Capítulo XXI - O Tricô
Começou-se a beber mais cedo do que o usual na
taberna de monsieur Defarge. Desde as seis horas da manhã, os rostos
macilentos que espreitavam pelas grades das janelas avistavam outros rostos lá
dentro, inclinando-se sobre copos de vinho. Monsieur Defarge vendia
sempre um vinho ordinário, mesmo nos melhores tempos, mas nunca tão ruim como
naquela época. Era um vinho azedo, a julgar pelo azedume que infundia naqueles
que o bebiam. Nenhuma viva chama dionisíaca crepitava no mosto do vinho de monsieur
Defarge.
Em vez disso, ocultava-se em sua borra um fogo
ardente, que queimava nas trevas. Aquela era a terceira manhã consecutiva em
que se começava cedo a beber na taberna de monsieur Defarge. Isso tivera
início na segunda-feira e já era quarta-feira. Na verdade, os fregueses iam ali
mais para meditar do que para beber, pois a maioria dos homens havia ouvido e
cochichado e se movido furtivamente pela taberna desde o momento em que se
abriram as portas; homens que não teriam podido deixar uma moeda no balcão
mesmo que fosse para salvar a própria alma, mas que se mostravam interessados
pelo lugar como se pudessem ordenar barris inteiros de vinho. E passavam de uma
mesa para a outra, de um canto para o outro, sorvendo palavras em vez de vinho,
com um ar cobiçoso.
Apesar de tão extraordinária freguesia, o dono da
taberna não estava presente. Mas não lhe sentiram a falta, já que nenhum dos
que cruzaram a soleira da porta o procurou, nem perguntou por ele e tampouco se
admirou por ver somente madame Defarge em sua cadeira, presidindo à
distribuição de vinho, tendo ao lado uma tigela cheia de moedinhas amassadas e
sujas, com a efígie tão apagada quanto o esmaecido cunho de humanidade daqueles
de cujos bolsos haviam saído.
Um súbito desinteresse e um aspecto distraído eram talvez
observados pelos espiões que se introduziram na taberna Defarge como, de resto,
faziam em toda a parte, dos melhores lugares aos piores, desde o palácio do rei
até o cárcere dos criminosos.
Os jogos de cartas se prolongavam, jogadores de
dominó divertiam-se construindo torres com as pedras, os que bebiam traçavam
cifras sobre as mesas aproveitando as gotas de vinho derramadas. Madame
Defarge, apoiada no balcão, reproduzia o desenho de suas mangas com a ponta de
um palito, vendo e ouvindo coisas muito distantes, invisíveis e inaudíveis para
os fregueses.
Assim se passou a manhã de Santo Antônio. Já era
meiodia quando dois homens empoeirados entraram pelas ruas do bairro, passando
sob a fileira de lampiões que se balançavam na corda. Um deles era monsieur Defarge.
O outro, um reparador de estradas que trazia na cabeça um barrete azul.
Sedentos e cobertos de pó, entraram na taberna.
Sua chegada acendera uma espécie de fogo no coração
de Santo Antônio, que rapidamente se espalhara à medida que os dois avançaram
pelas ruas, suas chamas atiçando-se e tremulando nos rostos por trás das
janelas e portas. Contudo, ninguém os seguiu e nenhuma palavra foi pronunciada
quando eles entraram na taberna, conquanto os olhos de cada um dos homens se
voltassem para fitá-los.
— Bom dia, cavalheiros! — cumprimentou monsieur Defarge.
A saudação funcionou como uma espécie de sinal para
que as línguas se soltassem, provocando uma resposta em coro:
— Bom dia!
— O tempo está péssimo, cavalheiros — Defarge
observou, sacudindo a cabeça.
Diante disso, cada homem olhou para seu vizinho e
todos baixaram a cabeça, calados. Todos, com exceção de um, que se levantou e
saiu da taberna.
— Mulher — disse Defarge em voz alta, dirigindo-se à
madame Defarge —, viajei muitas léguas com esse bom reparador de estradas.
Chama-se Jacques. Encontrei-o durante a jornada, por acaso, a um dia e meio de
Paris. É um bom rapaz, esse reparador de estradas chamado Jacques. Sirva-lhe
algo para beber, mulher!
Outro homem, então, ergueu-se e saiu da taberna.
