Capítulo IX - Desapontamento
O senhor Procurador Geral tinha a
informar ao júri que o prisioneiro diante deles, embora jovem em anos, era
velho na prática de traições que clamavam pelo confisco de sua vida. Que sua
correspondência com o inimigo público não datava daquele dia, nem da véspera,
nem do último ano, tampouco do anterior. Que era certo que o prisioneiro, por
um período maior do que o mencionado, manteve o hábito de ir à França e voltar,
em negócios secretos dos quais não podia prestar contas com honestidade. Que,
se prosperar fosse próprio das atividades de traição (o que, felizmente, não
ocorria), a verdadeira maldade e culpabilidade de seus negócios talvez jamais
fossem descobertas. A Providência, entretanto, colocara no coração de uma pessoa
sem medo e sem mácula a incumbência de deslindar a natureza dos esquemas do
prisioneiro e, tomada pelo horror, essa pessoa os denunciou ao Chefe da
Secretaria de Estado e ao
honorável Conselho Privado de Sua Majestade. Que esse patriota seria
apresentado ao júri. Que sua posição e atitude foram sublimes. Que ele fora amigo
do prisioneiro, mas, desde o momento, ao mesmo tempo auspicioso e infeliz, em
que lhe detectou a infâmia, resolveu imolar o traidor, com quem já não podia
conviver em camaradagem, sobre o solo sagrado de sua pátria. Que, se estátuas fossem
erigidas na Inglaterra, como o foram na antiga Grécia e em Roma, em homenagem a
seus benfeitores, aquele insigne cidadão certamente ganharia uma. Que, como não
era costume do país, ele provavelmente não ganharia nenhuma. Que a virtude,
como bem observado pelos poetas (em muitas passagens, as quais, ele tinha certeza,
o júri conhecia de cor e salteado. Com o que os semblantes dos jurados revelaram
a consciência culpada por nada conhecerem sobre as tais passagens), era contagiante,
especialmente a brilhante virtude do patriotismo, do amor ao país. Que o grandioso
exemplo dessa imaculada e irreprochável testemunha em favor da Coroa, a quem se
referia com orgulho, se havia comunicado ao criado do prisioneiro, em quem semeara
a santa determinação de examinar as gavetas e bolsos de seu patrão e espionar seus
papéis. Que o senhor Procurador Geral estava preparado para ouvir censuras àquele
admirável criado, mas que, de modo geral, estimava-o mais do que a seus irmãos
e honrava-o mais do que a seus pais. Que conclamava com confiança aos membros
do júri que fizessem o mesmo. Que a evidência trazida pelas duas testemunhas,
acrescida dos documentos comprobatórios que seriam apresentados, demonstraria
que o prisioneiro obtivera listas das forças de Sua Majestade, bem como de sua
disposição e preparação, tanto na terra quanto no mar, e não restariam dúvidas de
que ele fornecera tais informações ao inimigo. Que não se podia provar que a caligrafia
dessas listas pertencesse ao prisioneiro, mas que isso não fazia diferença e que,
na verdade, era até melhor para o processo, pois mostrava que o prisioneiro era
ardiloso em suas precauções. Que a prova remontaria a cinco anos antes,
revelando o prisioneiro já engajado em perniciosas missões, poucas semanas
antes do início das hostilidades entre as tropas britânicas e as americanas.
Que, por esses motivos, o júri, sendo leal (como ele tinha certeza de que era)
e responsável (como eles sabiam que eram), indubitavelmente consideraria o réu
culpado e poria um fim à sua vida, mesmo que tal decisão não lhes agradasse.
Que eles jamais poderiam repousar a cabeça no travesseiro, que jamais poderiam
tolerar a ideia de suas esposas repousando a cabeça no travesseiro, em suma,
que eles jamais poderiam coisa alguma, muito menos repousar a cabeça no
travesseiro, a menos que a cabeça do prisioneiro fosse decepada. Cabeça que o
senhor Procurador Geral reclamava em sua peroração, em nome de tudo o que lhe
ocorresse no momento, e sob a confiança em sua solene afirmação de que, no que
lhe dizia respeito, o prisioneiro já estava morto.
