Capítulo 9
O Correio dos Estados Unidos tem um lema: ''Nem chuva, nem granizo, nem nevasca
justificam a suspensão da entrega de correspondência''. Isso quer dizer que,
mesmo quando o tempo está horrível e o carteiro quer ficar em casa tomando uma
xícara de chocolate, ele tem obrigação de enfrentar o que der e vier e entregar
suas cartas de qualquer maneira. O Correio não aceita que tempestades falem
mais alto que os seus deveres.
Os órfãos Baudelaire tiveram a maior decepção ao saber
que a barca do Lago Lacrimoso não seguia essa política. Violet, Klaus e Sunny
desceram o morro com enorme dificuldade. A tempestade aumentava, e dava para as
crianças perceberem que tudo o que o vento e a chuva mais queriam era pegá-los
e jogá-los nas águas turbulentas do
Lago Lacrimoso. Violet e Sunny não tiveram tempo de pegar seus casacos ao
escapar da casa, assim os três se revezaram no uso do casaco de Klaus ao
avançarem aos trambolhões pelo caminho alagado. Uma ou duas vezes um carro
passou por eles, e os Baudelaire tiveram que correr a se esconder nos arbustos
lamacentos, na dúvida se era o capitão Sham que tinha vindo buscá-los. Quando
os órfãos finalmente chegaram ao Cais de Dâmocles, seus dentes batiam e seus
pés estavam tão frios que eles mal conseguiam sentir os dedos, e ver na
bilheteria da barca a placa que dizia FECHADO foi demais para eles.
– Está
fechado – gritou Klaus, levantando a voz com desespero e a fim de soar mais
alto que o Furacão Hermano. – E agora,
como faremos para chegar à Gruta do 'P'?
– Teremos que
esperar até que abra – respondeu Violet.
– Mas não
abrirá antes da tempestade passar – observou Klaus, – e então o capitão Sham já terá nos achado e
levado para longe. Temos que ir ao encontro de tia Josephine o mais rápido possível.
– Não sei como
– disse Violet, trêmula de frio. – O
atlas diz que a gruta fica do outro lado do lago, e não dá para atravessarmos
nadando toda essa distância com este tempo.
– Entro! – gritou Sunny, o que queria dizer: – E
também não temos tempo para caminhar toda a volta do lago – ou algo do
gênero.
– Deve haver
outros barcos nesse lago – disse Klaus. – Lanchas motorizadas, ou barcos de pesca,
ou... – Hesitou em concluir, e seus
olhos encontraram os das irmãs. Os três órfãos estavam pensando a mesma coisa.
– Ou barcos a
vela – completou Violet para ele. – Os
Barcos a Vela do Capitão Sham. Ele disse que os alugava justamente no Cais de
Dâmocles.
Os Baudelaire ficaram sob a marquise da bilheteria da
barca e dali perscrutaram o cais deserto até enxergarem um portão de ferro que
era bastante alto e tinha proteções pontiagudas e reluzentes na parte de cima.
Pendurada no portão havia uma placa com dizeres que eles não conseguiram ler, e
junto à placa um casebre quase invisível sob a chuva, com uma luz trêmula na
janela. As crianças olharam para aquele casebre com o coração tomado de terror.
Caminhar até o posto de aluguel dos Barcos a Vela do Capitão Sham para
encontrar tia Josephine seria o mesmo que caminhar até a cova de um leão para
escapar de um leão.
– Não podemos
ir lá – disse Klaus.
– Temos que ir
– disse Violet. – Sabemos que o
capitão Sham não está lá, porque ou está a caminho da casa de tia Josephine ou
continua no Palhaço Ansioso.
– Mas quem quer
que esteja lá – disse Klaus, apontando para a luz trêmula, – não alugará um barco para nós.
– Não sabem que
somos os Baudelaire – replicou Violet. – Diremos a quem quer que esteja lá que somos
os filhos dos Jones, e que queremos dar uma volta de barco a vela.
