Capítulo XLIV - Encerra-se o Tricô

No mesmo momento em que os cinqüenta e dois aguardavam seu destino, madame Defarge reunia-se em sinistro conclave com “A Vingança” e Jacques terceiro, membro do júri revolucionário. A reunião de madame Defarge com seus ministros não se realizava na taberna, mas na oficina do serrador, outrora reparador de estradas. O próprio serrador não participaria da conferência, mas aguardaria a pequena distância, como um subalterno que não devia abrir a boca, a menos que recebesse ordens nesse sentido, nem externar opiniões, exceto se lhas pedissem.
— Mas será que o nosso Defarge — questionou Jacques terceiro — é, sem sombra de dúvida, um bom republicano? Será?
— Não há outro melhor — protestou a volúvel “Vingança” com a sua voz estridente — na França.
— Acalme-se, pequena “Vingança” — interveio madame Defarge, pousando a mão nos lábios de sua “tenente” com a testa ligeiramente franzida —, deixe-me falar. Meu marido, companheira cidadã, é um bom republicano e um homem destemido; ele merece muito da República e conta com a sua confiança. Contudo, meu marido tem suas fraquezas, como, por exemplo, apiedar-se do doutor.
— É uma pena — cacarejou Jacques terceiro, sacudindo a cabeça e enfiando os dedos irrequietos na boca voraz —, mas isso não é próprio de um bom cidadão. É lamentável.
— Vejam — prosseguiu madame —, eu não me importo nada com esse doutor. Ele pode preservar a cabeça ou perdê-la, não me interessa. Para mim, eles são todos iguais. Entretanto, a família de Evrémonde tem de ser exterminada. A mulher e a filha devem segui-lo.
— Ela tem uma bela cabeça para a guilhotina — cacarejou Jacques terceiro. — Tenho visto olhos azuis e cabelos dourados lá, e essas cabeças ficam muito charmosas quando Sansão as levanta no ar — embora não passasse de um ogro, falava como um epicurista.
 Madame Defarge baixou os olhos e refletiu por um momento.
— A criança também — comentou Jacques terceiro, saboreando as palavras — possui cabelos dourados e olhos azuis. E nós raramente temos uma criança lá. É um belo espetáculo.
— Resumindo — observou madame Defarge, voltando de seu curto momento de abstração —, não posso confiar em meu marido no que se refere a esse assunto. Desde ontem à noite, sinto que não devo revelar-lhe detalhes do meu plano; mas também sinto que, se eu demorar para colocá-lo em prática, existe o risco de ele avisá-los a fim de que fujam.
— Isso não pode acontecer — cacarejou Jacques terceiro. — Ninguém pode escapar. Ainda não eliminamos nem metade do que pretendemos. Precisamos elevar o número de execuções para cento e vinte por dia.
— Resumindo — madame Defarge continuou —, meu marido não possui as minhas razões para perseguir essa família até o extermínio total, e eu não tenho as razões dele para me sensibilizar com o doutor. Portanto, devo agir por conta própria. Venha aqui, pequeno cidadão.
O serrador, que lhe devotava um grande respeito e obedecia-lhe sempre com extrema submissão, tomado por um medo mortal daquela mulher, avançou com o barrete vermelho nas mãos.
— Quanto àqueles sinais e acenos, pequeno cidadão — indagou madame Defarge, com severidade —, que a viu fazer aos prisioneiros, está pronto para descrevê-los sob juramento hoje mesmo?
— Ai, ai, por que não?! — bradou o serrador. — Todos os dias, qualquer que fosse o tempo, das duas às quatro horas, sempre acenando, às vezes em companhia da criança, quase sempre sozinha. Eu sei o que sei. E vi com estes dois olhos.
Ele produziu todo o tipo de gestos enquanto falava, como se num incidental mostruário da grande diversidade de sinais que conhecia.
— Claramente uma conspiração — afirmou Jacques terceiro. — Clara e cristalinamente!
— Posso contar com o júri? — inquiriu madame Defarge, voltando-se para ele com um sorriso sombrio.
— Confie no patriótico júri, querida cidadã. Eu respondo por meus companheiros jurados.
