Capítulo XVIII - Um Homem Sensível e Delicado

O senhor Stryver, tendo tomado a magnânima decisão de fazer à filha do médico a concessão de desposá-la, resolveu tornar pública a felicidade da jovem antes de deixar a cidade para gozar as longas férias forenses. Depois de debater mentalmente o assunto, chegou à conclusão de que seria conveniente terminar logo a etapa preliminar, após a qual ele determinaria se lhe daria a mão uma semana ou duas antes da reabertura dos Tribunais — para o período de Michaelmas — ou durante as curtas férias de Natal, entre esse período e o de Hilary.
Não tinha a menor dúvida de que aquela causa já estava ganha, vendo claramente a tramitação de todo o processo até o veredicto. Demonstradas ao júri as substanciais premissas mundanas, as únicas que valiam a pena demonstrar, o caso não ofereceria nenhum problema. Ele se apresentaria como o autor da causa, seria dispensado de juntar provas ou argüir testemunhas, a defesa se absteria de qualquer pronunciamento e os jurados nem sequer se dariam ao trabalho de ponderar antes de o brindarem com uma decisão favorável. Stryver, o eminente advogado, estava satisfeito com a simplicidade do caso que tinha diante de si.
Consequentemente, o senhor Stryver iniciou as longas férias convidando formalmente a senhorita Manette para passear nos Jardins Vauxhall. Recusado o convite, ele propôs levá-la a Ranelagh. Inexplicavelmente recusada também essa proposta, ele deliberou visitar a casa do Soho e lá declarar suas nobres intenções.
Em direção ao Soho, pois, o senhor Stryver abria com os ombros seu caminho através de Temple Bar, ainda animado com a perspectiva das prolongadas férias que se estendiam à sua frente. Quem o visse movendo-se com determinação rumo ao Soho, conquanto ainda estivesse em Temple Bar, do lado da igreja de Saint Dunstan, arrojando-se em seu estilo característico pelas calçadas, esbarrando e empurrando os transeuntes mais fracos, perceberia que homem forte e seguro era ele.
Ao passar pelo Banco Tellson, do qual era cliente, e conhecendo o senhor Lorry como o amigo íntimo dos Manette, ocorreu ao senhor Stryver a idéia de entrar e revelar ao banqueiro o brilhante horizonte que se descortinava perante Lucie. Assim, empurrou a porta rangente, saltou os dois degraus, passou pelos dois velhos empregados e dirigiu-se ao sombrio e bolorento escritório nos fundos, onde encontrou o senhor Lorry cercado por grandes livros repletos de cifras, sentado à escrivaninha ao lado de uma janela com barras de ferro perpendiculares, dando a impressão de destinar-se a ser também preenchida com números, como se tudo sob as nuvens se reduzisse a contas.
— Olá! — interrompeu-o o senhor Stryver. — Como vai? Espero que esteja bem!
A grande característica de Stryver era que ele sempre parecia demasiado grande para qualquer ambiente. Ele era tão excessivamente corpulento para o Tellson que os velhos empregados que trabalhavam nos cantos mais afastados da sala fitaram-no com ar de protesto, como se sua vultosa presença os constrangesse ainda mais contra as paredes. A própria “Casa”, lendo magnificentemente o jornal, lançou-lhe um olhar de desgosto e censura.
A voz discreta do senhor Lorry redarguiu, num exemplo de voz que ele teria recomendado para aquela circunstância:
— Como vai, senhor Stryver? — e apertou-lhe a mão. Havia algo de peculiar naquele aperto de mão, algo que se observava todas as vezes em que os empregados apertavam as mãos dos clientes diante da “Casa”. Era um modo abnegado, como se Tellson & Cia., e não um de seus funcionários, apertasse a mão. — Em que lhe posso ser útil, senhor Stryver? — indagou em tom profissional.
— Ora essa, em nada. Trata-se de uma visita social, senhor Lorry. Na verdade, gostaria de falar-lhe em particular.
— Oh, é mesmo? — o senhor Lorry replicou, aguçando os ouvidos enquanto seu olhar se afastava na direção da “Casa”.
