Capítulo XII - Centenas de Pessoas
A sossegada residência do doutor
Manette localizava-se numa esquina pouco movimentada perto da Praça do Soho.
Numa linda tarde de domingo, quando as ondas de quatro meses haviam rolado
sobre o julgamento de traição, fazendo-o imergir no mar do tempo e desaparecer
do interesse e da memória do público, o senhor Jarvis Lorry caminhava pelas
ruas ensolaradas de Clerkenwell, onde morava, rumando para a casa do doutor,
com quem iria jantar. Após vários períodos em que se deixou absorver pelo
trabalho e esqueceu tudo o mais, o senhor Lorry tornara-se amigo do doutor e
passara a considerar a sossegada esquina como o recanto ensolarado de sua vida.
Nessa linda tarde de domingo, o
senhor Lorry caminhava pelo Soho por três motivos. O primeiro referia-se ao
próprio hábito de caminhar, antes da refeição, com o doutor e Lucie. O segundo
era que, em domingos chuvosos, gostava de ser recebido na casa dos Manette na
qualidade de amigo da família, e os três se entretinham conversando, lendo e
olhando o dia pela janela. E o terceiro ligava-se ao fato de que ele abrigava
em seu espírito algumas pequenas mas agudas indagações, e conhecia os hábitos
da casa do doutor para saber o melhor momento de obter as respostas que desejava.
Não havia em Londres recanto mais
aprazível do que aquele onde morava o doutor. Não havia cruzamentos, e as
janelas da frente dos alojamentos que ocupava ofereciam uma agradável visão de
parte da rua, cuja atmosfera de isolamento era um convite à introspecção.
Havia, na época, alguns poucos prédios ao norte da rua Oxford, e as árvores
verdejavam em pequenos bosques, flores silvestres cresciam e pilriteiros
desabrochavam nos campos, hoje desaparecidos. Em conseqüência, as brisas do
campo circulavam pelo Soho com vigorosa liberdade, em vez de arrastar-se pelo
bairro como os mendigos que perambulam pelas ruas sem endereço certo. Havia,
não muito longe dali, alguns terrenos onde os pêssegos amadureciam na sua estação.
A luminosidade estival inundava a
esquina durante toda a manhã; mas, nas horas de calor mais intenso nas ruas, a
esquina ficava na sombra, embora não tão densa que impedisse de ver a claridade
brilhante que havia além dela.
Era um lugar fresco e agradável,
sóbrio sem ser triste, como, também, um lugar onde os sons ecoavam de uma forma
prodigiosa, e um porto seguro para quem vinha do movimento e nervosismo das
ruas.
Tinha de haver uma barca
sossegada em tal ancoradouro, e havia. O doutor ocupava dois pavimentos de uma
casa grande e tranquila, onde alguns visitantes poderiam representar algum
incômodo durante o dia, mas em geral pouco ou nenhum ruído produziam, cessando
todo o movimento ao anoitecer. Numa edificação nos fundos, acessível através de
um pátio onde sussurravam as folhas verdes de um plátano, construíam-se órgãos
de igreja numa porta, cinzelava-se prata em outra, e também o ouro aguardava
ser marchetado por algum misterioso gigante, cujo braço dourado projetava-se da
fachada, como se ele se houvesse transformado nesse metal precioso e ameaçasse
a todos os visitantes de conversão similar. Muito pouco se via ou ouvia desse
comércio, ou do movimento de um inquilino solitário que se dizia morar no andar
de cima, ou de um fabricante de acessórios para carruagens que, conforme os
comentários, possuía um escritório de negócios no térreo.
Ocasionalmente, um trabalhador
extraviado, vestindo o seu casaco, atravessava o vestíbulo, ou um estranho
perambulava por ali, ou um tinido distante vinha do jardim, ou escutava-se uma
batida do gigante dourado. Essas, contudo, as únicas exceções que comprovavam a
regra de que o canto dos pardais pousados no plátano e os ecos da esquina eram
os sons que imperavam desde as manhãs de domingo às noites de sábado. O doutor
Manette atendia ali tantos pacientes quantos sua antiga reputação, reavivada
pelos cochichos acerca de sua história, atraía. Seus sólidos conhecimentos científicos,
sua cautela e habilidade em conduzir experiências engenhosas, valeramlhe, por
outro lado, um boa clientela, e ele ganhava o suficiente para desfrutar de
certo conforto.
