Capítulo XXI - O Tricô

Começou-se a beber mais cedo do que o usual na taberna de monsieur Defarge. Desde as seis horas da manhã, os rostos macilentos que espreitavam pelas grades das janelas avistavam outros rostos lá dentro, inclinando-se sobre copos de vinho. Monsieur Defarge vendia sempre um vinho ordinário, mesmo nos melhores tempos, mas nunca tão ruim como naquela época. Era um vinho azedo, a julgar pelo azedume que infundia naqueles que o bebiam. Nenhuma viva chama dionisíaca crepitava no mosto do vinho de monsieur Defarge.
Em vez disso, ocultava-se em sua borra um fogo ardente, que queimava nas trevas. Aquela era a terceira manhã consecutiva em que se começava cedo a beber na taberna de monsieur Defarge. Isso tivera início na segunda-feira e já era quarta-feira. Na verdade, os fregueses iam ali mais para meditar do que para beber, pois a maioria dos homens havia ouvido e cochichado e se movido furtivamente pela taberna desde o momento em que se abriram as portas; homens que não teriam podido deixar uma moeda no balcão mesmo que fosse para salvar a própria alma, mas que se mostravam interessados pelo lugar como se pudessem ordenar barris inteiros de vinho. E passavam de uma mesa para a outra, de um canto para o outro, sorvendo palavras em vez de vinho, com um ar cobiçoso.
Apesar de tão extraordinária freguesia, o dono da taberna não estava presente. Mas não lhe sentiram a falta, já que nenhum dos que cruzaram a soleira da porta o procurou, nem perguntou por ele e tampouco se admirou por ver somente madame Defarge em sua cadeira, presidindo à distribuição de vinho, tendo ao lado uma tigela cheia de moedinhas amassadas e sujas, com a efígie tão apagada quanto o esmaecido cunho de humanidade daqueles de cujos bolsos haviam saído.
Um súbito desinteresse e um aspecto distraído eram talvez observados pelos espiões que se introduziram na taberna Defarge como, de resto, faziam em toda a parte, dos melhores lugares aos piores, desde o palácio do rei até o cárcere dos criminosos.
Os jogos de cartas se prolongavam, jogadores de dominó divertiam-se construindo torres com as pedras, os que bebiam traçavam cifras sobre as mesas aproveitando as gotas de vinho derramadas. Madame Defarge, apoiada no balcão, reproduzia o desenho de suas mangas com a ponta de um palito, vendo e ouvindo coisas muito distantes, invisíveis e inaudíveis para os fregueses.
Assim se passou a manhã de Santo Antônio. Já era meiodia quando dois homens empoeirados entraram pelas ruas do bairro, passando sob a fileira de lampiões que se balançavam na corda. Um deles era monsieur Defarge. O outro, um reparador de estradas que trazia na cabeça um barrete azul. Sedentos e cobertos de pó, entraram na taberna.
Sua chegada acendera uma espécie de fogo no coração de Santo Antônio, que rapidamente se espalhara à medida que os dois avançaram pelas ruas, suas chamas atiçando-se e tremulando nos rostos por trás das janelas e portas. Contudo, ninguém os seguiu e nenhuma palavra foi pronunciada quando eles entraram na taberna, conquanto os olhos de cada um dos homens se voltassem para fitá-los.
— Bom dia, cavalheiros! — cumprimentou monsieur Defarge.
A saudação funcionou como uma espécie de sinal para que as línguas se soltassem, provocando uma resposta em coro:
— Bom dia!
— O tempo está péssimo, cavalheiros — Defarge observou, sacudindo a cabeça.
Diante disso, cada homem olhou para seu vizinho e todos baixaram a cabeça, calados. Todos, com exceção de um, que se levantou e saiu da taberna.
— Mulher — disse Defarge em voz alta, dirigindo-se à madame Defarge —, viajei muitas léguas com esse bom reparador de estradas. Chama-se Jacques. Encontrei-o durante a jornada, por acaso, a um dia e meio de Paris. É um bom rapaz, esse reparador de estradas chamado Jacques. Sirva-lhe algo para beber, mulher!
Outro homem, então, ergueu-se e saiu da taberna. Madame Defarge colocou um copo cheio diante do reparador de estradas chamado Jacques, que tirou o barrete e bebeu um trago de vinho. No interior de sua camisa, ele carregava uma côdea de pão preto. Comeu-a aos poucos, sentando-se junto de madame Defarge, mastigando e tomando longos goles de vinho. Um terceiro indivíduo se levantou e saiu como os outros dois.
