Capítulo XL - A Substância da Sombra
“Eu,
Alexandre Manette, desventurado médico, nascido em Beauvais e depois residente
em Paris, escrevo essas melancólicas páginas na minha triste cela na Bastilha,
durante o último mês do ano de 1767. Faço-o a intervalos e enfrentando toda sorte
de dificuldades. Pretendo ocultá-las na parede da chaminé, onde, lenta e laboriosamente,
preparei um esconderijo. Talvez uma mão piedosa as encontre aqui, quando eu e
meus sofrimentos já não sejamos mais do que pó.
Estas
palavras são formadas com a ponta de um prego enferrujado, com a qual eu escrevo
com dificuldade usando fragmentos de carvão e fuligem da chaminé misturados com
sangue, no último mês do décimo ano do meu cativeiro. A esperança já me abandonou
o peito. Sei, através de terríveis sintomas que percebi em mim mesmo, que minha
razão não permanecerá incólume por muito tempo, mas eu solenemente declaro que,
neste momento, estou de posse de minhas faculdades mentais, que minha memória é
exata e circunstanciada, e que escrevo a verdade, pois responderei por estes
meus últimos registros, mesmo que ninguém jamais os leia, perante o Eterno
Juízo.
Numa
noite em que o clarão da lua se esgueirava por entre as nuvens, na terceira semana
de dezembro (creio que no vigésimo segundo dia) do ano de 1757, eu caminhava ao
longo de uma parte deserta da margem do Sena para respirar um pouco de ar puro,
a cerca de uma hora de distância de minha casa, situada na rua da Escola de Medicina,
quando uma carruagem veio por detrás de mim e afastou-se em grande velocidade.
Quando me encolhi para o lado, a fim de dar-lhe passagem, receoso de que pudesse
atropelar-me, uma cabeça assomou à janela e uma voz ordenou ao cocheiro que
parasse.
Assim
que este pôde refrear os cavalos, a carruagem parou e a mesma voz chamou-me
pelo nome. Eu respondi. O coche já se encontrava tão à frente que dois cavalheiros
tiveram tempo de abrir a porta e descer antes que eu chegasse até lá.
Observei
que estavam ambos envolvidos em pesadas capas e pareciam esconder-se. De pé,
lado a lado junto à porta da carruagem, também observei que eram da minha idade,
talvez um pouco mais novos, e que havia entre eles uma extraordinária semelhança:
a mesma estatura, a mesma aparência, a mesma voz e (até onde pude ver) o mesmo
rosto.
—
O senhor é o doutor Manette? — inquiriu um deles.
—
Sou, sim.
—
O doutor Manette, de Beauvais — disse o outro —, o jovem médico, na verdade um
excelente cirurgião, que há cerca de um ano ou dois vem granjeando em Paris uma
reputação invejável?
—
Cavalheiros — repliquei —, sou o médico a quem se referem de modo tão lisonjeiro.
—
Estivemos em sua residência — declarou o primeiro — e, não tendo a sorte de encontrá-lo
lá, mas recebendo a informação de que o senhor provavelmente estaria caminhando
nesta direção, nós seguimos, na esperança de alcançá-lo. Poderia, por favor,
entrar na carruagem?
Seus
modos eram imperiosos, e eles se moviam, enquanto falavam, de forma a deixar-me
entre ambos e a porta da carruagem. Estavam armados. Eu, não.
—
Cavalheiros — retruquei —, perdoem-me, mas tenho por hábito perguntar quem me
dá a honra de buscar o meu auxílio e qual a natureza do caso para o qual sou chamado.
A resposta coube ao que havia falado em segundo lugar.
—
Doutor, seus clientes são pessoas as mais distintas. Quanto à natureza do caso,
nossa confiança em sua habilidade nos assegura que o senhor a julgará por si
muito melhor do que podemos descrevê-la. Já basta. Quer, por favor, entrar na
carruagem?
Nada
podendo fazer além de cumprir a ordem, subi em silêncio para o interior do coche.
Os dois subiram logo atrás de mim, o último, de um salto, ignorando os degraus.
A carruagem fez meia-volta e partiu na mesma velocidade anterior. Repito essa
conversa tal como ocorreu, palavra por palavra. Descrevo os fatos exatamente
como se passaram, forçando minha mente a não se desviar da tarefa. Os sinais
que traço abaixo marcam a interrupção que sou obrigado a fazer. Por ora, terei de
guardar esta folha em seu esconderijo.