— Agora, deixe-me ver... — ponderou madame Defarge, tornando a se abstrair.
— Pela última vez! Posso poupar esse doutor, para satisfazer meu marido? Eu não me importo, de qualquer modo. Posso poupá-lo?
— Seria uma cabeça a menos — argumentou Jacques terceiro em voz baixa. — Nós realmente não dispomos de cabeças suficientes. Em minha opinião, seria uma pena.
— Ele também estava acenando, junto com ela, quando a vi — refletiu madame Defarge. — É impossível denunciá-la sem mencionar o pai. E não me posso calar, entregando o caso nas mãos desse pequeno cidadão aqui. Afinal, não seria má testemunha.
“A Vingança” e Jacques terceiro rivalizaram entre si nos protestos fervorosos de que ela seria a mais admirável e maravilhosa das testemunhas. O pequeno cidadão, para não ficar por baixo, proclamou-a uma testemunha celestial.
— O doutor que se arranje como puder — concluiu madame Defarge. — Não, eu não posso poupá-lo! Você tem compromisso às três horas, deve acompanhar a fornada de hoje. E você... irá?
A pergunta endereçava-se ao serrador, que apressouse a ripostar afirmativamente, aproveitando a oportunidade para acrescentar que ele era o mais ardente dos republicanos, e que se tornaria o mais desolado entre todos se qualquer coisa o impedisse de desfrutar o prazer de fumar seu cachimbo na contemplação do simpático barbeiro nacional. Seu entusiasmo era tão efusivo que poderia ter despertado suspeitas (e talvez as tivesse despertado, a julgar pelo olhar desdenhoso de madame Defarge) de que ele nutrisse, todo o tempo, seus pequenos e individuais temores quanto à própria segurança.
— Eu também — disse madame — tenho compromisso no mesmo local. Depois que acabar, lá pelas oito da noite, venha ver-me em Santo Antônio e nós denunciaremos aquelas pessoas ao meu distrito.
O serrador declarou-se lisonjeado e orgulhoso por servir à cidadã. A cidadã fitou-o, e ele, embaraçado, evadiu-se de seu olhar como um cachorrinho teria feito, retirou-se para junto de sua madeira e ocultou sua confusão curvando-se sobre o cabo da serra.
Madame Defarge acenou para que o jurado e “A Vingança” se aproximassem um pouco mais da porta e lhes expôs suas intenções nos seguintes termos:
— Ela agora deve estar em casa, aguardando o momento da morte do marido. Com certeza, lamenta-se, chora, enfim: encontra-se num estado de espírito que a justiça da República não admite. Ela decerto tem pena dos inimigos do povo. É um bom momento para visitá-la.
— Que mulher extraordinária! Adorável! — exclamou Jacques terceiro, extasiado.
— Ah, minha estimada! — bradou “A Vingança”, abraçando-a.
— Leve o meu tricô — pediu madame Defarge, colocando o trabalho nas mãos de sua “tenente” —, e guarde a minha cadeira favorita. Vá direto para lá, pois hoje estará mais apinhado do que de hábito.
— De bom grado obedeço às ordens de minha chefe — retrucou “A Vingança” com alacridade, antes de beijá-la no rosto. — Você vai demorar?
— Estarei lá antes que o espetáculo comece.
— E antes que os carros fúnebres cheguem. Trate de aparecer, meu anjo — recomendou “A Vingança”, correndo atrás dela, pois madame já alcançara a rua —, antes das carroças!
Madame Defarge acenou de leve para indicar que ouvira e que pretendia chegar cedo, e continuou sua marcha através do barro, contornando o muro da prisão. “A Vingança” e o jurado, contemplando-a afastar-se, admiravam-lhe a bela figura e os soberbos atributos morais.