Defarge também se refrescou com um trago de vinho — serviu-se, porém, de menos do que fora ofertado ao forasteiro, já que, para ele, a bebida não era uma raridade — e permaneceu de pé, esperando que o companheiro terminasse seu almoço. Não olhava para ninguém e ninguém olhava para ele, nem mesmo madame Defarge, que retomara seu tricô.
— Acabou seu repasto, amigo? — ele perguntou, quando viu que não havia mais pão.
— Sim, obrigado.
— Então, siga-me. Verá o quarto que eu lhe disse que poderia ocupar. Acho que lhe convém perfeitamente.
Saíram para a rua, dirigiram-se ao pátio, de lá subiram pela escada íngreme e encontraram-se finalmente num sótão onde outrora havia um homem de cabelos brancos, que costumava sentar-se num banco baixo, inclinado para a frente, empenhado na manufatura de sapatos.
Agora não se via nenhum homem de cabelos brancos ali, mas sim os três indivíduos que tinham saído da taberna, cada qual por seu turno. Entre eles e o homem de cabelos brancos, que estava tão distante, existia apenas um pequeno elo, constituído pelo fato de que os três rapazes certa vez o haviam espreitado pelas frestas da parede. Defarge fechou a porta cuidadosamente e disse em voz baixa:
— Jacques primeiro, Jacques segundo, Jacques terceiro, esta é a testemunha localizada por mim, Jacques quarto. Ele lhes contará tudo. Fale, Jacques quinto.
O reparador de estradas enxugou o suor da testa com o barrete azul e indagou:
— Por onde deverei começar, monsieur?
— Comece pelo começo — foi a ponderada resposta de Defarge.
— Vi-o então, messieurs — principiou o reparador de estradas —, um ano antes do verão corrente, sob a carruagem do marquês, pendurado numa corrente. Exatamente deste jeito como lhes mostro. Eu já ia deixar o trabalho, o sol se deitava, a carruagem do marquês subia a colina devagar, e ele arrastado pela corrente, desta maneira.
Mais uma vez, o reparador de estradas exibiu o número completo de seu espetáculo. No qual decerto já atingira a perfeição, pois sua pantomima representara a única fonte de indispensável entretenimento do vilarejo ao longo do ano.
Jacques primeiro interrompeu-o para inquirir se havia visto o homem antes.
— Nunca — respondeu o reparador de estradas, retornando à posição perpendicular. Jacques terceiro quis saber como o reconheceu, mais tarde.
— Por sua elevada estatura — replicou o reparador de estradas com simplicidade, tocando a ponta do nariz com o dedo. — Quando monsieur marquês me perguntou aquela noite: “Como era ele?”, eu respondi: “Alto como um fantasma”.
— Podia ter dito que era pequeno como um anão — interveio Jacques segundo.
— Que sabia eu? A coisa não estava feita ainda, nem ele confiava em mim. Observe que, naquelas circunstâncias, nem sequer ofereci meu testemunho. Monsieur marquês apontou-me com o dedo, eu estava perto da pequena fonte, e esbravejou: “Traga-me aqui aquele sujeito!” Juro-lhes, messieurs, que tive de obedecer, mas não lhe ofereci nada.
— Ele está certo, Jacques — murmurou Defarge ao que aparteara. — Continue!
— Ótimo! — exclamou o reparador de estradas com ar de mistério. — O homem alto fugira e deram-lhe busca... há quantos meses? Nove, dez, onze?
— O número não importa — disse Defarge. — Ele estava bem escondido, mas, infelizmente, acabaram por encontrá-lo. Adiante!
— Bem. Estou eu de novo trabalhando no alto da colina e o sol se deitando outra vez. Guardo as ferramentas para descer até minha casa na aldeia, onde já escureceu, quando levanto os olhos e vejo seis soldados subindo o morro. No meio deles segue um homem alto, com os braços amarrados ao lado do corpo, assim.
Com o auxílio do indispensável barrete, imitou o homem com os cotovelos bem presos aos quadris por cordas atadas com nós nas costas.