– No meio de um
furacão? – replicou Klaus, por sua vez. – Não vão acreditar.
– Vão ter que
acreditar – disse Violet resolutamente — palavra que aqui significa ''como se acreditasse no que dizia, embora não
estivesse tão certa disso'' —, e foi em
frente, seguida pelos irmãos, rumo ao casebre. Klaus apertava o atlas contra o
peito, e Sunny, a quem cabia a vez de usar o casaco de Klaus, envolveu-se toda
nele, até que pouco depois os Baudelaire chegaram, na maior tremedeira, debaixo
da placa que dizia: BARCOS A VELA DO CAPITÃO SHAM — CADA BARCO TEM SUA PRÓPIA
VELA. Mas o alto portão de ferro estava fechado a sete chaves, e os Baudelaire
tiveram que parar por ali, apreensivos quanto à maneira de entrar no casebre.
– Vamos dar uma
olhada – sussurrou Klaus, apontando para uma janela que, entretanto, ficava
muito no alto para ele ou Sunny poderem espiar por ela. Pondo-se na ponta dos
pés, Violet olhou pela janela do casebre, e um único olhar bastou para ela
perceber que não haveria jeito de conseguirem alugar um barco.
O casebre era muito pequeno, com espaço apenas para
uma escrivaninha mínima e uma lâmpada, que era de onde partia a luz trêmula.
Mas diante da escrivaninha, dormindo numa cadeira, achava-se uma pessoa tão
maciça que era como se uma imensa bolha ocupasse todo o casebre, roncando a
sono solto, com uma garrafa de cerveja numa das mãos e um molho de chaves na
outra. O ronco da criatura fazia a garrafa balançar, as chaves tilintarem e a
porta do casebre se entreabrir poucos centímetros, mas embora esses ruídos
fossem meio fantasmagóricos, não foram eles que amedrontaram Violet. O que
amedrontou Violet foi que não dava para saber se essa pessoa era homem ou
mulher. Não existem muitas pessoas assim no mundo, e Violet logo reconheceu
aquela criatura singular. Talvez vocês já tenham esquecido dos amigos perversos
do conde Olaf, mas os Baudelaire os conheceram em carne e osso — muita carne,
no caso desse amigo em particular —, e retinham na memória suas imagens
chocantes, detalhe por detalhe. Eram uma gente brutal, sorrateira, e faziam
tudo o que o conde Olaf— ou, na presente situação, o capitão Sham — mandava, e
os órfãos nunca sabiam quando eles iam surgir. E, agora, um deles tinha surgido
bem ali no casebre, perigoso, traiçoeiro e roncando.
Violet deve ter demonstrado seu desapontamento na
expressão do rosto, porque assim que ela deu uma olhada, Klaus perguntou: – Qual é o problema, além do Furacão Hermano, de tia
Josephine forjar sua própria morte, do capitão Sham estar atrás de nós, e de
tudo o mais, claro?
– Um dos amigos
do conde Olaf está no casebre – disse Violet.
– Qual deles? – perguntou Klaus.
– Aquele que
não parece nem homem nem mulher – respondeu Violet.
Klaus estremeceu.
– É o mais assustador.
– Discordo – disse Violet. – Acho que o careca é mais
assustador.
– Vass! – sussurrou Sunny, querendo provavelmente dizer: – Vamos deixar essa discussão para outra hora.
– Ele ou ela
chegou a vê-la? – perguntou Klaus.
– Não – disse
Violet. – Ele ou ela está dormindo. Mas
ele ou ela está segurando um molho de chaves. Vamos precisar delas, tenho
certeza, para destrancar o portão e pegar um barco.
– Você está
querendo dizer que nós vamos roubar um barco? – perguntou Klaus.