— Eu pretendo — começou a revelar o senhor Stryver, apoiando os braços sobre a escrivaninha com ar confidencial. Em conseqüência, a mesa, malgrado suas amplas dimensões, pareceu não ter metade do tamanho necessário para o advogado —, eu pretendo oferecer-me em casamento à sua encantadora amiguinha, a senhorita Manette.
— Não diga! — exclamou o senhor Lorry, coçando o queixo e fitando seu visitante com aparência de dúvida.
— Não diga, senhor?! — ecoou Stryver, distanciandose ligeiramente. — O que significa esse “não diga”, senhor Lorry?
— Significa que... — respondeu o homem de negócios — que, claro, como seu amigo, aprecio sua iniciativa, a qual muito o honra e... em suma, significa o que desejar. Contudo... realmente, o senhor sabe, senhor Stryver... — o senhor Lorry fez uma pausa, sacudindo a cabeça de forma estranha, como se lutasse para refrear o ímpeto de acrescentar: “o senhor sabe que esse casamento está muito além do que pode ambicionar”.
— Bem — suspirou Stryver, batendo no tampo da escrivaninha com sua contenciosa mão e arregalando os olhos —, se compreendi as suas entrelinhas, senhor Lorry, não disponho da menor chance.
O senhor Lorry ajustou a curta peruca sobre as orelhas e mordiscou a pena da caneta.
— Em sua opinião — declarou Stryver —, não sou um pretendente aceitável.
— Mas, não! É claro que o senhor é aceitável! — retrucou o senhor Lorry. — Se o senhor se considera aceitável, então é aceitável.
— Não sou um homem próspero? — indagou Stryver.
— Oh! Se atingiu a prosperidade, então é próspero — ponderou o senhor Lorry.
— E em ascensão?
— Se vem ascendendo, como sabe — replicou o senhor Lorry, deliciado por poder concordar de novo —, ninguém pode duvidar.
— Então, o que diabos significa a sua reação, senhor Lorry? — inquiriu Stryver, visivelmente abatido.
— Ora! Eu... o senhor está a caminho da casa dos Manette agora? — o senhor Lorry perguntou.
— Exato — confirmou Stryver, aplicando um murro sobre a escrivaninha.
— Eu não iria lá, se fosse o senhor.
— Por quê? — questionou Stryver. — Exijo que não falte com a verdade — ordenou-lhe em tom forense, erguendo um dedo em sua direção. — O senhor é um homem de negócios e sempre age de acordo com os motivos. Declare o seu motivo. Por que, em meu lugar, não iria à casa do doutor Manette?
— Porque eu não levaria em frente um empreendimento dessa natureza — respondeu o senhor Lorry — se não tivesse razões para acreditar nas minhas possibilidades de êxito.
— Com todos os diabos! — bradou Stryver. — Isso acaba com as minhas esperanças.
O senhor Lorry relanceou os olhos para a “Casa” e tornou a fitar o irado Stryver.
— O senhor é um homem de negócios, de certa idade, um homem experiente em assuntos comerciais — argumentou o advogado. — Eu lhe pedi para enunciar alguns motivos que me impedissem de pedir a mão da senhorita Manette e o senhor admitiu não haver nenhum! E o admitiu com toda a convicção! — o senhor Stryver observou, como se a admissão tivesse sido bem menos digna de nota se feita sem convicção.
— Quando me refiro a êxito, refiro-me a êxito junto à dama em questão. E quando me refiro a causas e motivos para o êxito, refiro-me a causas e motivos que possam sugerir os sentimentos dela. A jovem dama, meu bom senhor — ponderou o senhor Lorry, dando pequenas e suaves pancadas no braço de Stryver —, a jovem dama. Ela vem em primeiro lugar.
— Então, o senhor está insinuando, senhor Lorry — ripostou Stryver, endireitando os cotovelos —, que sua opinião deliberada é a de que a jovem dama em questão não passa de uma tola mimada?