“A
carruagem deixou as ruas para trás, cruzou a barreira norte e desembocou numa
estrada rumo ao campo. A dois terços de légua da barreira, não calculei a distância
nesse momento, mas sim depois, quando passei de volta, saiu da avenida principal
e parou diante de uma casa retirada. Nós três descemos e atravessamos um jardim,
onde uma fonte malcuidada havia transbordado e molhado a terra, até a porta da
casa. A sineta não foi atendida de imediato e um de meus dois clientes, com sua
pesada luva de montaria, esbofeteou o criado que abriu a porta, por ter
demorado a atender.
Não
havia nada naquela atitude que atraísse particularmente a minha atenção, pois não
ignorava que essas pessoas simples são surradas com mais freqüência do que os cães.
Contudo, o outro, igualmente irritado, também esbofeteou o criado, embora com a
mão, em vez da luva. Os traços físicos e os gestos dos dois irmãos eram tão
idênticos que percebi, pela primeira vez, que eram gêmeos.
Desde
o momento em que descemos do coche, junto ao portão (que havíamos encontrado
trancado, e que um dos gêmeos abriu e tornou a trancar), eu vinha escutando gemidos
provenientes de um aposento no andar superior. Fui guiado diretamente até lá, os
gemidos se tornando mais e mais altos à medida que eu subia as escadas, e me deparei
com uma pessoa delirando de febre sobre uma cama.
Tratava-se
de uma mulher de grande beleza, e jovem, com certeza ainda não passara dos
vinte anos. Seus cabelos desgrenhados espalhavam-se ao redor da cabeça e seus
braços estavam atados ao corpo com faixas e lenços. Percebi que essas ataduras eram
retalhos de um fino traje de cavalheiro. Em uma delas, que era uma echarpe franjada
própria de uma vestimenta de cerimônia, vi um brasão típico de família nobre, e
a letra “E”.
Reparei
nesse detalhe assim que contemplei a paciente. Pois, ao se debater, irrequieta,
ela se virara de lado e aproximara o rosto da beira da cama, de forma que a ponta
da echarpe entrou em sua boca, ameaçando sufocá-la. Minha primeira providência
foi afastar a echarpe para que ela voltasse a respirar. Ao fazê-lo, o bordado
em questão atraiu-me o olhar.
Com
delicadeza, eu tornei a virá-la, pousei a mão em seu peito para que se acalmasse
e fitei-lhe a face. Com os olhos dilatados e esgazeados, ela soltava guinchos estridentes
e repetia as palavras: “Meu marido, meu pai e meu irmão!”. Então, contava até
doze e resmungava: “Shh!”. Por um instante, e não mais, ela fazia uma pausa
para escutar; e voltava à cantilena: “Meu marido, meu pai e meu irmão!”;
contava até doze e pedia silêncio. A seqüência não variava nem se interrompia,
exceto nos instantes de pausa.
—
Há quanto tempo — indaguei — ela se encontra neste estado?
Para
distinguir os irmãos, eu os chamarei de mais velho e mais novo. Por mais velho,
designo o que exercia maior autoridade. Foi este que respondeu:
—
Desde ontem à noite.
—
Ela tem marido, pai e irmão?
—
Um irmão.
—
Posso vê-lo?
Ele
ripostou com grande desprezo:
—
Não.
—
Houve algum fato recente que ela associasse com o número doze? O mais novo interveio,
impaciente:
—
Com as doze horas?
—
Percebem, cavalheiros — disse eu, mantendo as mãos sobre o peito da paciente para
que não voltasse a virar-se —, a inutilidade de trazer-me aqui sem me informar
sobre a natureza do caso? Se eu soubesse do que se tratava, teria trazido os medicamentos
necessários. Agora, seremos obrigados a perder um tempo precioso. Não há como
obter remédios neste lugar isolado.
O
mais velho olhou para o outro, que apressou-se a replicar:
—
Temos uma maleta de remédios aqui — e apanhoua de um armário, pousando-a sobre
a mesa.
Abri
alguns dos frascos, aspirei-os e levei as rolhas aos lábios. Se eu necessitasse
de drogas não envenenadas por narcótico, não teria administrado aquelas.
—
Não lhe inspiram confiança? perguntou o mais novo.