— Eu me escondi, messieurs, atrás da minha pilha de pedras, para ver os soldados e seu prisioneiro passarem, pois é uma estrada tão deserta que qualquer coisa serve de distração, e, a princípio, quando se aproximavam, só pude constatar que eram seis soldados levando um homem alto amarrado. Pareciam quase negros para a minha vista, exceto do lado onde o sol se deitava, onde tudo se avermelhava, messieurs. Vi, também, que as suas sombras se alongavam pelo lado oposto da estrada e subiam a colina, como sombras de gigantes. Reparei depois que estavam cobertos de pó e que a poeira do caminho se movia com eles à medida que marchavam. Mas, quando chegaram bem perto de mim, reconheci o homem alto e ele me reconheceu também. Ah, como o homem teria ficado contente se tivesse descido a encosta como naquela tarde em que o encontrei, quase no mesmo lugar.
O camponês descrevia a cena como se a tivesse diante dos olhos, o que evidenciava que observara tudo de maneira vívida. Talvez ele não houvesse visto muitas coisas em sua vida.
— Não demonstrei aos soldados que conhecia o homem alto, nem ele mostrou reconhecer-me. Mas nós nos reconhecemos, sabíamos disso e nos comunicamos através dos olhos. “Vamos”, ordenou o chefe da companhia, indicando a aldeia, “levem-no depressa à sua sepultura”, e os soldados apressaram a marcha. Eu os segui.
Os braços do prisioneiro tinham inchado porque as cordas estavam muito apertadas; seus sapatos de madeira eram grandes e pesados e faziam-no coxear. Como coxeasse, ia mais devagar, e, por isso, os soldados o empurravam com as armas, assim! E imitou os movimentos de um homem sendo impelido para a frente pelos cabos de arcabuzes.
— Quando desciam a colina correndo como loucos, ele caiu. Os soldados riram e o puseram de pé outra vez. A poeira grudara-se em seu rosto ensangüentado, mas o homem não podia limpá-lo. Então, riram de novo. Chegaram finalmente à aldeia. Todo o mundo correu para ver. Passaram pelo moinho e subiram até a prisão. O vilarejo inteiro presenciou o portão abrir-se para o negrume da noite e tragá-lo, assim!
O aldeão escancarou a boca o mais que pôde e fechou-a em seguida, rangendo sonoramente os dentes. Notando que ele não queria abrir a boca para não estragar o efeito da pantomima, Defarge instou:
— Prossiga, Jacques.
— Toda a aldeia — continuou o reparador de estradas, baixando a voz e pisando na ponta dos pés —, toda a aldeia rumou para a fonte; toda a aldeia cochichou; depois, toda a aldeia dormiu e sonhou com o infeliz trancafiado atrás das grades da prisão no desfiladeiro, de onde não sairia senão para morrer. Na manhã seguinte, quando ia para o trabalho com as ferramentas sobre o ombro e comendo a minha fatia de pão preto pelo caminho, dei uma volta pelo cárcere. Lá o vi, bem no alto, atrás das barras de uma gaiola de ferro, ensangüentado e empoeirado como na noite anterior, olhando para mim. Tinha ainda os braços atados e não pôde fazer-me um aceno. Seus olhos me fitaram como os de um morto.
Defarge e os outros três trocaram olhares sombrios. Durante a narrativa do camponês, o semblante de cada um mostrava-se soturno, contido e vingativo. A atitude de todos, agora que estavam protegidos pelo sigilo, era autoritária. Ostentavam o aspecto de juízes implacáveis. Jacques primeiro e Jacques segundo estavam sentados sobre a enxerga, com o queixo apoiado na mão. O terceiro, não menos atento, ajoelhado por detrás, acariciava com os dedos crispados os lábios e o nariz. Defarge, de pé entre os três e o narrador, que se colocara perto da janela, olhava ora para este, ora para os outros.
— Continue, Jacques — insistiu Defarge.
— Ele ficou lá, em sua gaiola de ferro, por alguns dias. O povo da aldeia o espiava de longe, porque tinha medo. Mas sempre espiava a distância a prisão sobre o penhasco. Ao anoitecer, terminada a tarefa do dia, nós nos reuníamos na fonte e todos os rostos se voltavam para o cárcere. Antes, eles se voltavam para a casa da posta, agora, para o cárcere. Tagarelava-se muito ao redor da fonte. Uns diziam em voz baixa que ele não seria executado; diziam que haviam sido apresentadas petições, provando que enlouquecera com a morte do filho; diziam até mesmo que uma dessas petições havia chegado às mãos do próprio rei. Que sei eu? É possível. Talvez sim, talvez não.