– Não temos
escolha – disse Violet. Roubar, não resta dúvida, é um crime, e é próprio de
quem não tem nenhuma educação. Mas como a maioria das coisas que faz quem não
tem nenhuma educação, é desculpável dependendo das circunstâncias. Roubar não é
desculpável, por exemplo, se a pessoa está num museu, resolve que um
determinado quadro ficaria melhor em sua casa e simplesmente leva o quadro para
casa. Mas se a pessoa está morrendo de fome e não tem outro meio de conseguir
dinheiro, é desculpável que ela leve o quadro para casa e o coma. – Temos que chegar à Gruta do 'P' o mais
rápido possível – continuou Violet, – e
só há um jeito de fazermos isso: roubando o barco.
– Eu sei – disse Klaus, – mas como vamos fazer para
pegar as chaves?
– Não sei – admitiu
Violet. – A porta do casebre range, e
tenho medo que, se a abrirmos um pouco mais, ele ou ela acorde.
– Você pode
entrar pela janela – disse Klaus, – subindo
nos meus ombros. Sunny podia ficar vigiando.
– Onde está
Sunny? – perguntou Violet, nervosa.
Violet e Klaus olharam para o chão e viram o casaco de
Klaus abandonado logo adiante, formando um montinho. Olharam para o cais, mas
viram apenas a bilheteria da barca e as águas espumantes do lago, escurecendo
na melancolia do fim de tarde.
– Ela sumiu! – gritou Klaus, mas Violet pôs o dedo indicador nos lábios e ficou na ponta dos
pés para olhar pela janela mais uma vez. Sunny estava se esgueirando pela porta
aberta do casebre, achatando seu corpinho o suficiente para não abrir mais a porta.
– Ela está lá
dentro – murmurou Violet.
– No casebre? – disse Klaus, sufocando um grito de horror. – Isso não, temos que impedi-la.
– Ela está se
arrastando bem devagarinho na direção da pessoa – , disse Violet, com medo até
de piscar.
– Prometemos a
nossos pais que cuidaríamos dela – , disse Klaus. – Não podemos deixar que faça isso.
– Ela está
estendendo a mão para alcançar o molho de chaves – disse Violet, sem
respirar. – Está tentando bem de leve
fazer o molho se soltar da mão da pessoa.
– Não me conte
mais nada – disse Klaus, ao mesmo tempo que um raio riscou o céu. – Não, vai, conta. O que está acontecendo?
– Ela pegou as
chaves disse Violet. – Pôs as chaves
na boca para poder traze-las. Está se arrastando de volta para a porta,
achatando o corpo e se esgueirando.
– Ela conseguiu
– disse Klaus, espantado. Sunny veio se arrastando triunfantemente até os
órfãos, com as chaves na boca. – Violet,
ela conseguiu – disse Klaus, dando um abraço em Sunny no mesmo instante em
que o bum! de um trovão ecoava pelo céu.
Violet sorriu para Sunny, mas parou de sorrir assim
que olhou de novo para dentro do casebre. A trovoada tinha despertado o (a)
amigo (a) do conde Olaf, e Violet observou aflita a pessoa encarando a mão
vazia onde antes havia estado o molho de chaves, e depois seguindo no chão o
rastro de Sunny, que estava ensopada, e depois erguendo os olhos até a janela,
onde cruzaram com os de Violet.
– Ela acordou!
– gritou Violet. – Ele acordou! A
pessoa acordou! Depressa, Klaus, abra o portão, enquanto eu tento distrair a
criatura.
Sem dizer mais nada, Klaus pegou o molho de chaves na
boca de Sunny e correu para o alto portão de ferro. Havia três chaves no molho
— uma fininha, outra mais grossa e uma terceira denteada que lembrava as
intimidantes proteções pontiagudas no alto do portão. Ele pôs o atlas no chão e
começou a experimentar a chave fininha na fechadura; nesse mesmo instante, o(a)
pesado(a) e modorrento(a) amigo(a) do conde Olaf saiu do casebre.
Com o coração na mão, Violet se viu frente a frente
com a criatura e lhe deu um sorriso falso.