—
Veja, monsieur, vou usá-las —
retruquei, sem acrescentar nenhuma palavra.
Fiz
a paciente engolir, com grande dificuldade e após várias tentativas, a dose que
desejava ministrar-lhe. Como pretendia repeti-la mais tarde, era preciso
observá-la para verificar o resultado. Assim, sentei-me ao lado da cama.
A
tímida e humilde mulher (esposa do criado que abrira a porta) que cuidava da moça
retirara-se para um canto do aposento. A casa, úmida e decadente, era pobremente
mobiliada, claro estava que fora ocupada recentemente e de forma apenas temporária.
Algumas grosseiras e velhas cortinas haviam sido dependuradas nas janelas, para
abafar o som dos gritos, que continuavam, numa seqüência constante, acompanhados
a espaços das mesmas exclamações “Meu marido, meu pai, meu irmão”.
Ela
contava até doze e “Shh!”. A convulsão era tão violenta que preferi não
desfazer as ataduras que lhe prendiam os braços. Tive, porém, o cuidado de
examinar para ver se não a magoavam. O único sinal encorajador era que minhas
mãos sobre seu peito causavam um efeito tão calmante que, durante alguns
minutos, conseguiam tranquilizar a paciente. Contudo, não exerciam nenhuma
influência sobre as crises, que se sucediam numa regularidade maior do que a de
qualquer pêndulo.
Em
razão de minhas mãos (presumo) produzirem tal efeito, permaneci sentado, sob a
vigilância dos dois irmãos, ao lado da cama por meia hora, até que o mais velho
revelou:
—
Há um outro paciente, na casa, que necessita de cuidados. Surpreso, indaguei:
—
É um caso de urgência?
—
É melhor o senhor ver — respondeu em tom de indiferença e apanhou um castiçal.
O
outro paciente jazia num quarto de fundos no alto de uma segunda escadaria, uma
espécie de sótão sobre a cavalariça. Um teto baixo e caiado cobria uma parte do
cômodo; a outra parte era aberta, com as vigas e o telhado à mostra. Feno e
palha estavam estocados naquele canto do sótão, além de feixes de lenha e de
uma pilha de maçãs. Tive de cruzar por todas essas coisas para chegar ao
paciente. Minha memória continua inabalável. Prova disso é o fato de eu
recordar tantas minúcias. É como se as visse agora, nesta minha cela na
Bastilha, perto do final do meu décimo ano de cativeiro, como as vi naquela
noite.
Sobre
um monte de palha, com uma almofada sob a cabeça, jazia um belo camponês, um
rapaz que não teria mais de dezessete anos. Deitado de costas, com os dentes
cerrados, tinha a mão direita apertada sobre o peito e os olhos brilhantes voltados
para o teto. Ao ajoelhar-me ao seu lado, eu não podia localizar-lhe o ferimento,
mas pude constatar que ele estava morrendo em conseqüência de uma ferida causada
por um instrumento pontiagudo.
—
Sou médico, meu pobre rapaz — disse-lhe eu. — Deixe-me examiná-lo.
—
Não quero ser examinado — respondeu ele —, é inútil.
O
ferimento estava oculto sob a mão e, com jeito, consegui que ele a afastasse para
que eu pudesse olhar. Tratava-se de uma ferida aberta por uma espada, cerca de vinte
ou vinte e quatro horas antes. Mesmo que ele tivesse sido socorrido logo em seguida,
nada poderia salvá-lo. A morte aproximava-se a passos rápidos. Quando me virei
para o irmão mais velho, percebi que este fitava o belo rapaz cuja vida se
esvaía como se fosse apenas uma ave ferida, uma lebre, um coelho. De modo algum
enxergava o ser humano que definhava sobre o monte de palha.
—
Como aconteceu isso, monsieur?
—
Esse idiota louco! Um servo! Forçou meu irmão a lutar e foi ferido por sua espada...
como um cavalheiro!
Não
havia compaixão, nem pesar, nem qualquer sentimento de humanidade em sua voz.
Ele apenas parecia considerar inconveniente a circunstância de haver um tipo diferente
de criatura morrendo ali, achando, decerto, que seria melhor que morresse na obscura
rotina usual dos vermes. Era totalmente incapaz de qualquer sentimento piedoso
em relação ao rapaz ou a seu destino.
Os
olhos do moribundo voltaram-se lentamente para o homem e depois fixaram-se em
mim.
