algo a ver com o fato de ele estar ali, agora. Senhora esperta.
Seu horário oficial de trabalho era das 8 às 17 horas. O horário extra oficial era das 7 às 19 horas. Não gostava de sair sabendo que tinha deixado alguma coisa inacabada. Convenientemente, isso lhe dava uma chance de ver Elizabeth voltar do trabalho. A proximidade gera familiaridade que, por sua vez, gera a confiança. E sempre que a via, lembrava a si mesmo que estava ali por ela.
Fora isso, as demais razões por estar ali eram de certa forma vagas. Tudo bem. Estava lá, mas por quê? O que ele queria dela? Algum dia contaria a ela a verdade? Aonde é que aquilo o levaria? Na caminhada do Colorado para lá, pensava muito sobre isso, supondo que encontraria as respostas quando encontrasse a mulher da fotografia. Mas, agora que a havia encontrado, estava tão longe da verdade quanto na época em que havia partido.
Sabia mais, porém, sobre ela. Sabia que tinha um filho, por exemplo. Isso foi uma pequena surpresa, não tinha pensado nessa possibilidade. Seu nome era Ben. Parecia um garoto legal, pelo pouco que pôde observar. Nana havia dito que Ben jogava xadrez, mas não falou mais nada. Ben o observava por detrás da cortina, ou ficava olhando na direção de Thibault e Nana quando conversavam. Mas mantinha distância. Imaginava se ele o evitava por uma decisão sua ou da mãe.
Provavelmente da mãe.
Sabia que não tinha causado uma primeira boa impressão. A forma como havia paralisado na primeira vez em que a vira não tinha ajudado muito. Sabia que ela era atraente, mas a foto desbotada não havia capturado o calor do sorriso dela ou a forma séria como ela o examinava, como se procurasse falhas ocultas.
Perdido em seus pensamentos, chegou à área de treinamento principal, atrás do escritório. O mastim respirava com dificuldade, e Thibault o levou de volta ao canil. Disse para Zeus sentar e ficar onde estava e colocou o mastim na casinha. Encheu a vasilha de água e fez o mesmo com algumas outras que estavam vazias, depois foi ao escritório pegar o almoço que havia trazido. Então, foi para o riacho.
Gostava de comer ali. A água cristalina e a sombra do carvalho, com seus galhos baixos cobertos de musgo, emprestavam ao lugar um cenário pré-histórico que, tanto ele como Zeus aprovavam. Viu que havia uma casa da árvore no meio das árvores, junto à margem, que parecia ter sido construída com restos de madeiras, como se a pessoa que a fizera não tivesse muita noção do que estava fazendo. Como sempre, Zeus entrou na água com as quatro patas, refrescando-se, depois enfiou a cabeça na água e começou a latir. Cachorro maluco.
— O que ele está fazendo? — alguém perguntou.
Thibault virou-se e viu Ben em pé na clareira. Deu de ombros.
— Não faço a mínima idéia. Acho que está latindo para os peixes.
Ele ajeitou os óculos.
— Ele sempre faz isso?
— Sempre que vem aqui.
— Estranho.
— Também acho.
Zeus percebeu que Ben estava lá e certificou-se de que não havia ameaça evidente, assim, voltou a mergulhar a cabeça e a latir. Ben não saiu do lugar. Sem saber o que dizer em seguida, Thibault continuou comendo seu sanduíche.
— Vi você vir aqui ontem — disse Ben.
— Viu?
— Eu segui você.
— Seguiu?
— Minha casa da árvore fica ali — disse, apontando com a mão. — É meu esconderijo secreto.
— É bom ter um esconderijo. Quer se sentar?
— Não posso chegar tão perto.
— Por quê?
— Minha mãe disse que você é um estranho.
— É sempre bom ouvir a mãe.
Ben pareceu satisfeito com a resposta, mas não sabia ao certo como agir em seguida. Olhava de Thibault para Zeus, refletindo, e acabou decidindo sentar em uma árvore próxima de onde estava, mantendo-se distante dos dois.
— Você vai trabalhar aqui?
— Estou trabalhando aqui.
— Não foi isso que quis dizer. Quis dizer se você vai desistir.