Madame Defarge colocou um copo cheio diante do reparador de estradas chamado
Jacques, que tirou o barrete e bebeu um trago de vinho. No interior de sua
camisa, ele carregava uma côdea de pão preto. Comeu-a aos poucos, sentando-se
junto de madame Defarge, mastigando e tomando longos goles de vinho. Um
terceiro indivíduo se levantou e saiu como os outros dois.
Defarge também se refrescou com um trago de vinho —
serviu-se, porém, de menos do que fora ofertado ao forasteiro, já que, para
ele, a bebida não era uma raridade — e permaneceu de pé, esperando que o
companheiro terminasse seu almoço. Não olhava para ninguém e ninguém olhava
para ele, nem mesmo madame Defarge, que retomara seu tricô.
— Acabou seu repasto, amigo? — ele perguntou, quando
viu que não havia mais pão.
— Sim, obrigado.
— Então, siga-me. Verá o quarto que eu lhe disse que
poderia ocupar. Acho que lhe convém perfeitamente.
Saíram para a rua, dirigiram-se ao pátio, de lá
subiram pela escada íngreme e encontraram-se finalmente num sótão onde outrora
havia um homem de cabelos brancos, que costumava sentar-se num banco baixo,
inclinado para a frente, empenhado na manufatura de sapatos.
Agora não se via nenhum homem de cabelos brancos
ali, mas sim os três indivíduos que tinham saído da taberna, cada qual por seu
turno. Entre eles e o homem de cabelos brancos, que estava tão distante,
existia apenas um pequeno elo, constituído pelo fato de que os três rapazes
certa vez o haviam espreitado pelas frestas da parede. Defarge fechou a porta
cuidadosamente e disse em voz baixa:
— Jacques primeiro, Jacques segundo, Jacques
terceiro, esta é a testemunha localizada por mim, Jacques quarto. Ele lhes
contará tudo. Fale, Jacques quinto.
O reparador de estradas enxugou o suor da testa com
o barrete azul e indagou:
— Por onde deverei começar, monsieur?
— Comece pelo começo — foi a ponderada resposta de
Defarge.
— Vi-o então, messieurs — principiou o
reparador de estradas —, um ano antes do verão corrente, sob a carruagem do
marquês, pendurado numa corrente. Exatamente deste jeito como lhes mostro. Eu
já ia deixar o trabalho, o sol se deitava, a carruagem do marquês subia a
colina devagar, e ele arrastado pela corrente, desta maneira.
Mais uma vez, o reparador de estradas exibiu o
número completo de seu espetáculo. No qual decerto já atingira a perfeição,
pois sua pantomima representara a única fonte de indispensável entretenimento
do vilarejo ao longo do ano.
Jacques primeiro interrompeu-o para inquirir se
havia visto o homem antes.
— Nunca — respondeu o reparador de estradas,
retornando à posição perpendicular. Jacques terceiro quis saber como o
reconheceu, mais tarde.
— Por sua elevada estatura — replicou o reparador de
estradas com simplicidade, tocando a ponta do nariz com o dedo. — Quando monsieur
marquês me perguntou aquela noite: “Como era ele?”, eu respondi: “Alto como
um fantasma”.
— Podia ter dito que era pequeno como um anão —
interveio Jacques segundo.
— Que sabia eu? A coisa não estava feita ainda, nem
ele confiava em mim. Observe que, naquelas circunstâncias, nem sequer ofereci
meu testemunho. Monsieur marquês apontou-me com o dedo, eu estava perto
da pequena fonte, e esbravejou: “Traga-me aqui aquele sujeito!” Juro-lhes, messieurs,
que tive de obedecer, mas não lhe ofereci nada.
— Ele está certo, Jacques — murmurou Defarge ao que
aparteara. — Continue!
— Ótimo! — exclamou o reparador de estradas com ar
de mistério. — O homem alto fugira e deram-lhe busca... há quantos meses? Nove,
dez, onze?
— O número não importa — disse Defarge. — Ele estava
bem escondido, mas, infelizmente, acabaram por encontrá-lo. Adiante!
— Bem. Estou eu de novo trabalhando no alto da
colina e o sol se deitando outra vez. Guardo as ferramentas para descer até
minha casa na aldeia, onde já escureceu, quando levanto os olhos e vejo seis
soldados subindo o morro. No meio deles segue um homem alto, com os braços
amarrados ao lado do corpo, assim.
Com o auxílio do indispensável barrete, imitou o
homem com os cotovelos bem presos aos quadris por cordas atadas com nós nas
costas.
