Capítulo XLI - Anoitecer

A infeliz esposa do inocente condenado à morte curvou-se, ao ouvir a sentença, como se atingida por um golpe mortal. Não proferiu, contudo, uma só palavra. Tão forte era a voz interior que a aconselhava a amparar o marido naquele momento terrível, em vez de aumentar-lhe o sofrimento, que ela reagiu contra o choque.
Como os juízes deviam tomar parte numa manifestação pública, as sessões seguintes do tribunal foram adiadas. O alarido e a movimentação provocados pelo apressado esvaziamento da corte, através das várias portas, ainda não havia cessado quando Lucie deteve-se em frente ao banco dos réus e estendeu os braços para Charles, com o semblante nada expressando além de amor e consolo.
— Se eu pudesse tocá-lo! Se o pudesse abraçar ao menos uma vez! Oh, bons cidadãos, suplico-lhes que tenham compaixão!
Apenas um dos carcereiros permanecera ali, além de dois dos quatro homens que prenderam Charles na noite anterior e de Barsad. Todos os demais haviam saído para assistir ao espetáculo nas ruas. Barsad propôs aos companheiros:
— Deixem-na abraçar o marido. É apenas um momento.
Os outros aquiesceram silenciosamente e ajudaram-na a saltar sobre os bancos do pretório até o tablado onde ele, inclinando-se sobre a grade, pôde apertá-la nos braços.
— Adeus, amada da minha alma. Aceite a minha última bênção. Nós nos tornaremos a encontrar ali onde repousam os cansados!
Essas foram as palavras de Charles Darnay, ao aconchegá-la junto ao peito.
— Eu posso suportar, Charles querido. Tenho o amparo de Deus, por isso não sofra por mim. Conceda sua derradeira bênção à nossa filha.
— Abençoe-a e dê-lhe um beijo em meu nome. Diga adeus a ela por mim.
— Meu marido. Não! Um momento mais! — Ele se estava afastando dela. — Não ficaremos separados por muito tempo. Sinto que meu coração se despedaçará, mas cumprirei meu dever enquanto tiver forças. E quando eu deixar nossa filha, Deus lhe dará amigos como os deu a mim.
Seu pai a havia seguido e se teria ajoelhado perante ambos se Darnay não o impedisse, segurando-o e bradando:
— Não, não. Por que se ajoelharia diante de nós? O senhor nada fez de mal, não há por que sentir-se culpado. Sabemos agora da luta que teve de enfrentar e o quanto sofreu quando suspeitou de meu nome de família. Compreendemos a antipatia instintiva que sentiu por mim, a princípio, e que conseguiu vencer, por amor a Lucie. Nós lhe agradecemos de coração, com nosso amor e respeito. Que o céu o proteja!
Por única resposta, o doutor levou as mãos aos cabelos brancos, soltando um grito de angústia.
— Não podia ser de outro modo — prosseguiu o prisioneiro. — Todas as circunstâncias contribuíram para esse resultado. Foi o meu inútil esforço para cumprir o último desejo de minha pobre mãe que guiou minha presença fatal até o senhor. O bem jamais resultaria do mal, nem se poderia esperar que tão infeliz começo conduzisse a um final feliz. Conforme-se e perdoe-me. Deus o abençoe!
A esposa desprendeu-se dele ao ver que o vinham buscar. Fitou-o de mãos postas em atitude de prece e, no momento em que o marido se afastou, iluminou o semblante com um sorriso confortador. Vendo-o desaparecer na porta reservada aos prisioneiros, virou-se, apoiou ternamente a cabeça no peito do pai, tentou falar-lhe e caiu, desfalecida, a seus pés.
Então, saindo do canto escuro da sala onde se ocultara, Sydney Carton correu e tomou-a nos braços. Somente o pai e o senhor Lorry estavam com ela. O braço de Carton tremeu ao erguê-la do chão. A compaixão que se lia em seu rosto não era, contudo, desprovida de laivos de orgulho.
— Devo levá-la a um coche? — disse consigo mesmo. — Nunca senti a leveza de seu corpo.
Transportou-a com infinito cuidado e deitou-a sobre as almofadas do coche. O doutor Manette e seu velho amigo Lorry também entraram e ele acomodou-se ao lado do cocheiro.