— Então, ouça, Jacques — interpôs o número um do nome severamente imposto:
— Saiba que uma das petições foi apresentada ao rei e à rainha. Todos nós, com exceção de você, vimos o rei recebê-la, na sua carruagem, ao lado da rainha. Foi Defarge quem, pondo em risco a vida, lançou-se na frente dos cavalos com a petição nas mãos.
— E mais uma vez, ouça, Jacques — aparteou o Jacques que estava ajoelhado atrás dos companheiros, seus dedos vagando de um lado para o outro convulsivamente, com avidez, como se buscassem alguma coisa que nada tinha a ver com comida ou bebida —, a guarda real com seus cavalos e pés cercou-o e o agrediu. Está ouvindo, Jacques?
— Estou sim, messieurs.
— Então, continue — interveio Defarge.
— Nas conversas da fonte — prosseguiu o camponês —, havia outros que diziam que ele fora trazido à aldeia a fim de ser levado à morte no mesmo local do crime, e que certamente seria executado. Comentavam até que, por ter assassinado monseigneur e sendo monseigneur o pai de seus feudatários, ou servos, como preferirem, seria executado na qualidade de parricida. Um dos velhos do vilarejo afirmou que a mão direita do prisioneiro, armada com o punhal, seria queimada sob a vista dele. Em seguida, nas feridas que lhe fariam nos braços, peito e pernas, derramariam azeite fervente misturado com chumbo derretido, resina, cera e enxofre, e finalmente o esquartejariam com a ajuda de quatro cavalos fortes. Segundo o velho, tudo isso fora feito com um homem que atentara contra a vida do rei Luís XV. Mas como eu poderia saber se estava mentindo, se não sou letrado?
— Nesse caso, ouça ainda uma vez, Jacques — replicou o homem da mão irrequieta e de aspecto ávido. — O nome do prisioneiro era Damiens e o executaram desse modo em plena luz do dia, nas ruas desta cidade de Paris.
E nada foi mais notado, na vasta platéia que assistiu ao espetáculo, do que a multidão de damas distintas e elegantes que permaneceram ali, atentas, até o final, até o final Jacques, quando já a noite caía e ele, tendo perdido as duas pernas e um braço, ainda respirava! Isso aconteceu há... qual é a sua idade?
— Trinta e cinco anos — respondeu o reparador de estradas, que aparentava sessenta.
— Isso aconteceu quando você contava mais de dez anos. Podia ter assistido.
— Basta! — gritou Defarge, impaciente. — Com os diabos! Continue.
— Está bem. Uns cochichavam isto, outros cochichavam aquilo. Não se falava de outra coisa. Até a fonte parecia murmurar sobre o caso. Por fim, numa noite de domingo, quando toda a aldeia dormia, vários soldados desceram da prisão arrastando as armas pelas pedras da pequenina rua. Lavradores cavaram, os carpinteiros manejaram suas ferramentas, os soldados riram e cantaram. De manhã, junto à fonte, erguia-se uma forca de doze metros de altura, envenenando-lhe a água.
O reparador de estradas olhou através do teto do sótão, e não para ele, e apontou como se avistasse a forca em algum ponto do céu.
— Toda a atividade cessou. Ninguém levou as vacas para o pasto e estas ficaram ali com as pessoas reunidas em torno da fonte. Ao meio-dia, ouviu-se o rufar de tambores. Os soldados, que haviam marchado de volta para a prisão durante a madrugada, retornavam com o condenado. Ele vinha amarrado como antes, e em sua boca havia uma mordaça apertada de tal forma que ele parecia rir — o camponês fez a mímica, pregueando as faces com os polegares dos cantos da boca às orelhas. — No alto da forca, tinham colocado o punhal, com a lâmina virada para cima, com a ponta para o ar. Ele foi enforcado ali, a doze metros de altura, e lá ficou dependurado, envenenando a água da fonte.
Os quatro ouvintes olharam uns para os outros, enquanto o reparador de estradas usava o barrete azul para enxugar o rosto, que se banhara de suor quando ele recordou o espetáculo.