Esses detalhes eram conhecidos
pelo senhor Jarvis Lorry e estavam em seu pensamento ao tocar o sino à porta da
sossegada casa de esquina, numa linda tarde de domingo.
— O doutor Manette está em casa?
Saiu, mas voltaria logo.
— A senhorita Lucie está em casa?
Saiu, mas voltaria logo.
— A senhorita Pross está em casa?
Possivelmente, porém, em virtude
da impossibilidade de uma criada adivinhar as intenções da senhorita Pross, não
lhe era dado admitir ou negar o fato.
— Bem, como eu estou em casa —
disse o senhor Lorry —, subirei.
Embora a filha do doutor nada
conhecesse sobre seu país de nascimento, parecia ter o talento inato para fazer
muito com poucos meios, o que constitui uma das mais úteis e agradáveis
características dos franceses. A mobília era simples, mas decorada com tantos
pequenos adornos, de pouco valor mas de muito bom gosto, que o efeito revelava-se
delicioso. A disposição de tudo nos aposentos, do maior ao menor objeto, a
combinação de cores, a elegante variedade e contraste conseguidos com o uso parcimonioso
dos objetos, pelas mãos delicadas, pelos olhos claros e pelo bom senso, criaram
um ambiente tão aconchegante e tão evocativo de sua autora que, quando o senhor
Lorry olhou em torno, as cadeiras e mesas pareciam perguntar-lhe, com um toque
daquela expressão que ele aprendera a conhecer bem, se lhe mereciam a aprovação.
Havia três aposentos em cada
andar e as portas de comunicação estavam abertas, para permitir que o ar
circulasse livremente. O senhor Lorry, observando com prazer aquela
extraordinária semelhança com a expressão da moça que detectava ao seu redor,
vagou de um quarto para outro. O primeiro era o melhor deles, e abrigava os pássaros
de Lucie, suas flores, livros, escrivaninha, mesa de trabalho e sua caixa de aquarela.
O segundo servia de consultório ao doutor e também de sala de jantar. O terceiro,
onde incidiam as sombras cambiantes do plátano que havia no jardim interno, era
o quarto de dormir do doutor. Num dos cantos jazia o tamborete de sapateiro e a
caixa de ferramentas, os quais haviam sido tão utilizados no quinto andar de
uma triste casa perto de uma taberna, no subúrbio de Santo Antônio, em Paris.
— Espanta-me — murmurou o senhor
Lorry, detendo-se — que ele guarde essa lembrança de seu sofrimento.
— E por que se espanta? — a
indagação abrupta assustou-o.
Procedia da senhorita Pross, a
forte mulher de cabelos de um tom selvagem de vermelho que conhecera no Hotel
Royal George, em Dover, conhecimento que se aprofundara desde então.
— Eu imaginei que... — o senhor
Lorry começou.
— Hum... Imaginou! — rebateu a
senhorita Pross, e o senhor Lorry saiu.
— Como tem passado? — ela
inquiriu rapidamente, e já com a intenção de mostrar que não estava zangada com
ele.
— Muito bem, obrigado — respondeu
o senhor Lorry com brandura. — E a senhorita, como vai?
— Sem nada de que me possa
vangloriar.
— É mesmo?
— Ah, sim! — suspirou a senhorita
Pross. — Ando muito preocupada com a minha menina.
— É mesmo?
— Pelo amor de Deus, diga
qualquer coisa que não “é mesmo?” ou acabarei tendo um acesso de nervos —
resmungou a senhorita Pross, cuja característica (dissociada de sua estatura)
era a pequenez de sua paciência.
— É verdade, então? — emendou o
senhor Lorry.
— Não acho “verdade” grande coisa
— retorquiu a senhorita Pross —, mas é melhor. Sim, ando bastante preocupada.
— Posso perguntar-lhe a razão?
— Não quero dúzias de pessoas
indignas da minha menina vindo aqui para vê-la.
— E têm vindo dúzias de
pessoas aqui com esse propósito?
— Centenas — disse a senhorita
Pross.
Era característico dessa dama (e
de algumas outras pessoas antes e depois dela) que, sempre que se questionava
uma afirmação sua, ela a exagerava.