—
Doutor, são muito orgulhosos, esses nobres; mas nós, servos idiotas, também somos
orgulhosos, por vezes. Eles nos roubam, ultrajam, maltratam e matam; ainda assim,
resta-nos um pouco de orgulho. Ela... já a viu, doutor?
Mesmo
dali, podiam-se ouvir seus gritos e gemidos dali, embora abafados pela distância.
—
Sim, eu a vi.
—
É minha irmã, doutor. — Há muitos anos, esses nobres têm direitos vergonhosos
sobre a modéstia e a virtude de nossas irmãs, porém há muitas moças honradas
entre nós. Eu sei disso, e também ouvi meu pai contar. Ela era uma boa moça. Estava
noiva de um bom homem, um dos vassalos desse aí. Todos nós somos seus vassalos.
O outro é seu irmão, o pior dessa raça maldita. Era com enorme dificuldade que
o rapaz reunia forças para falar. Contudo, seu espírito lhe conferia ânimo para
expressar-se com espantosa ênfase:
—
Fomos tão roubados por esse homem que aí vê como todos os servos idiotas são
explorados por esses “seres superiores”, obrigados a pagar impostos altos, a trabalhar
sem pagamento, a moer nosso milho no moinho deles, a alimentar suas galinhas
com a nossa colheita escassa, enquanto somos proibidos de criar sequer uma galinha
para nosso sustento; somos pilhados e saqueados a tal ponto que, quando acontece
de termos um pedaço de carne, nós o comemos amedrontados, e fechamos a porta e
as janelas para evitar que eles vejam e levem a carne embora. Enfim, fomos tão
roubados e perseguidos, e nos empobreceram tanto, que nosso pai nos disse que
era terrível colocar um filho no mundo e que devíamos rezar para que nossas mulheres
ficassem estéreis, acabando de uma vez com nossa espécie miserável!
Eu
jamais presenciara a consciência da opressão irrompendo com tamanha fúria. Eu
imaginava que tal consciência só existiria nas pessoas em estado latente e surpreendeu-me
vê-la manifestar-se, pela primeira vez, naquele rapaz moribundo.
—
Entretanto, doutor, minha irmã se casou. Seu noivo, coitado, estava doente, e
ela decidiu desposá-lo para cuidar-lhe da saúde em nossa cabana, nossa casa de
cachorro, como esse homem costuma chamar. Fazia poucas semanas do casamento quando
o irmão desse aí a viu e admirou, e pediu ao outro que a desse de presente para
ele, afinal, maridos da nossa laia não contam! Ele a desejava, mas minha irmã
era boa e virtuosa. Além disso, dedicava-lhe um ódio tão intenso quanto o meu.
O que fizeram os dois, então, para persuadir seu marido a usar de sua
influência e obrigá-la a ceder?
Os
olhos do rapaz, que se haviam fixado em mim, voltaram-se lentamente para o espectador
da cena e eu pude constatar que todas as suas palavras eram verdadeiras. Ainda
hoje, na Bastilha, vejo aquele confronto entre os dois tipos opostos de
orgulho. O do cavalheiro, desdenhoso e indiferente; o do camponês, espezinhado
e imbuído de uma apaixonada sede de vingança.
—
O senhor sabe, doutor, que faz parte dos “direitos” desses “nobres” atrelar cachorros
como nós a carroças para que as puxemos. Os dois atrelaram meu cunhado e o
fizeram carregá-los. O senhor também deve saber que faz parte dos “direitos”
desses “nobres” manter-nos em suas terras a noite inteira para aquietar as rãs,
a fim de que estas não lhes perturbem o sono. Eles o mantinham na névoa
insalubre durante a noite e atrelado à carroça durante o dia. Mas meu cunhado
não se deixou persuadir. Não!
Desatrelado,
certa vez, ao meio-dia, para almoçar, como se houvesse alguma coisa para comer,
ele soluçou doze vezes, uma para cada batida do sino, e morreu nos braços da
esposa.
Nenhuma
força humana poderia suster a vida do rapaz, exceto sua determinação em
denunciar as maldades dos gêmeos. O camponês afugentou as sombras da morte que o
envolviam, forçando o braço direito a proteger seu ferimento.
—
Então, com a permissão desse homem, e mesmo com a sua ajuda, o irmão levou-a
embora. A despeito de tudo quanto eu sei que ela lhe deve ter dito e que, se o senhor
ainda não sabe, doutor, logo saberá, ele a levou para se divertir por algum tempo.