Havia muitas mulheres, naquela época, a quem o tempo impunha medonhas deformações; nenhuma delas, porém, era tão temível quanto aquela implacável mulher que agora caminhava pelas ruas. Dotada de um caráter forte e intrépido, de perspicácia e disposição, de uma grande determinação, de um tipo de beleza que não só parecia revelar-lhe a firmeza e animosidade mas também despertar nos outros um instintivo reconhecimento dessas qualidades. O conturbado tempo a teria contaminado, sob quaisquer circunstâncias. Contudo, imbuída desde a infância de um crescente ressentimento e de um ódio inveterado contra a aristocracia, a ocasião transformara-a numa tigresa. Ela era absolutamente destituída de compaixão. Se algum dia abrigou essa virtude, perdera-a em definitivo havia muito.
Nada significava, para ela, que um inocente morresse pelos pecados de seus antepassados. Ela não o enxergava, mas sim a eles. Nada significava, para ela, que sua esposa enviuvasse e que sua filha se tornasse órfã. A punição ainda lhe parecia insuficiente, porque eles eram seus inimigos naturais, suas presas, e, como tais, não tinham direito à vida. Apelar para ela resultava inútil, pois era incapaz de um gesto de misericórdia, nem para consigo mesma. Se houvesse tombado nas ruas, num dos tantos embates de que tomou parte, não teria sentido pena de si própria. E se a enviassem para o cadafalso no dia seguinte, não acalentaria outro sentimento que não o feroz desejo de trocar de lugar com a pessoa que a enviara.
Tal era o coração que batia sob o modesto vestido de madame Defarge. Negligentemente usado, transformava-se cada vez mais numa túnica sinistra; seus cabelos escuros pareciam fartos debaixo do grosseiro barrete vermelho. Escondida em seu seio, havia uma pistola carregada; oculta em sua cintura, uma adaga afiada. Assim armada, e caminhando com o andar confiante típico de um tal caráter, e com a flexível liberdade de uma mulher que habitualmente caminhara na infância, descalça, pela areia da praia, madame Defarge avançava pelas ruas.
Naquele exato instante, os viajantes aguardavam que se empilhasse a bagagem sobre o coche para iniciar a longa jornada. Ao planejá-la, na véspera, o senhor Lorry debateu-se com a dificuldade de levar a senhorita Pross. Não se tratava apenas da necessidade de não sobrecarregar a carruagem, mas era da mais alta importância que o tempo gasto em examinar o carro e seus passageiros fosse o menor possível, já que sua fuga poderia depender dos segundos que ganhassem aqui e ali. Por fim, ele propôs, depois de ansiosas reflexões, que a senhorita Pross e Jerry, que estavam liberados para deixar a cidade a qualquer momento, partissem às três horas no veículo mais ligeiro conhecido na época. Desembaraçados das malas, eles logo ultrapassariam o coche, e, chegando antes à estalagem, poderiam providenciar a troca dos cavalos com antecedência, poupando-lhes minutos preciosos e facilitando-lhes o avanço durante as horas da noite, quando qualquer atraso era mais perigoso.
Vendo nesses arranjos a esperança de prestarem um serviço real naquela emergência, a senhorita Pross concordou com satisfação. Ela e Jerry viram o coche sair, e, sabendo quem era o homem que Solomon trouxera, tinham se torturado por dez minutos com o suspense. Agora, concluíam os preparativos para seguir o coche, enquanto madame Defarge, caminhando pelas ruas, aproximava-se mais e mais da casa quase deserta.
— O que acha, senhor Cruncher — indagou a senhorita Pross, cuja agitação era tão grande que mal lhe permitia falar, respirar, mover-se, ou viver —, da idéia de não partirmos daqui do pátio? Outra carruagem já saiu daqui hoje, os vizinhos podem desconfiar.
— Minha opinião, senhorita — respondeu o senhor Cruncher — é a de que está coberta de razão. E mesmo que não estivesse, eu concordaria.
— Estou tão avoada, temendo e rezando por eles — volveu a senhorita Pross, chorando copiosamente. —, que me sinto incapaz de traçar qualquer plano de ação. Será que o senhor é capaz de traçar um plano, meu caro e bondoso senhor Cruncher?
— Quanto ao meu futuro, senhorita — retrucou o senhor Cruncher —, espero que sim. Quanto ao presente, porém, acho que a minha fraca inteligência não tem capacidade para nada. Poderia prestar-me o favor, senhorita, de ouvir e registrar duas promessas e votos que faço em meio a esta crise?