— Meu Deus! — exclamou o senhor
Lorry, considerando aquele comentário o mais seguro que pôde encontrar.
— Tenho vivido com a minha
querida, ou a minha querida tem vivido comigo, e me pagando para isso, o que
ela nunca deveria ter feito, eu lhe garanto, pois se dispusesse de recursos
manteria a nós duas sem qualquer retribuição, desde quando ela contava apenas
dez anos. E o que ocorre é realmente bastante penoso — perorou a senhorita
Pross.
Não percebendo com precisão o que
era bastante penoso, o senhor Lorry sacudiu a cabeça, empregando essa
importante parte de seu corpo como uma espécie de capa mágica que se ajustava a
qualquer coisa.
— Todos os tipos de pessoas
indignas até de pisar o mesmo chão que a minha bonequinha estão sempre
aparecendo — prosseguiu a senhorita Pross. — Quando o senhor iniciou esse
desfile... Eu iniciei o desfile, senhorita Pross?
— E não? Quem trouxe o pai dela
de volta à vida?
— Oh! Se esse foi o
início... — murmurou o senhor Lorry.
— Suponho que não tenha sido o
fim. Como eu dizia, quando o senhor iniciou o desfile, foi muito penoso; não
que eu tenha qualquer coisa contra o doutor Manette, exceto que ele não é
merecedor da filha que tem, o que não constitui uma acusação contra ele, pois
ninguém seria digno dela, sob quaisquer circunstâncias. Mas é duas vezes, senão
três vezes mais penoso suportar essa multidão chegando por sua causa (e eu
poderia tê-lo perdoado), para me roubar o afeto da minha menina.
O senhor Lorry não ignorava que a
senhorita Pross fosse muito ciumenta, mas já a conhecia o suficiente para saber
que ela era também, sob a máscara de excentricidade, uma daquelas criaturas
altruístas — encontradas apenas entre as mulheres — que se escravizariam de bom
grado, por puro amor e admiração, à juventude que já não possuíam, à beleza que
jamais tiveram, às realizações que o destino sempre lhes negaram, às esperanças
que nunca brilharam em suas vidas sombrias. Ele conhecia o mundo o bastante
para saber que não existe nada melhor que os leais serviços do coração; tão
abnegados e destituídos de qualquer mácula mercenária. Tinha por eles tão
grande respeito que, no cômputo mental que fazia (e todos fazemos essa espécie
de contabilidade, com maior ou menor frequência), ele colocava a senhorita
Pross muito mais perto dos anjos menores do que muitas das damas
incomensuravelmente mais bem agraciadas tanto pela natureza quanto pela arte,
que mantinham suas contas no Banco Tellson.
— Jamais houve nem haverá senão
um homem à altura da minha menina — continuou a senhorita Pross —, e esse homem
seria meu irmão Solomon, se ele não tivesse cometido um erro na vida.
Na verdade, as indagações do
senhor Lorry sobre a história pessoal da senhorita Pross haviam estabelecido o
fato de que seu irmão Solomon não passava de um velhaco desalmado que a
despojara de tudo quanto possuía, investindo o produto de seu roubo no jogo, e
abandonando-a na miséria sem nenhum traço de remorso. A inabalável confiança da
senhorita Pross em Solomon (que pouco diminuíra diante de um erro tão
insignificante) representava uma virtude das mais raras para o senhor Lorry, e
reforçava o bom conceito que formara a seu respeito.
— Tendo em vista estarmos
sozinhos no momento, e já que somos ambos pessoas práticas — ele disse, quando
retornaram à sala e sentaram-se amigavelmente —, permita-me perguntar-lhe: o
doutor, ao conversar com Lucie, nunca se refere a seus tempos de sapateiro?
— Nunca.
— Mas, ainda assim, conserva o
tamborete e as ferramentas no quarto?
— Ah! — a senhorita Pross sacudiu
a cabeça. — Eu não disse, todavia, que ele não se refere ao assunto quando fala
sozinho. Acredita que ele pense muito nisso?
Acredito, sim — confirmou a
senhorita Pross.
— A senhorita imagina que... — o
senhor Lorry principiava, quando a senhorita Pross atalhou:
— Jamais imagino nada. Sou
totalmente destituída de imaginação.