Quando o Procurador Geral
concluiu, um burburinho elevou-se na corte como se uma nuvem de
moscas-varejeiras esvoejasse em torno do prisioneiro, na expectativa do que em
breve aconteceria. Quando o bulício se abrandou, a irreprochável testemunha
sentou-se na cadeira para depor.
O senhor Promotor Geral, então,
sucedendo a seu líder, assumiu o comando e interrogou o patriota, cavalheiro
John Barsad. Desfiou a história de sua alma pura exatamente como a descrevera o
senhor Procurador Geral, talvez um pouco exatamente demais. Depois de cumprido
o nobre fardo de sua responsabilidade, ele se teria modestamente retirado, não
fosse pelo cavalheiro de peruca com papéis diante de si, que manifestou o
desejo de fazer-lhe algumas poucas perguntas. O cavalheiro de peruca, que
estava sentado na outra extremidade, ainda contemplava o teto da corte.
Teria ele sido um espião também?
Não, ele desdenhou a vil insinuação. De que vivia? Dos rendimentos de sua
propriedade. Onde ficava essa propriedade? Ele não se lembrava bem da
localização. Que propriedade era essa? Não era da conta de ninguém. Recebera-a
como herança? Sim, de herança. De quem? Um parente distante. Muito distante?
Bastante. Alguma vez esteve preso? Certamente que não. Nunca foi preso por dívidas?
Ele não via que ligação isso teria com o caso. Nunca foi preso por dívidas?
Não vai responder? E então,
nunca? Sim. Quantas vezes? Duas ou três. Não teriam sido cinco ou seis? Talvez.
Qual era a profissão dele? Cavalheiro. Já foi chutado alguma vez? Podia ser.
Com frequência? Não. Já foi chutado escada abaixo? Decididamente não; recebera,
certa vez, um chute no alto de uma escada e caíra por conta própria.
Fora chutado, nessa ocasião, por
trapacear com os dados? Algo desse gênero foi dito pelo bêbado mentiroso que o
agrediu, mas não era verdade. Jura que não é verdade? Positivamente. Já viveu à
custa de roubar no jogo? Nunca. Já viveu à custa de jogo? Não mais do que
qualquer cavalheiro. Já pediu dinheiro emprestado ao prisioneiro? Sim. Alguma
vez pagou o empréstimo? Não. Não teria sido essa intimidade, que, na verdade,
nem existia, com o prisioneiro, impingida a ele nos coches, nas hospedarias e nos
paquetes? Não. Ele naturalmente vira o prisioneiro com as listas? Certamente. Sabia
alguma coisa mais sobre elas? Não. Não as havia procurado ele mesmo? Não. Espera
receber alguma coisa pelo testemunho? Não. Nem um emprego no governo como
agente provocador? Céus, não. Ou para fazer qualquer outra coisa? Céus, não. Jura?
Quantas vezes forem necessárias. Não existem motivos outros para seu admirável patriotismo?
Nenhum.