— Não exatamente. O que quero dizer, senhor Stryver — replicou o senhor Lorry, corando —, é que não consentirei que falem sobre essa jovem de forma desrespeitosa na minha presença. E que, se eu conhecesse algum homem, e espero não conhecer nenhum, que tivesse tanto mau gosto e cujo temperamento fosse tão intolerável que ele não se pudesse abster de falar desrespeitosamente sobre essa jovem dama diante da minha escrivaninha, nem mesmo os meus deveres para com o Tellson me impediriam de lhe dar uma boa lição. A necessidade de expressar sua raiva num tom contido fazia ferver perigosamente nas veias o sangue do senhor Stryver. O sangue do senhor Lorry, que de hábito corria metodicamente pelas veias, não se encontrava em melhor estado.
— Era isso o que eu queria dizer, senhor — concluiu o senhor Lorry. — Peço-lhe que não me entenda mal.
O senhor Stryver apanhou uma régua de sobre a mesa e mordiscou-lhe a ponta. Em seguida, bateu com ela nos dentes com tal força que seria impossível não se ter machucado. Por fim, rompeu o silêncio constrangedor ao afirmar:
— Tudo isso é novidade para mim, senhor Lorry. O senhor deliberadamente aconselhou-me a não ir ao Soho apresentar-me como pretendente... aconselhou a mim, Stryver, advogado famoso no Tribunal Superior de Justiça?
— Não pediu a minha opinião?
— Sim, senhor.
— Muito bem. Eu lhe dei a minha opinião e o senhor a repetiu corretamente.
— Só o que posso comentar a respeito — retrucou o advogado com um riso forçado — é que... ha, ha! Nunca houve nem haverá absurdo maior.
— Compreenda-me, por favor — contemporizou o senhor Lorry. — Como homem de negócios, não me sinto à vontade para externar qualquer opinião a esse respeito, pois não entendo desses assuntos. Contudo, na qualidade de um velho amigo, que carregou a senhorita Manette nos braços, que merece a confiança dela e a de seu pai, e que lhes dedica uma grande afeição, eu o fiz. Lembre-se de que a sua confidência partiu do senhor, eu não o forcei. Ainda acha que posso estar errado?
— Eu não! — sibilou Stryver. — Não posso pretender encontrar nos outros o bom senso que só em mim devo buscar. Tenho a minha própria concepção de bom senso. O que é sensato para mim, não o é para o senhor, que supõe seja um contra-senso viver com conforto. De qualquer forma, ouso dizer que está certo.
— O que suponho ou deixo de supor, senhor Stryver, é problema meu. Entendame, senhor — ripostou o senhor Lorry, tornando a corar —, não permitirei, a despeito de estar aqui no Tellson, que minhas suposições sejam formuladas por ninguém, nem mesmo por um cavalheiro.
— Por favor! Aceite as minhas desculpas!
— Eu as aceito e agradeço. Bem, senhor Stryver, eu estava prestes a dizer-lhe o seguinte: seria doloroso para o senhor se descobrisse que se enganou, seria dolorosa para o doutor Manette a tarefa de ser explícito com o senhor, seria muito doloroso para a senhorita Manette o dever de falar-lhe com franqueza. O senhor não ignora em que termos eu tenho a honra e a felicidade de privar com a família. Se concordar, eu me encarregarei de, sem envolver o seu nome, para não o comprometer, sondar o terreno e verificar se meu conselho foi acertado. Se não concordar com o meu julgamento, poderá conferir pessoalmente a sua exatidão. Por outro lado, se concordar com o meu julgamento e este se revelar correto, essa providência pouparia a todos um grande constrangimento. O que acha deste plano?
— Quanto tempo terei de ficar na cidade à espera de uma resposta?
— Oh! É uma questão de apenas algumas horas. Eu poderia visitar os Manette esta noite e depois passaria em seu escritório.
— Nesse caso, estou de acordo. Não irei lá agora, pois já não estou tão ansioso como quando cheguei aqui. Espero o senhor ainda esta noite. Tenha um bom dia.