— Deixe-me corrigir, então. A senhorita
supõe — consegue supor, pois não?
— Às vezes — respondeu a
senhorita Pross.
— A senhorita supõe — o senhor
Lorry prosseguiu, com um lampejo divertido e afetuoso no olhar — que o doutor
Manette tenha concebido, e guardado para si mesmo todos esses anos, alguma
teoria relativa à causa de sua opressão, talvez até o nome de seu opressor?
— Não fiz nenhuma suposição a
esse respeito e só sei o que a minha menina me conta.
— E ela conta que?...
— Que ela julga que sim.
— Agora, por favor, não se
aborreça com as minhas perguntas. Eu sou apenas um rude homem de negócios, e a
senhorita também é uma mulher prática.
— E rude? — A senhorita Pross
inquiriu com placidez.
Arrependido de ter utilizado esse
adjetivo, o senhor Lorry replicou:
— Não, não. Certamente que não.
Voltando às questões práticas, não é intrigante que o doutor Manette,
inquestionavelmente inocente de qualquer crime como sabemos que ele é, jamais
toque nesse assunto? Não que devesse discuti-lo comigo, embora mantenhamos
negócios há tanto tempo que acabamos por tornar-nos íntimos, mas com a filha a
quem é tão devotadamente ligado, e que lhe retribui essa dedicação? Creiame, senhorita
Pross, não abordei esse tema com a senhorita por simples curiosidade, mas por
um zeloso interesse.
— Bem! Pelo que pude compreender,
que não é muito e, portanto, o senhor me dirá se estou errada — retrucou a
senhorita Pross, abrandada pelo tom de desculpa —, ele tem medo do assunto.
— Medo?
— Parece-me bastante claro por
que ele tem medo. São lembranças terríveis.
Além disso, a perda de si mesmo
origina-se daí. Sem saber de que modo se perdera, nem de que modo se
reencontrara, ele nunca tem certeza de que não se perderá de novo. Só isso já
bastaria para tornar o assunto desagradável, eu diria.
Aquela era uma análise mais
profunda do que esperara o senhor Lorry.
— É verdade — concordou ele —, e
assustador de se refletir. Contudo, uma dúvida me assalta a mente, senhorita
Pross. Será bom para o doutor Manette guardar tudo isso oculto dentro de si? Na
realidade, é essa dúvida, e a inquietação que por vezes me causa, que me levou
a desabafar com a senhorita.
— Não se pode fazer nada —
retorquiu a senhorita Pross, sacudindo a cabeça. —
Toque essa corda e ele
instantaneamente muda para pior. É melhor deixarmos como está. Em suma, é
melhor realmente deixarmos como está, quer gostemos, quer não. Às vezes, ele se
levanta na calada da noite e o ouvimos andar de um lado para o outro, de um
lado para o outro... em seu quarto. A menina percebeu que, nessas ocasiões, a mente
dele vagueia de um lado para o outro, de um lado para o outro... em sua velha prisão.
Ela corre para o pai e caminha com ele, de um lado para o outro, de um lado para
o outro... até a crise passar. Mas ele jamais lhe diz uma palavra sobre o verdadeiro
motivo de sua agitação, e ela prefere não pressioná-lo. Em silêncio, os dois andam
de um lado para o outro juntos, de um lado para o outro juntos... até que seu amor
e companhia o trazem de volta à realidade.
Apesar de a senhorita Pross negar
a si própria o dom da imaginação, a percepção da dor de ser monotonamente
assombrado por uma triste idéia revelava-se na maneira como ela descreveu as
crises, repetindo a frase “de um lado para o outro” numa cantilena sombria, o
que testificava que ela possuía tal atributo.
Realmente, aquela era uma esquina
com estranhas propriedades acústicas, como se fosse uma espécie de ouvido do
lugar, de forma que o senhor Lorry, postado à janela e procurando pelo pai e
filha cujos passos ele ouvia, começava a imaginar que jamais chegariam. Não
apenas os seus ecos morreriam ao longe, como também os próprios passos teriam
desaparecido; contudo, ecos de outros passos que nunca chegaram seriam ouvidos
em seu lugar, e se perderiam à distância para sempre no momento em que mais
parecessem próximos. Pai e filha, entretanto, finalmente apareceram, e a senhorita
Pross estava a postos na porta da frente para recebê-los.