— Oh, pelo amor de Deus! — bradou a senhorita Pross, ainda chorando copiosamente — Fale de uma vez, e seja breve, como um bom homem.
— A primeira — proclamou o senhor Cruncher, que tremia inteiro, em tom solene — é que, se os nossos queridos amigos escaparem dessa, eu nunca mais... farei aquilo, nunca mais!
— Estou absolutamente certa, senhor Cruncher — comentou a senhorita Pross — que nunca mais fará aquilo, seja lá o que for, e lhe suplico que não entre em detalhes a esse respeito.
— Não, senhorita — replicou Jerry —, isso não pode ser dito na sua frente. A segunda é que, se os nossos pobres amigos escaparem dessa, eu jamais voltarei a interferir nas orações da senhora Cruncher, jamais!
— Seja lá o que esse arranjo doméstico signifique — tornou a senhorita Pross, esforçando-se para secar os olhos e recompor-se —, não tenho dúvidas de que é melhor que a senhora Cruncher possa decidir por si própria sobre esses assuntos. Oh, meus pobres queridos!
— E digo mais, senhorita — prosseguiu o senhor Cruncher, com uma alarmante tendência a pregar como se estivesse num púlpito —, escreva essas minhas palavras e leve-as para a senhora Cruncher, que minha opinião a respeito das orações dela mudou tanto que espero, de todo o coração, que a senhora Cruncher esteja neste momento ajoelhada rezando por nós.
— Também espero, meu caro — soluçou a avoada senhorita Pross —, como espero que suas preces sejam atendidas.
— Queira Deus — continuou o senhor Cruncher, com maior solenidade, maior lentidão e maior tendência a continuar discursando — que tudo quanto fiz e disse seja perdoado em vista da sinceridade dos meus votos por aqueles nossos pobres amigos! Devíamos todos pedir a Deus de joelhos (se for de algum modo conveniente) para salvá-los do terrível perigo! Que Deus o permita, senhorita! Eu insisto, que Deus o per... mi... ta! — essa foi a peroração do senhor Cruncher, após um prolongado e vão esforço para encontrar um final melhor. Enquanto isso, madame Defarge, caminhando pelas ruas, aproximava-se mais e mais.
— Se conseguirmos regressar ao nosso país — redargüiu a senhorita Pross —, pode confiar que contarei à senhora Cruncher tudo o que eu for capaz de entender e lembrar das palavras que o senhor tão impressionantemente proferiu aqui. E asseguro-lhe que prestarei meu testemunho da sua sinceridade neste momento tão difícil. Agora, suplico-lhe, vamos pensar! Meu estimado senhor Cruncher, vamos pensar! Enquanto isso, madame Defarge, ainda caminhando pelas ruas, aproximava-se mais e mais.
— Se o senhor fosse na frente — sugeriu a senhorita Pross — e detivesse o veículo e os cavalos para que, em vez de virem até aqui, aguardassem-me em outro lugar... não seria melhor? O senhor Cruncher concordou que seria melhor.
— Onde o senhor pretende esperar-me? — inquiriu a senhorita Pross.
O senhor Cruncher estava tão desorientado que não conseguiu lembrar-se de outro local além de Temple Bar. Ai dele! Temple Bar ficava a centenas de quilômetros de distância, e madame Defarge estava realmente bem perto.
— Na porta da catedral — propôs a senhorita Pross. — Ficaria muito fora do caminho, se me aguardasse próximo da porta da grande catedral, entre as duas torres?
— Não, senhorita — respondeu o senhor Cruncher.
— Neste caso, como o melhor dos homens — rogou à senhorita Pross —, corra direto até a posta e diga-lhes para mudar o itinerário.
— Não tenho certeza — hesitou o senhor Cruncher, sacudindo a cabeça — se devo deixá-la sozinha, entende? Não sabemos o que pode acontecer.
— Só Deus sabe o que pode acontecer — retrucou a senhorita Pross —, mas não tema por mim. Apanhe-me na catedral às três horas. Estou convencida de que será melhor assim. Agora, vá! Boa sorte, senhor Cruncher, Deus o proteja! Pense... não em mim, mas nas vidas que dependem de nós!