Então, o senhor Stryver levantou-se e precipitou-se para fora do banco, causando tal comoção ao passar que os dois empregados que se inclinaram para cumprimentá-lo precisaram de todas as suas forças para permanecerem de pé. A clientela sempre via esses dois veneráveis e débeis homens curvando-se e jocosamente comentava que eles permaneciam, depois de o último cliente se ter retirado, curvando-se na sala vazia, aguardando a entrada do primeiro cliente do dia seguinte.
O advogado era astuto o bastante para adivinhar que o senhor Lorry não teria ido tão longe ao externar sua opinião se não o movesse uma forte convicção. E, conquanto a pílula fosse amarga, tratou de a engolir. “E agora”, disse consigo mesmo, sacudindo o dedo na direção de Temple Bar, “minha única saída é provar que estão todos errados.”
Aquela era uma das mais preciosas táticas praticadas em Old Bailey, na qual encontrou um profundo alívio.
— A senhorita não me tirará a razão, cara jovem — murmurou Stryver —, eu é que tirarei a sua.
Quando o senhor Lorry, conforme o combinado, chegou ao seu escritório por volta das dez da noite, o senhor Stryver, rodeado por uma quantidade de livros e papéis, parecia não se lembrar mais do assunto de que tratara pela manhã. Demonstrou até mesmo surpresa ao ver o senhor Lorry, mostrando-se distraído e preocupado.
— Bem! — exclamou o bondoso emissário, depois de meia hora de tentativas frustradas de abordar a questão. — Estive no Soho.
— No Soho? — repetiu o senhor Stryver com frieza. — Ah, mas é claro! Onde estou com a cabeça?
— Não tenho a menor dúvida — declarou o senhor Lorry
— de que meu julgamento foi correto. Confirmei minha opinião e, portanto, reitero o meu conselho.
— Asseguro-lhe — respondeu Stryver em seu tom mais afetuoso — que lastimo por sua causa e também pelo pobre pai. Imagino que esses casos sejam sempre penosos para a família. Não toquemos mais nesse assunto.
— Não o compreendo — espantou-se o senhor Lorry.
— Ouso dizer que não mesmo — replicou o senhor Stryver, balançando a cabeça de modo a dar a conversa por encerrada. — Mas não tem importância.
— Tem importância, sim — insistiu o senhor Lorry.
— Não, não tem. Garanto-lhe que não. Eu supus que havia bom senso e uma louvável ambição onde não havia nem uma coisa nem outra. Foi um engano, mas não faz mal. Muitas moças cometem esse tipo de tolice e se arrependem mais tarde, quando se vêem imersas na obscuridade e na pobreza. De uma forma altruísta, eu sinto muito por ela. Quanto a mim, esse casamento teria sido um mau negócio, analisando-o sob um ponto de vista material. Nem é preciso comentar que eu não ganharia nada com essa união. Felizmente, ninguém sofreu prejuízo algum. Eu não fiz nenhuma proposta a essa dama, e, cá entre nós, estou quase certo de que jamais chegaria a esse extremo. Senhor Lorry, não se pode controlar as vaidades e as bobagens que guiam essas jovens de cabeça oca. Quem tentar isso, acabará por se decepcionar. Agora, rogo-lhe que não tornemos a esse assunto. Confesso-lhe que lamento pelos outros, mas estou muito satisfeito por mim. E agradeço-lhe de coração por iluminar-me com tão sábio conselho. O senhor conhece a dama melhor do que eu e tinha razão: jamais daria certo.
O senhor Lorry ficara tão estupefato que parecia totalmente aparvalhado quando o senhor Stryver empurrou-o com o ombro na direção da porta, afetando generosidade, indulgência e boa vontade.
— Não toquemos mais no assunto, meu caro senhor — repetiu o senhor Stryver.
— Mais uma vez, obrigado pelo conselho. Boa noite!
O senhor Lorry viu-se fora, na noite escura, antes de saber como ali chegara.
Uma vez sozinho, Stryver recostou-se no divã, pestanejando os olhos pousados no teto.

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