Era agradável de se ver a
senhorita Pross, se bem que agitada, sanguínea e austera, tirando o chapéu de
sua querida quando esta chegou ao andar de cima, retocando-o com a ponta do
lenço e tirando-lhe a poeira, dobrando o manto dela para guardá-lo,
alisando-lhe os sedosos cabelos com tanto orgulho quanto teria sentido dos próprios
cabelos, se fosse a mais linda e vaidosa das mulheres. Era agradável de se ver
sua menina abraçando-a e agradecendo-lhe os cuidados, protestando por dar-lhe tanto
trabalho, em tom de brincadeira, caso contrário a senhorita Pross se teria retirado,
magoada, para chorar no quarto. O doutor era agradável de se ver, também, fitando-as
e repreendendo a senhorita Pross por mimar Lucie, falando de tal modo e com
tais olhares que ficava claro que ele próprio a mimava tanto quanto ela, e a mimaria
ainda mais, se fosse possível. Também o senhor Lorry era agradável de se ver,
radiante sob a pequena peruca diante da cena, agradecendo ao santo protetor dos
celibatários pela graça de encontrar, no declínio de sua vida, um lar.
Contudo, as centenas de pessoas
não apareceram para presenciar tantas coisas agradáveis, e o senhor Lorry
esperou em vão pela realização do prognóstico da senhorita Pross. Chegou a hora
do jantar e nada das centenas de pessoas. Nos arranjos domésticos, a senhorita
Pross tomava conta das tarefas do andar de baixo, saindo-se admiravelmente bem.
Seus jantares, embora modestos, eram tão bem preparados e servidos, os pratos,
que mesclavam a culinária inglesa e a francesa, tão asseados que não poderiam
ser melhores. Como a dedicação da senhorita Pross possuía um caráter essencialmente
prático, ela vasculhara o Soho e as regiões adjacentes em busca de franceses
empobrecidos, os quais, tentados por alguns xelins e meias-coroas, revelaram-lhe
os mistérios da cozinha de seu país. Com esses decadentes filhos e filhas da
Gália, ela adquiriu artes tão maravilhosas que a mulher e a moça que formavam a
criadagem consideravam-na uma espécie de feiticeira, como a fada madrinha de Cinderela,
que apanharia uma galinha, ou um coelho, um vegetal ou dois da horta e os transformaria
em tudo o que quisesse.
Nos domingos, a senhorita Pross
jantava à mesa do doutor, enquanto nos outros dias insistia em tomar as
refeições em horários desconhecidos de todos, no andar de baixo ou em seu
quarto, no andar de cima, um aposento em tons de azul, onde ninguém, exceto a
sua menina, tinha permissão para entrar. Nesse domingo, ela, correspondendo à
alegre disposição de sua querida e a seus esforços para agradá-la,
descontraiu-se mais que o habitual e o jantar também foi muito agradável.
O dia fora de um calor opressivo
e, após o jantar, Lucie propôs que o vinho fosse levado para fora sob o
plátano, e que se sentassem ali, ao ar livre. Como ela era o eixo em torno do
qual tudo girava, eles se acomodaram debaixo da árvore e ela levou o vinho,
para especial benefício do senhor Lorry; ela se havia nomeado, algum tempo antes,
como guardiã do copo do senhor Lorry. Assim, ali sentados sob o plátano, encarregou-se
de mantê-lo sempre cheio. Sombras misteriosas dos cantos e quinas das casas
espreitavam-nos enquanto conversavam, e as folhas do plátano sussurravam para eles
a seu modo sobre suas cabeças.
Nem assim as centenas de pessoas
se apresentaram. O senhor Darnay apresentouse quando tomavam vinho debaixo do
plátano, mas ele era apenas o primeiro. O doutor Manette recebeu-o com
cordialidade e assim também procedeu Lucie. A senhorita Pross, contudo,
afligiu-se de súbito com um espasmo na cabeça e no corpo e recolheu-se. Não era
incomum que ela se tornasse vítima desse distúrbio, ao qual se referia, em
conversas familiares, como “seus ataques de nervos”.