Quando chegaram ao portão onde, apenas algumas horas antes, ele se detivera, tentando adivinhar na escuridão da noite em que pedras ela deixara a marca de seus passos, Carton tornou a erguê-la nos braços e carregou-a pela escada até seus aposentos. Depositou-a sobre um divã e, imediatamente, a filha e a senhorita Pross a rodearam.
— Não a chamem de volta a si — ele advertiu a senhorita Pross com brandura —, ela está melhor assim, na inconsciência de seu sofrimento
— Oh, senhor Carton, querido senhor Carton! — chorava a pequena Lucie, enlaçando-o, comovida, numa explosão de dor. — Agora que veio, acho que fará alguma coisa para ajudar mamãe e para salvar papai! Oh, olhe para ela, querido senhor Carton! Pode o senhor, entre todas as pessoas que a amam, suportar vê-la nesse estado?
Ele curvou-se para a menina e encostou a face no rostinho rosado. Em seguida, afastando-a brandamente, contemplou a mãe desfalecida.
— Antes que eu me vá — Carton fez uma pausa —, será que posso beijá-la?
Lembraram-se depois de tê-lo ouvido murmurar algumas palavras, quando se inclinou para tocar-lhe a face com seus lábios. A menina, que estava mais perto dele, contou-lhes depois, como contou também na sua velhice aos netinhos, que o ouvira proferir essas palavras: “Por uma vida que lhe é tão cara”.
Ao sair do quarto, encontrou-se de súbito com o senhor Lorry e o doutor e disse a este:
— Exerceu grande influência ontem, doutor Manette. Experimente exercê-la hoje novamente. Os juízes e todos esses homens que ocupam o poder o apreciam e são-lhe gratos por seus serviços, não é verdade?
— Bem, eles não esconderam de mim nada que se referisse a Charles. Eu tinha plena certeza de que o salvaria e o fiz — ele respondeu, perturbado, falando vagarosamente.
— Tente de novo. São poucas as horas de que dispomos, mas tente assim mesmo.
— É essa a minha intenção. Não descansarei um momento sequer.
— Muito bem. Já vi antes pessoas com uma energia como a sua levarem a cabo grandes empreendimentos, embora nenhum... — acrescentou com um suspiro e um leve sorriso — ...tão grande assim. Mas, tente! Por menos valor que tenha a vida quando é desperdiçada, vale, contudo, a pena defendê-la. Se assim não fosse, não custaria abandoná-la.
— Eu irei — anunciou o médico — direto ao promotor e ao presidente e procurarei outras pessoas que prefiro nem nomear. Também escreverei e... Espere! Há uma demonstração pública nas ruas. Não encontrarei ninguém antes do anoitecer.
— Tem razão. Bem! As esperanças são tão poucas que esse atraso não prejudica muito. A que horas julga que terminarão as entrevistas com todas essas temíveis autoridades, doutor Manette?
— Logo após o anoitecer, espero. Dentro de uma ou duas horas.
— Escurecerá pouco depois das quatro. Vamos estender essas duas horas. Se eu for à casa do senhor Lorry por volta das nove, acha que já terei notícias do que conseguiu, por seu intermédio ou de seu amigo?
— Sem dúvida.
— Então, boa sorte!
O senhor Lorry acompanhou Sydney Carton até a porta da rua e, pousando a mão em seu ombro, fez que ele se virasse.
— Não tenho a menor esperança — confidenciou o senhor Lorry num murmúrio tristonho.
— Nem eu, tampouco.
— Se esses homens estivessem dispostos a poupá-lo, o que é supor muito, pois o que representa a vida de Darnay, ou a de qualquer outro, para eles?, duvido que ousassem libertá-lo, depois daquela demonstração de júbilo no tribunal.
— Sou da mesma opinião. Ouvi o ruído do cutelo naquele alarido.
O senhor Lorry apoiou o braço no umbral e curvou a cabeça.
— Não se deixe abater — disse Carton com delicadeza —, não se atormente. Encorajei o doutor Manette a agir porque senti que isso talvez um dia sirva de consolo para sua filha, para que ela jamais se aflija com a idéia de que “a vida dele foi cruelmente atirada fora”.
— Sim, sim, tem razão — concordou o senhor Lorry, enxugando os olhos —, porém Charles morrerá de qualquer maneira. Não resta nenhuma esperança.
— Sim. Ele morrerá, não há mais nenhuma esperança — ecoou Carton. E desceu a escada com passo firme.

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