O virtuoso criado, Roger Cly,
multiplicou seus protestos de falar toda a verdade e apenas a verdade. Ele se
oferecera para trabalhar para o prisioneiro, com boa-fé e ingenuidade, quatro
anos antes. Perguntara-lhe, a bordo do paquete de Calais, se desejava um criado
e o prisioneiro o contratara. Ele não lhe pedira que o contratasse por
caridade, nunca lhe ocorreria uma coisa dessas. Ele logo começou a suspeitar do
prisioneiro e a observá-lo. Ao arrumar-lhe as roupas, durante as viagens, viu
várias vezes listas semelhantes àquelas nos bolsos do prisioneiro. Ele tirou as
listas da gaveta da escrivaninha do prisioneiro. Não fora ele quem as pusera
ali. Ele viu o prisioneiro mostrar listas idênticas a cavalheiros franceses em
Calais, bem como listas similares também a cavalheiros franceses, em Calais e
Bolonha. Ele amava seu país, não podia suportar a traição e, assim, resolveu
denunciá-lo. Ele jamais foi suspeito de roubar um bule de prata; que fora
caluniado a respeito de um mostardeiro, que, mais tarde, constatou-se ser
apenas banhado de prata. Ele conheceu a testemunha anterior sete ou oito anos
antes, mas isso era mera coincidência. Não a considerava uma coincidência particularmente
estranha. A maioria das coincidências era estranha. Tampouco considerava
coincidência que um genuíno patriotismo fosse o único motivo também dele. Era
um verdadeiro britânico e esperava que houvesse outros como ele.
As moscas-varejeiras tornaram a
zumbir, e o senhor Procurador Geral chamou o senhor Jarvis Lorry.
— Senhor Jarvis Lorry, o senhor é
funcionário do Banco Tellson?
— Sim, eu sou.
— Numa certa noite de
sexta-feira, em novembro de 1775, os negócios o levaram a viajar de Londres a
Dover na mala-posta?
— Levaram.
— Havia outros passageiros além
do senhor?
— Dois.
— Eles desceram da mala-posta em
algum momento daquela noite?
— Desceram.
— Senhor Lorry, olhe bem para o
prisioneiro. Ele era um dos dois outros passageiros?
— Não posso afirmar com certeza
que era.
— Ele se parece com um dos dois
passageiros?
— Ambos estavam tão envolvidos em
agasalhos, a noite estava tão escura e nós nos mantínhamos tão reservados que
não posso afirmar com certeza que ele pareça.
— Senhor Lorry, olhe de novo para
o prisioneiro. Imagine-o envolvido em agasalhos como aqueles dois passageiros.
Existe algo em sua compleição física, na sua estatura, que o leve a considerar
improvável que ele seja um dos dois?
— Não.
— O senhor não jura, senhor
Lorry, que ele não era um dos dois?
— Não.
— Então, ao menos o senhor pode
afirmar que ele pode ter sido um dos dois?
— Sim. Exceto pelo fato de que,
como me lembro, ambos mostraram-se, como eu mesmo, amedrontados com a
possibilidade de sermos atacados por malfeitores, e o prisioneiro não tem
aspecto de medroso.
— Já viu expressões falsas de
timidez, senhor Lorry?
— Certamente que sim.
— Senhor Lorry, olhe outra vez
para o prisioneiro. Já o havia visto antes?
— Já.
— Quando?
— Eu regressava da França, alguns
dias mais tarde, e, em Calais, o prisioneiro subiu a bordo do paquete em que eu
estava e viajou comigo.
— A que horas ele subiu a bordo?
— Pouco depois da meia-noite.
— No fim da noite. Ele foi o
único passageiro a subir em hora tão tardia?
— Por acaso foi, sim.
— Deixe de lado esse “por acaso”,
senhor Lorry. Ele foi o único passageiro a subir a bordo em hora tão tardia?
— Foi.
— O senhor viajava sozinho,
senhor Lorry, ou tinha acompanhante?
— Dois acompanhantes. Um
cavalheiro e uma dama. Eles estão aqui.
— Eles estão aqui. O senhor
manteve conversação com o prisioneiro?
— Praticamente nenhuma. O tempo
estava tempestuoso, a travessia foi longa e difícil e eu recostei-me numa sofá,
onde permaneci durante praticamente todo o percurso.
— Senhorita Manette!
A jovem dama, para quem todos os
olhos se haviam voltado antes e novamente agora, levantou-se. O pai ergueu-se
junto com a filha, mantendo a mão dela aferrada a seu braço.
— Senhorita Manette, olhe para o
prisioneiro.