O doutor estava em ótimas
condições físicas, parecendo especialmente rejuvenescido. A parecença entre ele
e Lucie era bem grande em certos momentos e, como estivessem sentados lado a
lado, ela com a cabeça recostada no ombro do pai e ele com o braço apoiado no
espaldar da cadeira da filha, era bastante agradável apreciar lhes a
semelhança.
Ele falara o dia inteiro, sobre
vários assuntos, com vivacidade que não lhe era habitual.
— Diga-me, doutor Manette —
começou a perguntar o senhor Darnay, juntando-se a eles debaixo da árvore, e a
pergunta era proferida em prosseguimento ao tema em discussão, que por acaso
eram os prédios antigos de Londres —, o senhor conhece a Torre?
— Lucie e eu estivemos lá, mas
por puro acaso. Vimos o bastante apenas para sabermos que é muito interessante.
— Eu estive lá, como
decerto se lembra — replicou Darnay com um sorriso, embora com alguma raiva corando
lhe o rosto —, de uma maneira bem diferente, uma maneira que não nos
possibilita ver muito. De qualquer modo, contaram-me um fato curioso quando eu
estava lá.
— De que se trata? — Lucie
indagou.
— Quando faziam algumas reformas,
os trabalhadores descobriram uma antiga masmorra, que fora, por muitos anos,
cerrada e esquecida. Cada pedra de sua parede interna estava recoberta de
inscrições entalhadas por prisioneiros, datas, nomes, queixas e orações. Sobre
uma pedra num ângulo da parede, um prisioneiro, que, ao que parece, foi executado,
entalhou três letras como sua última mensagem:
“C.A.V.”.
O trabalho foi realizado com
alguma ferramenta inadequada e às pressas, com a mão trêmula. A princípio,
julgou-se que fossem as iniciais do autor. Não havia, contudo, registro ou
lenda sobre algum prisioneiro com essas iniciais e foram feitas muitas
suposições infrutíferas acerca do nome a que se referiam. Por fim, cogitou-se que
as letras não seriam iniciais, mas uma palavra incompleta, “Cave”. Examinou-se cuidadosamente
o chão sob a inscrição e, na terra, debaixo de uma pedra, ou telha, ou um
fragmento qualquer de ladrilho, encontraram-se fragmentos de papel misturados com
os restos de uma pequena pasta ou bolsa de couro. Era impossível ler o que o prisioneiro
desconhecido escrevera, mas ele havia escrito alguma coisa e ocultado ali, fora
das vistas do carcereiro.
— Papai — exclamou Lucie — o
senhor está doente!
Ele se havia erguido de súbito,
com as mãos na cabeça. Seu aspecto e modos aterrorizaram a todos.
— Não, minha querida, não estou
doente. Apenas assustei-me com essas grossas gotas de chuva que começam a cair.
É melhor entrarmos.
O doutor se recobrou quase
instantaneamente. A chuva de fato desabava em gotas pesadas, que lhe molharam
as costas das mãos. Todavia, ele não disse uma única palavra em referência à
descoberta narrada por Darnay e, ao entrarem na casa, o olho experiente do
senhor Lorry detectou, ou fantasiou que detectava, em seu semblante voltado
para Charles Darnay, a mesma expressão singular que percebera nos corredores do
tribunal.
Ele se recobrou tão depressa,
contudo, que o senhor Lorry duvidou da sua percepção. O braço do gigante
dourado no vestíbulo não estava mais firme do que o doutor, ao parar debaixo
dele para lhes observar que ainda não era à prova de pequenas surpresas (se é
que um dia o seria) e que a chuva o assustara.
Chegara a hora do chá. A
senhorita Pross preparou-o, sob o impacto de outro de “seus ataques de nervos”,
e não houve sequer sinal das centenas de pessoas. O senhor Carton aparecera,
mas ele era apenas o segundo. Aquele começo de noite estava tão abafado que,
embora sentados com as portas e janelas abertas, eles sufocavam com o calor.
Quando a mesa de chá foi posta, todos se moveram para junto de uma das janelas
e contemplaram o crepúsculo tempestuoso.
Lucie sentou-se ao lado do pai,
Darnay sentou-se junto dela, Carton recostou-se na janela. As cortinas eram
brancas e longas; algumas rajadas de vento que rodopiavam pela esquina
erguiam-nas até o teto e as faziam ondular como asas espectrais.