Eu a vi passar por mim na estrada. Quando dei a notícia em casa, o coração de meu
pai não resistiu e ele morreu, levando consigo toda a dor que jamais expressou.
Levei
minha irmã mais nova (pois eu tenho outra) para um lugar fora do alcance desse homem,
onde, ao menos, ela jamais será vassala dele.
Então, segui o irmão até aqui e, ontem à noite, entrei, como um servo idiota,
mas de espada na mão. Onde fica a janela do sótão? Em que parede?
O
quarto escurecia aos seus olhos; o mundo se estreitava ao seu redor. Olhei em torno
e vi que a palha e o feno estavam esmagados, como se ali tivesse ocorrido uma luta.
—
Ela me ouviu e correu para dentro. Eu a adverti para que ficasse longe até ele morrer.
O homem entrou e, primeiro, atirou-me algumas moedas; depois, açoitou-me com o
chicote. Mas eu, embora seja um servo idiota, forcei-o a puxar da espada e
lutar.
Que
ele quebre em tantos pedaços quantos desejar a espada contaminada pelo meu sangue
comum. Ele a usou para defender-se, investiu sobre mim com toda a destreza de que
era capaz para se manter vivo.
Poucos
minutos antes, eu vislumbrara no meio do feno os fragmentos de uma espada
quebrada. Tratava-se da arma do cavalheiro. Em outro lugar, jazia uma velha espada
que parecia ter pertencido a um soldado.
—
Agora, levante-me, doutor, levante-me. Onde está ele?
—
Não está aqui — respondi, amparando-o, e deduzindo que se referisse ao irmão. —
Ele! Orgulhosos como são esses nobres, ele tem medo até de me ver. Onde está o
outro, o que estava aqui? Vire meu rosto em sua direção.
Para
fazer-lhe a vontade, suspendi sua cabeça e apoiei-a sobre meu joelho. Contudo,
tomado por uma repentina força, ele ergueu-se completamente, obrigando-me a
também me levantar, caso contrário não conseguiria sustentá-lo.
—
Marquês — disse o rapaz, fitando-o com os olhos arregalados e a mão direita em
riste —, quando chegar o dia de prestar contas sobre todas essas coisas, eu convoco
o senhor e todos os seus, até o último de sua maldita família, para responder por
elas. Traço esta cruz com sangue sobre o senhor, como um sinal de minha convocação.
Quando chegar o dia de prestar contas, eu convoco separadamente seu irmão, o
pior de sua maldita família, para responder em separado. E traço esta cruz com
sangue sobre ele, como um sinal.
Duas
vezes ele pôs a mão na ferida em seu peito e, com o dedo indicador, desenhou
uma cruz no ar. Quedou-se por um instante com o dedo erguido e, quando este tombou,
ele tombou junto e eu estendi seu corpo morto sobre a palha.
Quando
retornei ao leito da moça, encontrei-a gemendo e gritando do modo como a
deixara, na mesma sequência e com a mesma regularidade. Eu sabia que aquilo poderia
arrastar-se por muitas horas e que provavelmente terminaria no silêncio do túmulo.
Repeti
a dose do medicamento, sentei-me ao seu lado e lá fiquei até altas horas da noite.
Em nenhum momento seus gritos diminuíram de intensidade, nem a ordem de sua cantilena
se alterou. Era sempre “Meu marido, meu pai, meu irmão! Um, dois, três, quatro,
cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze. Shh!”.
A
crise durou vinte e seis horas a partir do instante em que cheguei àquela casa.
Eu saí e voltei duas vezes e estava de novo sentado ao seu lado quando ela
começou a vacilar.
Tomei
as poucas providências que podia para assisti-la naquela situação, e, pouco a
pouco, ela imergiu num estado de letargia, jazendo sobre o catre como morta. Era
como se o vento e a chuva por fim amainassem após uma tenebrosa e prolongada
tormenta. Eu lhe desamarrei os braços e chamei a criada para ajudar-me a endireitá-la
na cama e a recompor o vestido que ela rasgara. Foi então que descobri que seu
estado era aquele em que as primeiras expectativas de tornar-se mãe haviam surgido.
E foi então que perdi a pouca esperança que tinha de salvá-la.
—
Morreu? — indagou o marquês, a quem ainda me refiro como o mais velho, que
acabara de chegar a cavalo.