— Eu me escondi, messieurs, atrás da minha
pilha de pedras, para ver os soldados e seu prisioneiro passarem, pois é uma
estrada tão deserta que qualquer coisa serve de distração, e, a princípio,
quando se aproximavam, só pude constatar que eram seis soldados levando um
homem alto amarrado. Pareciam quase negros para a minha vista, exceto do lado
onde o sol se deitava, onde tudo se avermelhava, messieurs. Vi, também,
que as suas sombras se alongavam pelo lado oposto da estrada e subiam a colina,
como sombras de gigantes. Reparei depois que estavam cobertos de pó e que a poeira
do caminho se movia com eles à medida que marchavam. Mas, quando chegaram bem
perto de mim, reconheci o homem alto e ele me reconheceu também. Ah, como o
homem teria ficado contente se tivesse descido a encosta como naquela tarde em
que o encontrei, quase no mesmo lugar.
O camponês descrevia a cena como se a tivesse diante
dos olhos, o que evidenciava que observara tudo de maneira vívida. Talvez ele
não houvesse visto muitas coisas em sua vida.
— Não demonstrei aos soldados que conhecia o homem
alto, nem ele mostrou reconhecer-me. Mas nós nos reconhecemos, sabíamos disso e
nos comunicamos através dos olhos. “Vamos”, ordenou o chefe da companhia,
indicando a aldeia, “levem-no depressa à sua sepultura”, e os soldados
apressaram a marcha. Eu os segui.
Os braços do prisioneiro tinham inchado porque as
cordas estavam muito apertadas; seus sapatos de madeira eram grandes e pesados
e faziam-no coxear. Como coxeasse, ia mais devagar, e, por isso, os soldados o
empurravam com as armas, assim! E imitou os movimentos de um homem sendo
impelido para a frente pelos cabos de arcabuzes.
— Quando desciam a colina correndo como loucos, ele
caiu. Os soldados riram e o puseram de pé outra vez. A poeira grudara-se em seu
rosto ensangüentado, mas o homem não podia limpá-lo. Então, riram de novo.
Chegaram finalmente à aldeia. Todo o mundo correu para ver. Passaram pelo
moinho e subiram até a prisão. O vilarejo inteiro presenciou o portão abrir-se
para o negrume da noite e tragá-lo, assim!
O aldeão escancarou a boca o mais que pôde e
fechou-a em seguida, rangendo sonoramente os dentes. Notando que ele não queria
abrir a boca para não estragar o efeito da pantomima, Defarge instou:
— Prossiga, Jacques.
— Toda a aldeia — continuou o reparador de estradas,
baixando a voz e pisando na ponta dos pés —, toda a aldeia rumou para a fonte;
toda a aldeia cochichou; depois, toda a aldeia dormiu e sonhou com o infeliz
trancafiado atrás das grades da prisão no desfiladeiro, de onde não sairia
senão para morrer. Na manhã seguinte, quando ia para o trabalho com as
ferramentas sobre o ombro e comendo a minha fatia de pão preto pelo caminho,
dei uma volta pelo cárcere. Lá o vi, bem no alto, atrás das barras de uma gaiola
de ferro, ensangüentado e empoeirado como na noite anterior, olhando para mim.
Tinha ainda os braços atados e não pôde fazer-me um aceno. Seus olhos me fitaram
como os de um morto.
Defarge e os outros três trocaram olhares sombrios.
Durante a narrativa do camponês, o semblante de cada um mostrava-se soturno,
contido e vingativo. A atitude de todos, agora que estavam protegidos pelo
sigilo, era autoritária. Ostentavam o aspecto de juízes implacáveis. Jacques
primeiro e Jacques segundo estavam sentados sobre a enxerga, com o queixo
apoiado na mão. O terceiro, não menos atento, ajoelhado por detrás, acariciava
com os dedos crispados os lábios e o nariz. Defarge, de pé entre os três e o
narrador, que se colocara perto da janela, olhava ora para este, ora para os
outros.
— Continue, Jacques — insistiu Defarge.
— Ele ficou lá, em sua gaiola de ferro, por alguns
dias. O povo da aldeia o espiava de longe, porque tinha medo. Mas sempre
espiava a distância a prisão sobre o penhasco. Ao anoitecer, terminada a tarefa
do dia, nós nos reuníamos na fonte e todos os rostos se voltavam para o
cárcere. Antes, eles se voltavam para a casa da posta, agora, para o cárcere.