Esse exórdio, bem como o fato de que a senhorita Pross agarrara-lhe o braço com as duas mãos numa súplica angustiada, decidiu o senhor Cruncher. Tomar aquela precaução, que já estava sendo executada, representou um grande alívio para a senhorita Pross. A necessidade de recompor sua aparência de forma a não chamar atenção nas ruas constituiu outro motivo de alívio. Consultou o relógio e verificou que passavam vinte minutos das duas horas. Não tinha tempo a perder, precisava aprontar-se imediatamente.
Receando, em seu extremo nervosismo, a solidão dos aposentos desertos, e as imaginadas faces que a estariam espreitando por trás de cada porta aberta, a senhorita Pross encheu uma bacia com água e começou a banhar os olhos vermelhos e inchados.
Assombrada por suas alucinações febris, ela não suportava ficar com a vista obscurecida pela água; por esse motivo, interrompia-se constantemente e voltava a cabeça para certificar-se de que não a espionavam. Numa dessas interrupções, recuou e soltou um grito, pois acabara de avistar uma figura no meio da sala.
A bacia caiu no chão, espatifando-se, e a água derramada alcançou os pés de madame Defarge. Aqueles pés haviam percorrido um estranho e implacável caminho, através de muitas manchas de sangue, para encontrar aquela água límpida.
Madame Defarge fitou-a com frieza e inquiriu:
— Onde está a esposa de Evrémonde?
Como um raio, ocorreu à senhorita Pross a idéia de que as portas abertas poderiam sugerir a fuga. Sua primeira reação foi correr para cerrá-las. Havia quatro portas que se comunicavam com a sala, e ela fechou-as todas. Então, postou-se à frente da porta do quarto que Lucie ocupara.
Os olhos escuros de madame Defarge seguiram-lhe os apressados movimentos e permaneceram sobre a governanta quando esta terminou. Nada havia de gracioso na senhorita Pross; os anos não lhe tinham domado o aspecto selvagem, nem suavizado a severidade de seu semblante. Contudo, ela também era uma mulher determinada, a seu modo, e mediu madame Defarge com os olhos, centímetro por centímetro.
— Pelo seu aspecto, a senhora bem pode ser a mulher de Lúcifer — comentou, ofegando. — Mesmo assim, não levará a melhor, desta vez. Eu sou uma inglesa.
Madame Defarge olhou-a com desdém, embora também com uma expressão que fez a senhorita Pross perceber que ela também estava acuada. Madame Defarge via na senhorita Pross uma rígida, sólida, vigorosa mulher, como o senhor Lorry, muitos anos antes, vira na mesma figura uma mulher de mão forte. Ela sabia bem que a senhorita Pross era a devotada amiga da família. E a senhorita Pross sabia bem que madame Defarge era a malévola inimiga da família.
— A caminho do lugar onde — disse madame Defarge, apontando ligeiramente para o local fatídico — tenho uma cadeira reservada e o meu tricô à minha espera, resolvi parar para cumprimentar a esposa de Evrémonde. Quero vê-la.
— Sei que suas intenções são maldosas — replicou a senhorita Pross — e você pode apostar que lutarei contra elas.
Cada uma falava em seu próprio idioma. Nenhuma entendia as palavras da outra. Ambas mostravam-se vigilantes, atentas ao semblante e aos gestos uma da outra para deduzirem o que significavam as ininteligíveis palavras.
— De nada lhe servirá esconder-se de mim agora — retrucou madame Defarge.
— Os bons patriotas entenderão o que isso representa. Deixe-me vê-la. Vá avisá-la que desejo vê-la. Está me ouvindo?
— Mesmo que esses seus olhos lançassem labaredas, não me meteriam medo — retorquiu a senhorita Pross. — Não, sua maldita estrangeira. Eu sou a sua adversária.
Não era provável que madame Defarge compreendesse aquela observação em detalhes. Todavia, compreendeu o bastante para constatar que a oponente a estava menosprezando.