—
Ainda não — respondi —, mas está prestes.
—
Quanta resistência tem essa ralé! — ele comentou, contemplando-a com certa curiosidade.
—
Uma prodigiosa resistência — retruquei —, fruto do sofrimento e do desespero.
Primeiro,
ele riu de minhas palavras, mas logo franziu a testa. Com o pé, empurrou uma
cadeira para junto da minha. Em seguida, ordenou à mulher que saísse e, num tom
brando, disse:
—
Doutor, vendo meu irmão em apuros com esses camponeses, aconselhei-o a pedir-lhe
auxílio. Sua reputação é boa e, como um homem jovem que ainda precisa fazer
fortuna, o senhor, provavelmente, cuida bem de seus interesses. As coisas que presenciou
aqui não devem sair daqui. Eu observei a respiração da enferma e evitei retorquir.
—
O senhor poderia honrar-me com a sua atenção, doutor?
—
Monsieur — ripostei —, em minha
profissão, tudo o que se relaciona com os pacientes tem natureza sigilosa.
Minha resposta foi cautelosa, pois eu ainda me sentia perturbado com o que vira
e ouvira.
A
respiração dela era tão imperceptível que eu lhe tomei o pulso e auscultei-lhe
o coração. Havia um sopro de vida e nada mais. Olhando em torno, ao tornar a
sentar-me, constatei que os dois irmãos observavam-me atentamente.
***
Escrevo
com tanta dificuldade, o frio é tão rigoroso, tenho tanto medo de ser surpreendido
e encerrado numa cela subterrânea onde a escuridão é total, que eu devo abreviar
esta narrativa. Não há confusão nem falhas em minha memória. Lembro-me em detalhes
de cada palavra da conversa que mantive com aqueles irmãos.
A
enferma agonizou por uma semana. Já quase no fim, ela pronunciou algumas poucas
palavras que eu pude entender, aproximando meu ouvido de seus lábios. Perguntou-me
onde estava, e eu lhe disse. Indagou quem era eu, e respondi. Em vão lhe inquiri
seu sobrenome. Debilmente, ela balançou a cabeça sobre o travesseiro e guardou
seu segredo, como fizera o rapaz.
Não
tive oportunidade de fazer-lhe nenhuma pergunta até o dia em que informei aos
irmãos que ela estava por um triz, que não sobreviveria por muitas horas. Até então,
embora a paciente só se desse conta da presença da criada e da minha, um dos dois
sempre se sentava ciumentamente ao lado da cabeceira da cama quando eu estava no
quarto. Quando, porém, lhes fiz aquele comunicado, eles pareceram não se
importar mais com o que ela pudesse contar-me. Era como se, o pensamento
ocorreu-me, eu também fosse morrer.
Eu
observara que o orgulho deles se ressentia amargamente do fato de o mais novo
(como eu o chamo) haver terçado espadas com um camponês, e, pior, quase um garoto.
A única consideração que aparentemente os afetava era que o incidente, além de
degradante para a família, era ridículo. Sempre que eu fitava os olhos do mais
novo, sua expressão indicava o quanto ele me detestava por conhecer todo o
episódio.
Mostrava-se
mais brando e cortês para comigo do que o irmão. Mas eu lera a verdade em seus
olhos. E sabia que o mais velho considerava-me um estorvo. Minha paciente
morreu duas horas antes da meia-noite, horário que, pelo meu relógio,
correspondia àquele em que a vi pela primeira vez. Eu estava sozinho com ela quando
seu desolado rosto pendeu para um lado e todos os seus erros e sofrimentos terrenos
cessaram.
Os
irmãos esperavam numa sala do andar inferior, impacientes para montar em seus
cavalos e partir. Eu os escutara, sozinho ao lado da cama, andando ruidosamente
de um lado para o outro.
—
Morreu, afinal? — indagou o mais velho, quando eu desci.
—
Morreu.
—
Congratulações, meu irmão — foram suas palavras ao virar as costas.
Antes,
ele me oferecera dinheiro, porém eu adiara o assunto. Agora, ele me ofertava um
rouleau de ouro. Eu o apanhei
de suas mãos e pousei-o sobre a mesa. Eu tinha debatido a questão e resolvera
não aceitar nada.
—
Rogo-lhe que me desculpe, mas, nestas circunstâncias, não. Recusei.