– Boa tarde – disse, não sabendo se
acrescentava ''senhor'' ou ''senhora''. – Acontece que me perdi neste cais.
Será que poderia me dizer como chego na barca?
O(A) amigo(a) do conde Olaf não respondeu, mas
continuou indo na direção dos órfãos, sem levantar
os pés do chão. A chave fininha coube na fechadura, mas não se moveu, e Klaus
experimentou a mais grossa.
– Perdão – disse Violet, – mas não escutei o que
disse. Será que poderia me dizer...
Sem dizer nada, aquela montanha de pessoa agarrou
Violet pelos cabelos e, com um único impulso do braço, ergueu-a em cima de seus
ombros fedorentos com a mesma facilidade com que alguém jogaria uma mochila nas
costas. Klaus não conseguiu fazer a chave mais grossa entrar na fechadura e
experimentou a denteada; nesse mesmo instante, a pessoa, com a mão que lhe
sobrava, pegou Sunny e a suspendeu no ar como se segurasse uma casquinha de
sorvete.
– Klaus! – gritou Violet. – Klaus!
A chave denteada tampouco entrou na fechadura. Klaus,
frustrado, sacudiu repetidamente o portão de ferro. Violet dava pontapés nas
costas da criatura e Sunny mordia o seu pulso, mas a pessoa era tão encouraçada
— termo que aqui quer dizer ''incrivelmente
vigorosa e resistente'' — que as
crianças não conseguiam lhe causar dor nenhuma. Com seu andar arrastado, o(a)
amigo(a) do conde Olaf avançou em direção a Klaus, sem soltar as duas outras
órfãs. Em desespero, Klaus voltou a experimentar a chave fininha na fechadura,
e, para sua surpresa e alívio, ela girou e o alto portão de ferro se abriu. A
dois, três metros de distância, estavam seis barcos a vela amarrados ao final
do cais com uma corda grossa — barcos que poderiam levá-los até tia Josephine. Mas Klaus chegara tarde demais. Sentiu algo
agarrando a parte de trás de sua camisa e levantando-o no ar. Algo viscoso se
deslocava pelas suas costas, e Klaus percebeu com horror que a pessoa o
segurava na boca.
– Ponha-me no
chão! – gritou Klaus. – Ponha-me no
chão!
– Ponha-me no
chão! – berrou Violet. – Ponha-me no
chão!
– Poda riche! – esgoelou Sunny. – Poda riche!
Mas a criatura de andar arrastado não ligava a mínima
para os desejos dos órfãos Baudelaire. Com grandes passos pausados deu
meia-volta e começou a carregar os garotos de volta ao casebre. As crianças
ouviram o som pegajoso de suas patas de elefante chapinhando na água da chuva,
plash, plash, plash, plash. Mas, de repente, em vez de um plash, surgiu um
esquitlauás: a pessoa pisou no atlas de tia Josephine, e este deslizou embaixo
dos seus pés. O(A) amigo(a) do conde Olaf agitou os braços para se equilibrar,
derrubando Violet e Sunny; em seguida caiu ele (a) próprio (a), abrindo a boca,
espantado(a), e derrubando Klaus. Os órfãos, que estavam razoavelmente em
forma, levantaram-se mais rápido que a desprezível criatura e, atravessando em
disparada o portão aberto, dirigiram-se ao barco mais próximo. A criatura se
ergueu com enorme esforço e saiu atrás deles, mas a essa altura Sunny já havia
mordido e rompido a corda que amarrava o barco ao cais. Quando a criatura
chegou ao portão de ferro, os órfãos já se achavam em plenas águas tormentosas
do Lago Lacrimoso. Na escassa luz do fim de tarde, Klaus removeu a marca de
sujeira deixada pelo pé da criatura na capa do atlas e começou a lê-lo. O livro
de mapas de tia Josephine os salvara uma primeira vez, ao lhes mostrar a
localização da Gruta do ''P'', e agora
os salvava novamente.
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