Confrontar-se com tanta piedade e
tais beleza e juventude era muito mais penoso para o acusado do que enfrentar
toda a multidão. Olhando-a, como estava, da beira de seu túmulo, nem mesmo
todos aqueles olhos que o fixavam com ávida curiosidade logravam, naquele
instante, persuadi-lo a aquietar-se. Sua mão direita remexia as ervas diante de
si, arrumando imaginários leitos de flores num jardim, e seus esforços para
controlar-se e normalizar a respiração agitavam-lhe os lábios dos quais fugira
toda a cor. O zumbido das moscas-varejeiras elevou-se mais uma vez.
— Senhorita Manette, já havia
visto o prisioneiro antes?
— Sim, senhor.
— Onde?
— A bordo do paquete já
mencionado aqui, senhor, e na mesma ocasião.
— É a senhorita a quem o senhor
Lorry se referiu há pouco?
— Oh, infelizmente, sim.
O tom queixoso de sua compaixão
misturou-se à voz menos musical do juiz, que disse com certa rudeza:
— Limite-se a responder as
perguntas que lhe são formuladas, abstendo-se de tecer comentários.
— Senhorita Manette, manteve
alguma conversação com o prisioneiro durante a travessia do canal?
— Sim, senhor.
— Queira relembrá-la.
Emergindo das brumas de um
profundo silêncio, ela principiou com voz débil:
— Quando o cavalheiro subiu a
bordo...
— Refere-se ao prisioneiro? —
inquiriu o juiz, franzindo as sobrancelhas.
— Sim, Milorde.
— Então diga “prisioneiro”.
— Quando o prisioneiro subiu a
bordo, logo percebeu que meu pai — tornou os olhos amorosamente para ele, de pé
a seu lado — estava fatigado e em condições precárias de saúde. Meu pai estava
tão fraco que eu, temendo tirá-lo do ar puro, preparei-lhe uma cama no convés,
perto da escada da cabine, e sentei-me junto dele. Não havia outros passageiros
aquela noite, só nós quatro. O prisioneiro demonstrou gentileza ao pedir
permissão para indicar-me um meio melhor de proteger meu pai do vento úmido. Eu
não conseguira abrigá-lo bem, porque preparara tudo ainda no cais, sem imaginar
a direção do vento em alto mar. Ele o fez para mim, revelando uma grande
cortesia e generosidade em sua preocupação com o estado de meu pai, e tenho
certeza de que era sincero. Foi assim que entabulamos conversação.
— Deixe-me interrompê-la por um
momento. Ele subiu a bordo sozinho?
— Não.
— Quantas pessoas subiram com
ele?
— Dois cavalheiros franceses.
— Eles conferenciaram?
— Conferenciaram até o último
momento, quando foi necessário que os cavalheiros franceses regressassem em seu
bote para a terra.
— Reparou se circularam entre
eles papéis similares a estas listas?
— Alguns papéis, de fato,
circularam entre eles, mas não sei de que se tratava.
— Eram parecidos, quanto à forma
e tamanho?
— É possível, mas eu realmente
não sei, embora eles conversassem perto de mim, no alto da escada da cabine,
por causa do lampião dependurado ali. Mesmo assim, a luminosidade era pouca e
eles murmuravam, de modo que não pude distinguir uma só palavra, notando apenas
que examinavam papéis.
— Agora, voltemos à sua conversa
com o prisioneiro, senhorita Manette.
— O prisioneiro mostrou-se tão
franco em sua confiança em mim, o que me conduziu a esta triste situação,
quanto se mostrara gentil, bondoso e útil com meu pai. Espero — rompeu em
lágrimas — não retribuir sua generosidade causando-lhe mal hoje. Zumbido das
moscas-varejeiras.
— Senhorita Manette, se o
prisioneiro não entende perfeitamente que a senhorita presta o depoimento que é
seu dever prestar, que é obrigada a prestar, e que não pode esquivar-se a
prestar, com grande má-vontade, ele é a única pessoa aqui presente nessa condição.