Os
dois se entreolharam em silêncio, inclinaram a cabeça para mim como eu inclinei
a minha para eles e nos separamos sem que nenhum de nós proferisse qualquer palavra.
Estou
exausto, exausto, exausto, abatido pelo sofrimento. Não consigo ler o que escrevi
com esta mão descarnada.
Bem
cedo, na manhã seguinte, o rouleau de
ouro foi deixado em minha porta, dentro de uma pequena caixa gravada com o meu
nome. A princípio, refleti com ansiedade sobre o que devia fazer. Decidi,
naquele dia, escrever secretamente ao ministro, descrevendo a natureza dos dois
casos para os quais fui chamado: na verdade, descrevendo todas as
circunstâncias. Eu sabia que influência a corte exercia, e que imunidades os
nobres possuíam, e achava que nunca mais se tocaria no assunto.
Contudo,
precisava aliviar a minha consciência. Eu mantivera o mais profundo sigilo, nada
revelando nem à minha esposa. E isso, também, declarei em minha carta. Não temia
nenhum perigo real para mim, mas estava ciente de que podia haver algum perigo para
outras pessoas, se estas tivessem conhecimento dos fatos.
Eu
estive muito ocupado o dia inteiro e não pude terminar a carta aquela noite.
Levantei-me
mais cedo do que o habitual, no dia seguinte, para concluí-la. Era o último dia
do ano. A carta jazia à minha frente, terminada, quando fui informado de que
uma dama desejava ver-me.
Torno-me
cada vez mais instável na tarefa a que me propus. Está demasiado frio, demasiado
escuro, meus sentidos se entorpeceram demais e a melancolia que me envolve é
demasiado tenebrosa.
A
dama era nova, atraente e bonita, mas não destinada a uma longa vida. Mostrava-se
muito agitada. Apresentou-se como a esposa do marquês de Saint Evrémonde.
Associei o título àquele utilizado pelo camponês quando se dirigira ao mais
velho dos irmãos e com a inicial bordada na echarpe, e, assim, não tive dificuldade
em deduzir que tinha encontrado o nobre em questão recentemente.
Minha
memória continua acurada, mas não posso transcrever todas as palavras de nosso
diálogo. Suspeito que sou agora vigiado com maior rigor, e não sei em que momentos
do dia ou da noite.
Ela
havia em parte desconfiado e em parte descoberto os fatos principais da cruel história,
sabia que seu marido tomara parte nela e também que me tinham chamado. Ignorava,
porém, que a moça estava morta. Esperara poder, confessou-me com grande tristeza,
demonstrar-lhe, em segredo, sua solidariedade feminina. E acalentara a esperança
de afastar a cólera celeste de uma família que se tornara odiosa em consequência
dos sofrimentos que infligia.
Ela
dispunha de razões para acreditar que restara uma irmã viva e seu maior desejo
era ajudá-la. Eu só lhe pude confirmar a existência dessa irmã, pois nada mais sabia
a respeito. O que a induzira a procurar-me, contando com a minha confiança, era
a esperança de que eu lhe pudesse dizer o nome e o endereço da menina. Eu, infelizmente,
desconhecia tanto um como outro.
Faltam-me
folhas de papel. Ontem, tiraram-me uma, com uma advertência. Devo encerrar meu
relato hoje.
A
marquesa era uma dama bondosa, compassiva, que não era feliz no casamento. Como
poderia sê-lo! O cunhado não confiava nela e a detestava, empregando toda a sua
influência para prejudicá-la. A pobre senhora temia-o, e também ao marido. Quando
a acompanhei até a porta, uma criança a aguardava na carruagem, um lindo garotinho
de dois ou três anos.
—
Pelo bem dele, doutor — ela disse, apontando-o com os olhos cheios de lágrimas
—, eu farei tudo o que estiver ao meu alcance para compensar o mal causado pela
minha família. Meu filho jamais prosperaria com tão terrível herança. Tenho o pressentimento
de que, se esse mal não for expiado, um dia pedirão contas a ele. Tudo o que
posso chamar de meu pouco mais do que algumas jóias, eu lhe legarei para que entregue,
com a compaixão e o pesar de sua falecida mãe, a essa família injuriada, caso a
menina seja encontrada.
Ela
beijou o garoto e indagou, afagando-o:
—
É para a sua própria felicidade. Será fiel a essa promessa, pequeno Charles?