— Não planejo isso — Thibault ergueu a sobrancelha. — Por quê?
— Porque os dois últimos que vieram desistiram. Não gostavam de limpar cocô.
— Não é todo mundo que gosta.
— Você se incomoda?
— Na verdade, não.
— Não gosto do cheiro — disse Ben, fazendo caretas.
— A maioria das pessoas não gosta. Eu tento ignorar o cheiro.
Ajeitou novamente os óculos.
— De onde você teve a idéia de dar a ele o nome de Zeus?
Thibault não conseguiu esconder o sorriso. Havia se esquecido do quanto as crianças podem ser curiosas.
— Ele já tinha esse nome quando eu o comprei.
— E por que não mudou o nome dele?
— Não sei. Nunca pensei nisso.
— A gente tinha um pastor-alemão. O nome dele era Oliver.
— É mesmo?
— Ele morreu.
— Sinto muito.
— Não faz mal. Ele já estava velho.
Thibault terminou seu sanduíche, colocou o papel-filme de volta na mochila e abriu um pacote de nozes que tinha trazido. Viu que Ben estava olhando.
— Você quer nozes?
Ben balançou a cabeça.
— Não posso aceitar comida de estranhos.
— Está certo. Quantos anos você tem?
— Dez. E você?
— Vinte e oito.
— Você parece mais velho.
— Você também.
Ben sorriu.
— Meu nome é Ben.
— Prazer em conhecê-lo, Ben. Eu sou Logan Thibault.
— Você veio mesmo a pé do Colorado até aqui?
— Quem falou isso para você?
— Ouvi minha mãe conversando com a Nana. Disseram que a maioria das pessoas normais teria vindo de carro.
— Elas têm razão.
— Não ficou com dor nas pernas?
— No começo, sim. Mas, depois de um tempo, fui me acostumando a caminhar. Zeus também. Na verdade, acho que ele gostou da caminhada. Sempre havia algo novo a ser visto, e milhões de esquilos para correr atrás.
Ben fez uma cara séria, balançando os pés para frente e para trás.
— Zeus apanha coisas lançadas?
— Ele é campeão nisso. Mas só por um tempo. Logo se cansa. Por quê? Quer lançar um pauzinho para ele?
— Posso?
Thibault fechou as mãos em concha e chamou Zeus; o cachorro saiu correndo da água, parou um pouco distante deles e sacudiu seu pelo. Ficou olhando para Thibault.
— Pega um pau.
Zeus imediatamente levou o focinho à grama e começou a farejar entre os galhos caídos. Encontrou um pauzinho e o levou para Thibault.
Thibault balançou a cabeça negativamente.
— Maior — disse, e Zeus olhou para ele de uma forma ressentida. Soltou o pauzinho e foi procurar outro.
— Ele fica excitado quando brinca, e se o pau for pequeno demais, quebra-o ao meio. Ele sempre faz isso — explicou Thibault.
Ben concordou, com ar solene.
Zeus voltou com um pau maior e o levou para Thibault. Ele limpou os galhos remanescentes, deixando-o mais liso e o devolveu para Zeus.
— Leve-o para o Ben.
Zeus não entendeu o comando e inclinou a cabeça para o lado, com as orelhas em riste. Thibault apontou para Ben. — Ben — repetiu. — Pau.
O cão foi na direção de Ben, com o pau na boca, e o colocou aos pés do menino. Farejou Ben, aproximou-se mais e permitiu que ele o acariciasse.
— Ele sabe o meu nome.
— Agora sabe.
— Para sempre?
— Provavelmente. Agora que te farejou.
— Como ele aprende tão rápido?
— Ele é assim. Está acostumado a aprender coisas rapidamente.
Zeus chegou ainda mais perto e deu uma lambida no rosto de Ben; depois saiu, olhando de Ben para o pau, e do pau para Ben.
— Ele está pedindo para você lançar.
Ben apanhou o pau e pareceu pensar no que deveria fazer em seguida.
— Posso lançar na água?
— Ele vai adorar.
Ben o atirou no riacho. Zeus entrou na água e começou a nadar. Depois de encontrar o pau, parou um pouco distante de Ben, sacudiu a água do pelo. chegou mais perto e deixou o pau cair próximo a ele.