Por favor, prossiga.
— Ele me contou que viajava a
negócios, cuja natureza era delicada e difícil, chegando mesmo a colocar
pessoas em apuros e que, por esse motivo, viajava com nome falso. Disse que os
tais negócios o tinham levado, poucos dias antes, para a França e poderiam
exigir que transitasse entre França e Inglaterra, com curtos intervalos,
durante um longo tempo.
— Ele disse alguma coisa sobre a
América, senhorita Manette? Seja específica.
— Ele tentou explicar-me como a
disputa começara e afirmou que, até onde podia julgar, a atitude da Inglaterra
era não só errada como tola. Acrescentou, gracejando, que talvez George
Washington viesse a adquirir uma fama tão grande quanto a de Jorge III. Mas não
havia maldade em sua maneira de falar, pois isso foi dito em tom de pilhéria,
em meio a uma conversa amena, para passar o tempo.
Qualquer expressão mais forte no
semblante do ator principal, para quem se dirigem todos os olhos, numa cena de
grande interesse, é inconscientemente imitada pelos espectadores. Dolorosa
ansiedade vincava sua testa, enquanto prestava depoimento, e nas pausas que ela
fazia para que o juiz anotasse o interrogatório, observava-se esse efeito sobre
os encarregados da acusação e da defesa. Quanto aos espectadores, via-se a mesma
expressão nos quatro cantos da corte, a tal ponto que a grande maioria das
testas parecia um espelho refletindo a testemunha, no instante em que o juiz
deixou suas notas e dardejou um olhar furioso ao ouvir a tremenda heresia acerca
de George Washington.
O senhor Procurador Geral
argumentou, então, que, como medida de precaução e formalidade, julgava
indispensável que se tomasse o depoimento do pai da jovem dama, doutor Manette,
que foi chamado imediatamente.
— Doutor Manette, olhe para o
prisioneiro. Já o havia visto antes?
— Uma vez, quando me procurou em
minha residência em Londres, há cerca de três anos, três anos e meio.
— Pode identificá-lo como seu
companheiro de viagem a bordo do paquete, ou contar algo a respeito da conversa
que ele manteve com sua filha?
— Nem uma coisa nem outra,
senhor.
— Existe algum motivo particular
e especial que o impeça?
Ele respondeu em voz baixa:
— Existe.
— Seria esse motivo a sua
infelicidade de suportar um longo encarceramento, sem julgamento ou mesmo
acusação, em seu país nativo, doutor Manette?
Ele confirmou, num tom que tocou
cada coração:
— Um longo encarceramento.
— O senhor acabara de ser
libertado na ocasião em tela?
— Disseram-me que sim.
— Não se lembra de nada dessa
ocasião?
— Nada. Minha mente parece em
branco, a partir do momento, não posso sequer precisar esse momento, em que
passei a dedicar-me, durante o cativeiro, a fazer sapatos, até o instante em
que me vi morando em Londres com minha querida filha. Ela se tornou familiar
para mim quando um generoso Deus restaurou-me as faculdades; mas sou totalmente
incapaz de dizer quando ela se tornou familiar. Não tenho lembranças desse
processo.
O senhor Procurador Geral
sentou-se. Pai e filha também sentaram-se. Uma circunstância singular, então,
alterou o rumo do caso. O objetivo, a esta altura, era demonstrar como o
prisioneiro descera, com algum companheiro de conspiração ainda não
identificado, da mala-posta de Dover, naquela noite de sextafeira de novembro,
cinco anos antes, e afastara-se do veículo no meio da noite, como um cego, numa
parada que não era a sua, mas de onde retornara, viajando cerca de vinte
quilômetros ou mais, até uma guarnição e arsenal naval[60], onde teria coletado
informações. Uma testemunha foi chamada para declarar tê-lo visto, no preciso
tempo necessário para ali chegar, na sala de refeições do hotel dessa cidade
fortificada, aguardando por alguém. O defensor do prisioneiro estava
interrogando a testemunha com todo o rigor sem obter qualquer resultado, exceto
que esta jamais havia visto o prisioneiro em nenhuma outra circunstância,
quando o cavalheiro de peruca que passara todo o tempo contemplando o teto
escreveu uma palavra ou duas num pequeno pedaço de papel, torceu-o e lançou-o
para o defensor. Abrindo o pequeno pedaço de papel durante a pausa seguinte, o
defensor contemplou o prisioneiro com grande atenção e curiosidade.