Tagarelava-se muito ao redor da fonte. Uns diziam em voz baixa que ele não
seria executado; diziam que haviam sido apresentadas petições, provando que
enlouquecera com a morte do filho; diziam até mesmo que uma dessas petições havia
chegado às mãos do próprio rei. Que sei eu? É possível. Talvez sim, talvez não.
— Então, ouça, Jacques — interpôs o número um do
nome severamente imposto:
— Saiba que uma das petições foi apresentada ao rei
e à rainha. Todos nós, com exceção de você, vimos o rei recebê-la, na sua
carruagem, ao lado da rainha. Foi Defarge quem, pondo em risco a vida,
lançou-se na frente dos cavalos com a petição nas mãos.
— E mais uma vez, ouça, Jacques — aparteou o Jacques
que estava ajoelhado atrás dos companheiros, seus dedos vagando de um lado para
o outro convulsivamente, com avidez, como se buscassem alguma coisa que nada
tinha a ver com comida ou bebida —, a guarda real com seus cavalos e pés
cercou-o e o agrediu. Está ouvindo, Jacques?
— Estou sim, messieurs.
— Então, continue — interveio Defarge.
— Nas conversas da fonte — prosseguiu o camponês —,
havia outros que diziam que ele fora trazido à aldeia a fim de ser levado à
morte no mesmo local do crime, e que certamente seria executado. Comentavam até
que, por ter assassinado monseigneur e sendo monseigneur o pai de
seus feudatários, ou servos, como preferirem, seria executado na qualidade de
parricida. Um dos velhos do vilarejo afirmou que a mão direita do prisioneiro,
armada com o punhal, seria queimada sob a vista dele. Em seguida, nas feridas
que lhe fariam nos braços, peito e pernas, derramariam azeite fervente
misturado com chumbo derretido, resina, cera e enxofre, e finalmente o esquartejariam
com a ajuda de quatro cavalos fortes. Segundo o velho, tudo isso fora feito com
um homem que atentara contra a vida do rei Luís XV. Mas como eu poderia saber
se estava mentindo, se não sou letrado?
— Nesse caso, ouça ainda uma vez, Jacques — replicou
o homem da mão irrequieta e de aspecto ávido. — O nome do prisioneiro era
Damiens e o executaram desse modo em plena luz do dia, nas ruas desta cidade de
Paris.
E nada foi mais notado, na vasta platéia que
assistiu ao espetáculo, do que a multidão de damas distintas e elegantes que
permaneceram ali, atentas, até o final, até o final Jacques, quando já a noite
caía e ele, tendo perdido as duas pernas e um braço, ainda respirava! Isso
aconteceu há... qual é a sua idade?
— Trinta e cinco anos — respondeu o reparador de
estradas, que aparentava sessenta.
— Isso aconteceu quando você contava mais de dez
anos. Podia ter assistido.
— Basta! — gritou Defarge, impaciente. — Com os
diabos! Continue.
— Está bem. Uns cochichavam isto, outros cochichavam
aquilo. Não se falava de outra coisa. Até a fonte parecia murmurar sobre o
caso. Por fim, numa noite de domingo, quando toda a aldeia dormia, vários
soldados desceram da prisão arrastando as armas pelas pedras da pequenina rua.
Lavradores cavaram, os carpinteiros manejaram suas ferramentas, os soldados
riram e cantaram. De manhã, junto à fonte, erguia-se uma forca de doze metros
de altura, envenenando-lhe a água.
O reparador de estradas olhou através do teto
do sótão, e não para ele, e apontou como se avistasse a forca em algum
ponto do céu.
— Toda a atividade cessou. Ninguém levou as vacas
para o pasto e estas ficaram ali com as pessoas reunidas em torno da fonte. Ao
meio-dia, ouviu-se o rufar de tambores. Os soldados, que haviam marchado de
volta para a prisão durante a madrugada, retornavam com o condenado. Ele vinha
amarrado como antes, e em sua boca havia uma mordaça apertada de tal forma que
ele parecia rir — o camponês fez a mímica, pregueando as faces com os polegares
dos cantos da boca às orelhas. — No alto da forca, tinham colocado o punhal,
com a lâmina virada para cima, com a ponta para o ar. Ele foi enforcado ali, a
doze metros de altura, e lá ficou dependurado, envenenando a água da fonte.