— Mulher imbecil! — vociferou madame Defarge, franzindo as sobrancelhas. — Não é possível arrancar de você uma resposta. Eu exijo vê-la! Vá avisá-la ou saia da porta e deixe-me ir até ela! — reforçou a ordem com um movimento enérgico do braço.
— Nunca imaginei — ripostou a senhorita Pross — que um dia desejaria entender essa sua algaravia. Mas eu daria tudo, menos a roupa que visto, para descobrir se você desconfia de pelo menos parte da verdade.
Nenhuma delas, por um segundo que fosse, despregou os olhos da outra. Madame Defarge, que não arredara o pé do lugar onde se plantara desde que a senhorita Pross reparou em sua presença, agora, porém, avançou um passo em sua direção.
— Eu sou uma britânica — prosseguiu a senhorita Pross. — Estou desesperada, mas não ligo uma moeda inglesa de dois pences pela minha vida. Sei que, quanto mais tempo eu a prender aqui, maiores serão as esperanças para a minha menina. E se você encostar um dedo em mim, não deixarei sequer um fio de cabelo nessa sua cabeça!
Assim falou a senhorita Pross, os olhos flamejando a cada sentença proferida de um só fôlego. Assim falou a senhorita Pross, que jamais agredira ninguém em toda a sua vida.
Contudo, sua coragem era daquela espécie emocional, que lhe trazia lágrimas incontroláveis aos olhos. Era a coragem que madame Defarge entendia tão pouco que a confundia com fraqueza.
— Ha, ha! — madame riu. — Sua bruxa infeliz! Você não vale coisa alguma! Vou chamar o doutor! — então, elevou o tom de voz e gritou: — Cidadão doutor! Esposa de Evrémonde! Filha de Evrémonde! Não haverá ninguém aqui para atender a cidadã Defarge a não ser essa miserável idiota?
Talvez o silêncio subseqüente, talvez alguma revelação latente no semblante da senhorita Pross, talvez uma suspeita repentina que nada tivesse a ver com qualquer dos indícios, sussurrasse à madame Defarge que eles haviam partido. Abriu três das portas e espionou os aposentos.
— Estes quartos estão em total desordem. Há miudezas espalhadas pelo chão, alguém arrumou malas às pressas aqui. Não há ninguém no quarto atrás de você! Deixe-me ver.
— Nunca! — recusou a senhorita Pross, que decifrara a ordem tão perfeitamente quanto madame Defarge decifrou sua resposta. — Enquanto você não tiver certeza se eles estão ou não naquele quarto, não poderá decidir o que fazer — refletiu para si mesma. — E você não terá essa certeza, se eu a puder impedir. Tendo ou não certeza, porém, você não sairá daqui enquanto eu puder segurá-la.
— Desde o começo, tenho lutado pelas ruas sem me deter diante de nada. Eu vou abrir essa porta, nem que, para isso, tenha de fazer você em pedaços — volveu madame Defarge.
— Estamos sozinhas no último andar de uma casa erguida num pátio isolado, não é provável que alguém nos ouça. Usarei de toda a minha força para impedi-la de sair, pois cada minuto que você passa aqui vale cem mil guinéus para a minha menina — retrucou a senhorita Pross.
Madame Defarge correu para a porta. A senhorita Pross, seguindo seu instinto, capturou-lhe a larga cintura com os dois braços e prendeu-a com firmeza. Foi em vão que madame Defarge lutou para se desvencilhar e para revidar a agressão, porque a senhorita Pross, com a vigorosa tenacidade do amor, sempre muito mais forte do que a do ódio, apertava-a mais e mais, chegando mesmo a erguê-la do chão. As duas mãos de madame Defarge esbofeteavam-na e arranhavam-lhe o rosto. Mas a senhorita Pross, abaixando a cabeça, mantinha-lhe a cintura bem presa, agarrando-se a ela com um empenho maior do que o de alguém agarrado a uma bóia para não se afogar.
Logo em seguida, as mãos de madame Defarge cessaram os golpes e dirigiram-se à cintura enlaçada.
— Eu a tenho bem presa — disse a senhorita Pross, com a voz abafada —, não conseguirá soltar-se. Sou mais forte do que você, agradeço aos céus por isso, e vou segurá-la até que uma de nós duas caia desmaiada ou morta!