— O senhor afirma de novo ter
absoluta certeza de que ele era o prisioneiro? A testemunha tinha absoluta
certeza.
— O senhor alguma vez encontrou
alguém parecido com o prisioneiro?
— Não tão parecido — replicou a
testemunha — que pudesse ser confundido com ele.
— Olhe bem para aquele
cavalheiro, o meu douto colega ali — apontou para o homem que lhe atirara o
papel — e, então, olhe de novo, com atenção, para o prisioneiro. O que acha?
Eles são muito parecidos um com o outro?
Descontando-se a aparência
indolente e desleixada, senão debochada, do “meu douto colega”, eles eram
suficientemente parecidos entre si para surpreender não somente a testemunha
como a todos os presentes, quando se fazia a comparação. Sendo solicitado a
Milorde que ordenasse ao “meu douto colega” que tirasse a peruca, e tendo
Milorde consentido com pouca disposição, a semelhança revelou-se muito mais marcante.
Milorde inquiriu ao senhor Stryver (defensor do prisioneiro) se iria indiciar o
senhor Carton (nome do “douto colega”) por traição. Mas, não (o senhor Stryver respondeu
a Milorde); contudo, indagaria à testemunha se considerava possível que o que
aconteceu uma vez pudesse acontecer duas; se teria demonstrado tanta convicção,
se tivesse visto antes essa ilustração de sua atitude precipitada, se
demonstraria a mesma convicção agora etc. O propósito era despedaçar o testemunho
como a um vaso de louça, e lançar fora seu papel no processo, como um traste
inútil.
O senhor Cruncher fizera uma
refeição completa com a ferrugem dos dedos enquanto acompanhava os
interrogatórios. Prestava atenção, agora, enquanto o senhor Stryver ajustava o
caso do prisioneiro para o júri como um bom alfaiate, mostrando-lhe como o
patriota, Barsad, era um espião mercenário e traidor, um desavergonhado mercador
de sangue, e um dos maiores velhacos sobre a terra desde o amaldiçoado Judas,
com quem, aliás, era muito parecido. Como o virtuoso criado, Cly, fora seu amigo
e sócio, e ambos se mereciam; como os olhos atentos daqueles falsários, que prestaram
falso juramento, haviam pousado sobre o prisioneiro, escolhendo-o para vítima,
em virtude do fato de que alguns negócios familiares na França, pois ele descendia
de franceses, exigiam-lhe que cruzasse o canal com freqüência, embora a natureza
desses negócios, em consideração aos que lhe eram caros, o proibisse de revelá-los,
mesmo sob risco de vida. Como o depoimento que fora arrancado e distorcido da
jovem dama, cuja angústia todos testemunharam, reduzirase a nada, envolvendo
apenas as poucas e inocentes galanterias corteses que comumente ocorrem entre
um cavalheiro e uma dama reunidos pelas circunstâncias, com exceção daquela referência
a George Washington, que não podia ser encarada de outra maneira além de uma
brincadeira de mau gosto. Como seria uma fraqueza do governo sucumbir à tentação
de angariar popularidade pela exploração dos mais indignos medos e antipatias
nacionais, como fizera, em grande parte, o senhor Procurador Geral. Como, entretanto,
isso não se fundamentou em nenhuma evidência, exceto naquela espécie vil e
mesquinha de depoimentos que tão freqüentemente deturpavam casos como aquele, e
da qual os Anais de Julgamentos do Estad] deste país estavam abarrotados. Nesse
momento, Milorde interveio (com o semblante grave como se estivesse ouvindo
alguma inverdade), alegando que não toleraria tais alusões, enquanto presidisse
aquele tribunal.