— É assustador, messieurs. Como podem as mulheres e as crianças tirar água da fonte? Quem consegue conversar ao anoitecer, sob a sombra do enforcado? Sob aquela sombra, compreendem? Quando deixei o vilarejo, segunda-feira à tarde, o sol se deitava. Chegando ao alto da colina, voltei o rosto e vi a sombra sobre a igreja, sobre o moinho, sobre o cárcere. Parecia alcançar, messieurs, até o ponto onde a terra se junta com o céu.
O homem faminto roía as unhas, fitando os companheiros, e os seus dedos crispavam-se com a avidez que o devorava.
— Isso é tudo, messieurs. Saí da aldeia ao pôr-do-sol, como me haviam instruído, e andei durante toda a noite e metade do dia seguinte, até que encontrei esse camarada, como me avisaram que encontraria. Junto com ele, continuei o caminho, ora a pé, ora a cavalo, pelo resto do dia de ontem e pela noite passada. E aqui estou!
Depois de um lúgubre silêncio, o primeiro Jacques observou:
— Muito bom! O senhor contou e representou com fidelidade. Poderia sair e esperar por nós do lado de fora da porta um momento?
— Com prazer — replicou o reparador de estradas, a quem Defarge acompanhou até o topo da escada, deixou-o lá sentado e regressou. Os outros três se haviam levantado e conversavam, bem próximos, quando Defarge entrou.
— Que lhe parece, Jacques? — perguntou o número um. — Deve ser registrado?
— Deve, sim — respondeu o taberneiro. — Como condenação à destruição.
— Magnífico! — cacarejou o homem ávido.
— O castelo e toda a família? — indagou Jacques primeiro. — O castelo e toda a família — retorquiu Defarge. — Extermínio.
O homem faminto repetiu, num cacarejo extasiado:
— Magnífico! — roendo as unhas da outra mão.
— Tem certeza — inquiriu o segundo Jacques a Defarge — de que nosso modo de manter os registros não nos trará nenhum problema? Sem dúvida, o método é seguro, pois ninguém, além de nós, pode decifrar os registros. Mas... será que saberemos sempre decifrá-los... será que ela conseguirá?
— Jacques — replicou Defarge com orgulho —, se madame, minha esposa, foi capaz de memorizar cada registro, ela não perderá uma só palavra, nem uma sílaba sequer. Gravados nos pontos de tricô em símbolos que ela mesma criou, serão para madame claros como o sol. Confie em madame Defarge. É mais fácil o último dos covardes apagar sua própria existência do que apagar-se da malha de minha mulher uma letra do seu nome ou da lista dos seus crimes. Um murmúrio de aprovação e confiança acolheu essas palavras, e o homem ávido indagou:
— Devemos mandar logo esse camponês de volta ao vilarejo? Espero que sim.
Ele é muito simplório. Não seria um tanto perigoso?
— O homem não sabe de nada — ponderou Defarge —. Ao menos, nada além do que poderia facilmente içá-lo para uma forca da mesma altura que descreveu. Encarrego-me dele. Deixe-o comigo. Tomarei conta do pobre diabo e o mandarei embora quando convier. Ele deseja ver o rei, a rainha e toda a corte. Proponho-me a dar-lhe esse prazer no domingo.
— O quê? — exclamou o homem ávido, arregalando os olhos. — Não seria um mal sinal, esse desejo de ver a realeza e a nobreza?
— Jacques — disse Defarge —, se quer que um gato tenha sede, acene-lhe com leite; e ponha um cão diante da presa, se quiser que ele a ataque um dia.
Nada mais foi dito. Ao saírem, encontraram o camponês cochilando no topo da escada. Aconselharam-no a ir deitar-se na enxerga para repousar. O homem não necessitava de persuasão e logo caiu num sono profundo.
Havia em Paris alojamentos piores do que a taberna de Defarge para um escravo tacanho como aquele. Exceto por um misterioso receio de madame Defarge, que o assombrava constantemente, a nova vida do reparador de estradas agradava-o plenamente. Entretanto, a dona da casa permanecia o dia inteiro na taberna sem lhe prestar a menor atenção, tão determinada a não perceber que a presença dele ali tivesse conexão com qualquer coisa oculta sob a superfície, que ele estremecia em seus sapatos de madeira sempre que seus olhos se fixavam nela. Refletia com seus botões que era impossível prever o que a dama simularia em seguida e convencera-se de que, se lhe desse na cabeça afirmar que o tinha visto matar e esfolar alguém, não vacilaria em coisa alguma até o fim e continuaria a afirmar o mesmo até vê-lo enforcado.