As mãos de madame Defarge chegaram ao peito. A senhorita Pross seguiu-as com o olhar, viu do que se tratava, apoderou-se da arma, disparou-a e quedou-se, sozinha, cega pela fumaça.
Tudo isso se passou num segundo. Quando a fumaça começou a dissipar-se, deixando apenas um medonho silêncio, desvaneceu-se no ar como o espírito da furiosa mulher cujo corpo sem vida jazia no chão.
No horror inicial que lhe inspirou a sua situação, a senhorita Pross afastou-se do cadáver o mais que pôde e correu escada abaixo numa busca inútil por socorro. Felizmente, refletiu melhor e pesou as conseqüências de seu ato em tempo de controlar-se e retornar à sala. Aterrorizava-a entrar novamente por aquela porta, mas ela obrigou-se a fazê-lo e até passou perto do corpo, a fim de apanhar o chapéu e os outros complementos que devia usar. Colocou-os, já na escadaria, depois de trancar a porta e guardar a chave. Então, sentou-se num degrau por alguns instantes, para respirar e chorar. Por fim, levantou-se, resoluta, e apressou-se a partir.
Por sorte, seu chapéu era enfeitado com um véu. Caso contrário, não conseguiria atravessar as ruas sem ser detida. Por sorte, também, sua aparência era naturalmente tão peculiar que não se mostrava especialmente transtornada, como teria ocorrido com outras mulheres. Ela precisava das duas vantagens, pois as marcas das unhas de madame Defarge eram profundas em seu rosto, seu cabelo estava desgrenhado e seu vestido (recomposto rapidamente com mãos trêmulas) achava-se amarfanhado e até esgarçado em vários lugares.
Ao cruzar a ponte, ela jogou a chave no rio. Quando chegou à catedral, poucos minutos antes de seu acompanhante, enquanto o esperava, ela se pôs a imaginar se algum pescador já teria recolhido, em sua rede, a chave do fundo do rio. E se identificassem aquela chave, e abrissem a porta, e encontrassem o cadáver? E se ela fosse interceptada na barreira e enviada para a prisão, acusada de assassinato? Em meio àqueles apavorantes pensamentos, seu acompanhante chegou e levou-a embora.
— Você ouviu algum alarido pelas ruas? — ela inquiriu-o.
— Não, só o de sempre — o senhor Cruncher respondeu, parecendo surpreendido pela pergunta e pelo aspecto da senhorita Pross.
— Não o escutei. O que foi que disse?
De nada adiantou o senhor Cruncher repetir a resposta. A senhorita Pross não podia escutá-lo. “Já que é assim, é melhor eu balançar a cabeça”, pensou o senhor Cruncher, intrigado, “para tudo o que ela perguntar.” E ela perguntou:
— Está ouvindo algum barulho nas ruas, agora? O senhor Cruncher balançou a cabeça, assentindo.
— Eu não ouço nada — a senhorita Pross replicou, ansiosa.
— Ficou surda em apenas uma hora? — indagou o senhor Cruncher, ruminando, extremamente perturbado. — O que será que aconteceu com ela?
— Sinto — declarou a senhorita Pross — como se um estampido muito alto e estridente tivesse soado junto de meu ouvido, e que esse estampido foi o último som que ouvirei nesta vida.
— Ora, parece que enlouqueceu — considerou o senhor Cruncher, cada vez mais perturbado. — O que posso fazer para reanimá-la? Ouça! Ali vão várias carruagens barulhentas! Consegue ouvi-las?
— Não consigo — replicou a senhorita Pross, percebendo que ele lhe dirigia a palavra — ouvir coisa alguma. Oh, meu bom homem, houve aquele estampido e, depois, um profundo silêncio. Um silêncio imutável e eterno, que nada jamais romperá enquanto eu viver.
— Se não escuta o barulho infernal daquelas carruagens — concluiu o senhor Cruncher, fitando-a por sobre o ombro —, creio que, de fato, ela nunca mais escutará nada neste mundo.
E, de fato, ela nunca mais escutou.

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