O senhor Stryver, então, convocou
algumas poucas testemunhas e, em seguida, o senhor Cruncher assistiu com
atenção ao trabalho do senhor Procurador Geral para virar pelo avesso o traje
que o senhor Stryver ajustara para o júri, demonstrando como Barsad e Cly eram
cem vezes melhores do que julgara antes, e o prisioneiro, cem vezes pior. Por
fim, foi a vez de Milorde em pessoa virar e desvirar aquelas vestes, mas, no geral,
decididamente remontando-as na forma de uma mortalha para o prisioneiro.
E agora, o júri voltara as costas
para deliberar, e as grandes moscas varejeiras zumbiam de novo.
O senhor Carton, que permanecera
tanto tempo contemplando o teto da corte, não mudou nem de posição nem de
atitude, em meio a esse alvoroço. Enquanto seu douto colega, o senhor Stryver,
manuseando os papéis diante dele, cochichava com as pessoas sentadas a seu
lado, de quando em quando relanceando os olhos para o júri com ansiedade;
enquanto todos os espectadores se moviam, uns mais e outros menos, reagrupando-se;
e enquanto mesmo Milorde em pessoa se levantou e começou a passear para cima e
para baixo em sua plataforma, criando no espírito da audiência a suspeita de
que ele participava da agitação geral, apenas aquele homem recostava-se na
cadeira, com sua toga rasgada meio aberta, sua peruca desalinhada parecendo ter
surgido por acaso em sua cabeça, as mãos enfiadas nos bolsos e os olhos no teto
como sempre. Alguma coisa especialmente indolente em sua conduta não só lhe
conferia uma aparência pouco digna mas também diminuía a espantosa semelhança
que sem dúvida havia entre ele e o prisioneiro (realçada por sua momentânea
seriedade, no instante em que foram comparados), de tal modo que os vários
espectadores, observando-o agora, comentavam entre si que dificilmente teriam
cogitado da semelhança. O senhor Cruncher fez essa observação para o homem a
seu lado e acrescentou:
— Sou capaz de apostar meio
guinéu como ele não é advogado coisa nenhuma. Ele lá tem jeito disso?
Entretanto, esse senhor Carton
reparava em mais detalhes da cena do que aparentava. Agora, por exemplo, quando
a cabeça da senhorita Manette tombou sobre o peito do pai, ele foi o primeiro a
perceber e a bradar em alto e bom som:
— Oficial! Olhe aquela jovem
dama. Ajude o cavalheiro a levá-la daqui. Não vê que ela está prestes a cair?
Houve muita comiseração por ela
enquanto era removida, e muita simpatia para com o pai. Era evidentemente
motivo de grande aflição, para ele, recordar os dias de seu encarceramento. Ele
havia mostrado grande agitação interior ao ser interrogado, e aquele ar de
ponderação ou introspecção que o fazia parecer mais velho desde então estivera
em seu semblante como uma nuvem sombria. Enquanto saíam, o júri, que se virara
novamente na direção da corte e aguardava por um momento, manifestou-se através
do primeiro jurado.
Eles não haviam chegado a um
acordo e desejavam retirar-se. Milorde (talvez com George Washington em sua
mente) demonstrou alguma surpresa por não terem chegado a um acordo, mas
satisfeito por eles se retirarem sob vigilância e guarda, e ele mesmo pudesse
se ausentar. O julgamento se estendera por todo o dia e já se acendiam os
lampiões da corte. Começou a espalhar-se o rumor de que o júri ficaria ausente
por muito tempo. Os espectadores saíram para se refrescar, e o prisioneiro
sentou-se no banco dos réus.