— A chuva ainda se limita a gotas
grossas, pesadas e esparsas — comentou o doutor Manette. — A tempestade vem
chegando devagar.
— Mas chegará com toda a certeza
— replicou Carton.
Eles falavam baixo, como as
pessoas que esperam e observam fazem na maioria das vezes. Como as pessoas num
quarto escuro, observando e esperando pelos relâmpagos, fazem na maioria das
vezes. Havia uma grande pressa nas ruas, as pessoas corriam para abrigos antes
que a tempestade desabasse. A esquina de acústica extraordinária ressoava com
os ecos de passos indo e vindo, embora nenhum passo ali houvesse.
— Uma verdadeira multidão e,
contudo, estamos sós! — disse Darnay, depois de ouvirem os ruídos por algum tempo.
— Não é impressionante, senhor
Darnay? — indagou Lucie. — Às vezes, eu me sento aqui durante a noite e
fantasio, mas mesmo a sombra de uma fantasia tola me faz estremecer à noite,
quando tudo parece tão escuro e solene...
— Deixe-nos estremecer também.
Queremos saber que fantasias são essas.
— Os senhores as julgarão
insignificantes. Só impressionam no momento em que as criamos, suponho. É
impossível transmiti-las. Às vezes sento-me aqui sozinha à noite, ouvindo, até
que imagino que os ecos são de passos que se aproximam pouco a pouco de nossas
vidas.
— Se for assim, há uma grande
multidão prestes a entrar em nossas vidas — Sydney Carton interveio, com seu
jeito mal-humorado.
Os passos eram incessantes, e sua
pressa tornava-os mais e mais rápidos. A esquina ecoava e ressoava com o ruído
deles. Alguns pareciam estar sob a janela.
Outros pareciam estar na sala.
Alguns vindo, outros indo, alguns surgindo, outros parando. Todos originários
das ruas distantes e nenhum à vista.
— Esses passos destinam-se a todos,
senhorita Manette, ou a cada um de nós?
— Não sei, senhor Darnay. Eu o
avisei de que eram fantasias tolas, mas o senhor insistiu. Quando me entreguei
a elas, estava sozinha e imaginei que os passos pertenciam a pessoas que
entrariam na minha vida e na de meu pai.
— Pois que entrem na minha! —
exclamou Carton. — Eu não lhes farei perguntas nem imporei condições. Há
uma grande multidão. Há uma grande multidão avançando sobre nós, senhorita
Manette, e eu posso vê-los... nos relâmpagos — acrescentou as últimas palavras
logo após o vívido clarão que o mostrou reclinado na janela. — E eu os escuto! —
tornou a acrescentar, depois do ribombar de um trovão.
— Aqui vêm eles, rápidos, ferozes
e irados! Foi o ímpeto e o rugido da chuva que ele anunciou que o deteve, pois
nenhuma voz se faria ouvir com o barulho da tempestade. Uma memorável
tempestade de trovões e relâmpagos desabou junto com o aguaceiro, sem oferecer
sequer um momento de intervalo na exibição de raios, estrondos e chuva antes
que a lua se erguesse no céu à meia-noite.
O grande sino de Saint Paul bateu
uma hora no ar límpido, quando o senhor Lorry, acompanhado por Jerry, de botas
de cano alto e munido de uma lanterna, fez o caminho de volta para Clerkenwell.
Havia alguns trechos solitários de estrada no caminho entre o Soho e
Clerkenwell, e o senhor Lorry, atento aos salteadores, sempre requisitava Jerry
para esse serviço, embora habitualmente isso ocorresse umas duas horas mais cedo.
— Que noite! Quase uma noite,
Jerry — disse o senhor Lorry —, para fazer os mortos saírem de seus sepulcros.
— Eu nunca vi uma noite, mestre,
e espero nunca ver nenhuma, que faça uma coisa dessas — respondeu Jerry.
— Boa noite, senhor Carton —
despediu-se o homem de negócios. — Boa noite, senhor Darnay. Será que nos
tornaremos a ver em outra noite como a de hoje?
Talvez. Talvez vissem também a
grande multidão de pessoas com seu ímpeto e seu rugido avançando sobre eles.
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