A
criança respondeu com bravura:
—
Sim.
Beijei a mão da senhora, que tomou o filho nos
braços e continuou a afagá-lo. Nunca mais tornei a vê-la.
Já
que ela mencionara o nome do marido na crença de que eu já o soubesse, não acrescentei
nenhuma menção sobre isso em minha carta. Selei o envelope e, não podendo
confiar em outras mãos, entreguei-a pessoalmente naquela tarde.
Naquela
noite, a última do ano, por volta de nove horas, um homem com trajes negros
bateu à minha porta, pediu para ver-me e seguiu meu criado, Ernesto Defarge, que
era então um rapazote, pela escada. Quando Defarge entrou no aposento onde me encontrava
com minha esposa, oh, minha esposa, querida do meu coração! Minha bela e jovem
esposa inglesa!, nós vimos o homem, que julgávamos estar ao portão, postado em
silêncio atrás do criado.
—
Um caso urgente na rua Saint Honoré — ele anunciou. — Tenho aí uma carruagem à
espera e logo o senhor estará de volta.
Aquela
carruagem me trouxe para cá, para o meu túmulo. Assim que perdemos minha casa
de vista, cobriram-me a boca com uma faixa e ataram-me os braços atrás das
costas.
Os
dois irmãos saíram de uma escura esquina e, atravessando a rua, identificaram-me
com um simples gesto. O marquês tirou do bolso a carta que eu havia escrito, mostrou-me,
queimou-a à luz de um lampião e afastou as cinzas com os pés. Nem uma palavra
fora pronunciada. Fui trazido para cá, para ser enterrado vivo.
Se
aprouvesse a Deus colocar no duro coração de um dos dois irmãos, em todos estes
terríveis anos, a idéia de enviar-me notícias de minha amada esposa, de deixa-me
saber, ao menos, se está morta ou se ainda vive, julgaria que o Senhor não os
havia abandonado de todo. Agora, porém, acredito que a marca da cruz sangrenta
lhes será fatal e que não partilham da misericórdia divina. E a eles, bem como
a seus descendentes, até o último da família, eu, Alexandre Manette, infeliz
prisioneiro, nesta última noite do ano de 1767, em minha insuportável agonia,
denuncio para que prestem contas quando chegar o tempo de responder por todas
essas coisas. Eu os denuncio aos céus e à terra.”
Um tremendo alarido ergueu-se quando a leitura do
documento foi concluída. Era um som de ânsia e impaciência que nada tinha de
articulado, senão a palavra “sangue”. A narrativa fizera surgir a mais
vingativa das paixões de todos os tempos, e não havia uma só cabeça na França
que se sustentasse diante dela.
Ocioso explicar, tendo em vista aquele tribunal e
aquela platéia, por que os Defarge não haviam divulgado o documento junto com
os outros encontrados na Bastilha, escondendo-o até aquele dia. Como também é
desnecessário explicar por que esse detestado sobrenome havia muito fora
excomungado por Santo Antônio e inscrito no registro fatal. Uma vida inteira de
virtudes e bons serviços não era suficiente, naquele dia, para defender um
homem contra tal denúncia.
Tanto pior, para o infeliz prisioneiro, que o
denunciante fosse um cidadão conhecido, seu próprio e íntimo amigo, o pai de
sua esposa. Uma das aspirações mais exaltadas da população consistia em imitar
as questionáveis virtudes públicas da Antiguidade, e promover sacrifícios e
auto-imolações no altar do povo. Por esse motivo, quando o presidente do júri
declarou (se não o fizesse, não teria a cabeça segura sobre os ombros) que o
bom médico da República seria ainda mais digno dela por colaborar para a
erradicação de uma odiosa família de aristocratas e que, sem dúvida, sentiria
um sagrado júbilo ao tornar sua filha viúva e sua neta, órfã, suas palavras
provocaram uma selvagem excitação e um fervor patriótico e nenhum toque de compaixão.
— Grande influência em seu favor? — murmurou madame
Defarge, sorrindo para “A Vingança”. — Salve-o agora, meu doutor, salve-o!
A cada voto dos jurados correspondia um clamor. E
outro, e mais outro. Clamor e clamor.
Votação unânime. No coração e por descendência um
aristocrata, um inimigo da República, um notório opressor do Povo. De volta
para a Conciergerie, e morte em vinte e quatro horas!
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