O senhor Lorry, que havia se
retirado logo após a saída da jovem e seu pai, reapareceu agora e acenou para
Jerry, que, graças ao menor número de pessoas, pôde aproximarse dele
facilmente.
— Jerry, se você quiser comer
alguma coisa, pode ir. Mas fique por perto. Assim, ouvirá quando o júri
retornar. Então, entre sem perda de tempo, porque quero informar o veredicto ao
Banco. Você é o mensageiro mais rápido que conheço, e chegará a Temple Bar
muito antes de mim.
Jerry, em cuja testa mal existia
espaço para isso, bateu nela com os nós dos dedos, em reconhecimento da
comunicação e do xelim recebido. O senhor Carton, nesse momento, surgiu e tocou
o braço do senhor Lorry.
— Como está a jovem dama?
— Muitíssimo aflita, mas o pai a
está reconfortando e ela se sente melhor depois que saiu da corte.
— Eu contarei ao prisioneiro. Não
ficaria bem para um respeitável cavalheiro do Banco, como o senhor, ser visto
conversando em público com o prisioneiro, como sabe.
O senhor Lorry corou como se
tivesse consciência de ter debatido esse ponto em sua mente, e o senhor Carton
dirigiu-se até a grade. A saída da corte era naquela direção, de modo que Jerry
seguiu-o, todo ouvidos, olhos e cabelos pontudos.
— Senhor Darnay! O prisioneiro
avançou imediatamente.
— O senhor naturalmente deve
estar ansioso para obter notícias da testemunha, senhorita Manette. Ela passa
muito bem. O senhor presenciou o clímax de sua agitação.
— Lamento profundamente ter sido
o causador. Poderia dizer-lhe isso por mim, com a minha fervorosa gratidão?
— Sim, poderia. E o farei, se
pedir.
Os modos do senhor Carton eram
tão descuidados a ponto de serem quase insolentes. Ele permaneceu meio voltado
para o prisioneiro, apoiando o cotovelo na grade.— Pois eu peço. Aceite meu
cordial agradecimento.
— O que — indagou Carton, ainda
meio voltado para ele — o senhor espera, senhor Darnay?
— O pior.
— É a coisa mais sábia a esperar,
e também a mais provável. Contudo, considero a retirada do júri bastante
favorável ao senhor.
Não lhe sendo possível demorar-se
mais para sair da corte, Jerry não logrou ouvir mais nada, mas deixou-os, tão
parecidos um com o outro nas feições e tão diferentes em modos, de pé, lado a
lado, ambos refletidos no espelho acima deles.
Uma hora e meia arrastou-se
pesadamente nos corredores apinhados de ladrões e velhacos do andar de baixo,
apesar da ajuda dos seus pastéis de carne de carneiro e cerveja. O rouco
mensageiro, desconfortavelmente sentado num banco depois de fazer a refeição,
caíra num cochilo, quando um burburinho ruidoso despertou-o e uma onda veloz de
pessoas subindo as escadas rumo à corte carregou-o para cima.
— Jerry! Jerry! — o senhor Lorry
já chamava à porta quando ele chegou lá.
— Aqui, senhor! Foi uma luta para
voltar. Aqui estou, senhor.
O senhor Lorry estendeu-lhe um
papel por entre a multidão.
— Depressa! Apanhou?
— Sim, senhor!
Apressadamente rabiscada no papel
estava a palavra “ABSOLVIDO”.
— Se o senhor enviasse a mensagem
“De volta à Vida” de novo — murmurou Jerry, virando-se —, desta vez eu
entenderia o significado.
Ele não teve oportunidade de
dizer, nem mesmo de pensar, nada mais até alcançar Old Bailey, pois a multidão
saía aos borbotões, com tal ímpeto que quase lhe tiraram as pernas do chão, e
um zumbido alto espalhou-se pelas ruas como se as moscas varejeiras se
dispersassem em busca de outra carniça.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)