— Eu o treinei para sacudir a água antes de se aproximar. Não gosto de ficar todo molhado — disse Thibault.
— Legal!
Thibault sorriu e Ben voltou a lançar o pau.
— Que mais ele sabe fazer?
— Muitas coisas. Por exemplo... ele é ótimo em brincar de esconde-esconde. Se você se esconder, ele te encontra rapidinho.
— Posso fazer isso qualquer hora dessas?
— Quando quiser.
— Maneiro. Ele também ataca?
— Sim. Mas na maior parte do tempo é dócil.
Quando terminou o almoço, Thibault ficou olhando Ben lançar o pau. No último lançamento, Zeus não voltou para perto de Ben, em vez disso, foi para perto da clareira, deitou-se e começou a morder o pau, apoiando uma pata sobre ele.
— Significa que parou de brincar. Mas você tem um bom braço. Por um acaso joga beisebol?
— Joguei no ano passado. Mas não sei se vou jogar este ano. Quero aprender a tocar violino.
— Eu tocava violino quando era criança.
Ben fez uma cara de surpresa.
— Mesmo?
— Piano também. Aos 8 anos.
Deitado de lado, Zeus levantou os olhos e ficou alerta. Um pouco depois, Thibault ouviu passos de alguém no caminho e a voz de Elizabeth por entre as árvores.
— Ben?
— Estou aqui, mamãe!
Thibault levantou a mão para Zeus.
— Está tudo bem..
— Até que enfim te achei. O que está fazendo aqui fora?
Sua expressão amigável congelou assim que viu Thibault, e ele conseguiu perfeitamente ler a mente dela: "O que meu filho está fazendo no meio da mata com um homem que mal conheço?" Thibault não viu necessidade de se defender. Não havia feito nada de errado. Assim, apenas acenou com a cabeça.
— Olá.
— Oi — disse, com cautela, com Ben já correndo para ela.
— Você tinha de ver o que o cachorro dele consegue fazer. Ele é super esperto. Muito mais do que o Oliver era...
— Que ótimo — disse, colocando o braço ao redor dos ombros dele. — Vamos para casa? O almoço está na mesa.
— Ele me conhece e tudo o mais...
— Quem?
— O cachorro. Zeus. Ele sabe o meu nome.
Ela se virou para Thibault.
— Sabe?
—Sim.
— Que... bom.
— Você não vai acreditar! Sabia que ele tocava violino?
— Zeus?
— Não, mamãe. O Sr. Thibault. Quando era criança. Ele tocava violino.
— É mesmo? — ela pareceu surpresa com a notícia.
— Minha mãe era fanática por música. Queria que eu interpretasse Shostakovich, mas eu não era tão talentoso assim. Se bem que conseguia interpretar Mendelssohn razoavelmente.
Ela forçou um sorriso.
— Entendi.
Apesar do aparente desconforto dela, Thibault riu.
— O que foi? — ela perguntou, obviamente lembrando-se do primeiro encontro que tiveram.
— Nada.
— Qual o problema, mamãe?
— Nenhum, mas da próxima vez que vier para cá, você tem de me avisar, está bem?
"Para eu poder ficar de olho em você", ela não disse. "Para que saiba que está seguro." Thibault entendeu o recado, mesmo que Ben não tivesse entendido.
— É melhor voltar para o escritório — disse Thibault, levantando-se e recolhendo os restos de seu almoço. — Preciso ver se o mastim tem água suficiente. Estava com muito calor e deve ter bebido toda a água. Tchau, Ben. Tchau para você também. Zeus! Vamos!
Zeus saiu correndo de onde estava e ficou ao lado de Thibault; um pouco depois, pararam no fim do caminho.
— Até logo, Sr. Thibault — disse Ben.
Thibault virou-se e, voltando um pouco para trás.
— Foi muito bom conversar com você, Ben. Ah! E não me chame de Sr. Thibault. Só Thibault, está bem?
Assim, deu meia-volta e, sentindo o peso do olhar de Elizabeth, desapareceu de vista.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trono de Vidro

Os Instrumentos Mortais

Trono de Vidro