Assim, pois, quando chegou o domingo, o reparador de estradas não ficou satisfeito, embora declarasse o contrário, ao descobrir que madame Defarge os acompanharia a Versalhes. Era desconcertante ter a seu lado, durante todo o caminho, uma mulher tricotando ininterruptamente em público; e ainda mais desconcertante era aquele tricô nas mãos dela no meio da multidão que esperava para ver a chegada do rei e da rainha.
— A senhora trabalha bastante — observou um homem que estava por perto.
— Sim — respondeu madame Defarge —, tenho muito o que fazer.
— Que tipo de malhas a senhora tece?
— Vários tipos.
— Quais?
— Por exemplo — ripostou madame Defarge, tranquilamente —, mortalhas.
O homem afastou-se assim que pôde, e o reparador de estradas começou a abanarse com o barrete azul, sentindo o tempo subitamente quente e opressivo. Se ele precisava de um rei e uma rainha para restabelecer-se, teve sorte em encontrar o remédio à mão, pois, pouco depois, o rei com uma grande mandíbula e a rainha com um belo rosto chegaram em sua carruagem dourada, escoltados pelo resplandecente “Olho de Boi” de sua corte, uma cintilante multidão de damas sorridentes e lordes elegantes. Diante de tantas jóias e tanta seda, de tantas figuras empoadas, esplendorosas, luxuosamente trajadas, e dos rostos belos e desdenhosos dos nobres de ambos os sexos, o camponês ficou a tal ponto entusiasmado que, no meio da sua exaltação, ergueu vivas ao rei, à rainha, aos grandes senhores, a tudo e a todos, como se não tivesse ouvido os estranhos Jacques. Em seguida, admirando os jardins, as galerias, os terraços, as fontes e os bancos de relva e contemplando novamente o rei, a rainha e toda a comitiva, tornou a erguer vivas, ficando tão comovido que desatou a chorar. Durante três horas, ele gritou e soluçou como criança. Defarge segurava-o pelo colarinho, como para evitar que, levado por tão grande arrebatamento, ele se atirasse sobre os objetos daquela devoção momentânea, rompendo-os em pedaços.
— Bravo! — elogiou o taberneiro, batendo-lhe no ombro, quando o espetáculo terminou. — Você é um bom rapaz.
O reparador de estradas, voltando a si, ficou confuso, julgando ter cometido um erro ao entregar-se àqueles arroubos. Mas, não... não cometera nenhum erro.
— Você é o companheiro que desejávamos — murmurou-lhe Defarge ao ouvido.
— Fez os idiotas pensarem que isso durará para sempre. Contudo, a insolência deles está no fim.
— Ei! — exclamou o reparador de estradas com ar pensativo. — É verdade.
— Esses tolos não desconfiam de nada. Enquanto desprezam o ar que você respira, e o impediriam de respirar para sempre, não só a você, mas a todos da sua espécie, preferindo a morte de cem pessoas de sua classe à morte de um de seus cavalos ou cães, eles só sabem o que o seu bafejo lhes conta. Que essas manifestações os enganem. Não os enganarão por muito tempo mais.
Madame Defarge olhou para o hóspede com ar de superioridade e inclinou a cabeça em confirmação.
— Quanto ao senhor — ela comentou —, creio que gritará e chorará por qualquer coisa colorida e ruidosa. Estou enganada? Diga!
— Para falar a verdade, madame, acho que tem razão. No momento.
— Se lhe apontassem uma porção de bonecas, para que as fizesse em pedaços e as despojasse para seu proveito, o senhor escolheria a mais brilhante e a mais rica. Não é?
— Decerto, minha senhora.
— E se o pusessem diante de um bando de pássaros que não pudessem voar e o mandassem arrancar-lhes a plumagem para seu proveito, o senhor escolheria os que tivessem a plumagem mais vistosa. Não é?
— É fato, minha senhora.
— Pois o senhor viu aqui magníficas bonecas e pássaros de rica plumagem — declarou madame Defarge, indicando o lugar onde acabara de ser representado o espetáculo. — Agora, volte para casa!

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