Os quatro ouvintes olharam uns para os outros, enquanto
o reparador de estradas usava o barrete azul para enxugar o rosto, que se
banhara de suor quando ele recordou o espetáculo.
— É assustador, messieurs. Como podem as
mulheres e as crianças tirar água da fonte? Quem consegue conversar ao
anoitecer, sob a sombra do enforcado? Sob aquela sombra, compreendem? Quando
deixei o vilarejo, segunda-feira à tarde, o sol se deitava. Chegando ao alto da
colina, voltei o rosto e vi a sombra sobre a igreja, sobre o moinho, sobre o
cárcere. Parecia alcançar, messieurs, até o ponto onde a terra se junta
com o céu.
O homem faminto roía as unhas, fitando os
companheiros, e os seus dedos crispavam-se com a avidez que o devorava.
— Isso é tudo, messieurs. Saí da aldeia ao
pôr-do-sol, como me haviam instruído, e andei durante toda a noite e metade do
dia seguinte, até que encontrei esse camarada, como me avisaram que
encontraria. Junto com ele, continuei o caminho, ora a pé, ora a cavalo, pelo
resto do dia de ontem e pela noite passada. E aqui estou!
Depois de um lúgubre silêncio, o primeiro Jacques
observou:
— Muito bom! O senhor contou e representou com
fidelidade. Poderia sair e esperar por nós do lado de fora da porta um momento?
— Com prazer — replicou o reparador de estradas, a
quem Defarge acompanhou até o topo da escada, deixou-o lá sentado e regressou.
Os outros três se haviam levantado e conversavam, bem próximos, quando Defarge
entrou.
— Que lhe parece, Jacques? — perguntou o número um.
— Deve ser registrado?
— Deve, sim — respondeu o taberneiro. — Como
condenação à destruição.
— Magnífico! — cacarejou o homem ávido.
— O castelo e toda a família? — indagou Jacques
primeiro. — O castelo e toda a família — retorquiu Defarge. — Extermínio.
O homem faminto repetiu, num cacarejo extasiado:
— Magnífico! — roendo as unhas da outra mão.
— Tem certeza — inquiriu o segundo Jacques a Defarge
— de que nosso modo de manter os registros não nos trará nenhum problema? Sem
dúvida, o método é seguro, pois ninguém, além de nós, pode decifrar os
registros. Mas... será que saberemos sempre decifrá-los... será que ela
conseguirá?
— Jacques — replicou Defarge com orgulho —, se
madame, minha esposa, foi capaz de memorizar cada registro, ela não perderá uma
só palavra, nem uma sílaba sequer. Gravados nos pontos de tricô em símbolos que
ela mesma criou, serão para madame claros como o sol. Confie em madame Defarge.
É mais fácil o último dos covardes apagar sua própria existência do que
apagar-se da malha de minha mulher uma letra do seu nome ou da lista dos seus
crimes. Um murmúrio de aprovação e confiança acolheu essas palavras, e o homem
ávido indagou:
— Devemos mandar logo esse camponês de volta ao
vilarejo? Espero que sim.
Ele é muito simplório. Não seria um tanto perigoso?
— O homem não sabe de nada — ponderou Defarge —. Ao
menos, nada além do que poderia facilmente içá-lo para uma forca da mesma
altura que descreveu. Encarrego-me dele. Deixe-o comigo. Tomarei conta do pobre
diabo e o mandarei embora quando convier. Ele deseja ver o rei, a rainha e toda
a corte. Proponho-me a dar-lhe esse prazer no domingo.
— O quê? — exclamou o homem ávido, arregalando os
olhos. — Não seria um mal sinal, esse desejo de ver a realeza e a nobreza?
— Jacques — disse Defarge —, se quer que um gato
tenha sede, acene-lhe com leite; e ponha um cão diante da presa, se quiser que
ele a ataque um dia.
Nada mais foi dito. Ao saírem, encontraram o
camponês cochilando no topo da escada. Aconselharam-no a ir deitar-se na
enxerga para repousar. O homem não necessitava de persuasão e logo caiu num
sono profundo.
Havia em Paris alojamentos piores do que a taberna
de Defarge para um escravo tacanho como aquele. Exceto por um misterioso receio
de madame Defarge, que o assombrava constantemente, a nova vida do reparador de
estradas agradava-o plenamente. Entretanto, a dona da casa permanecia o dia
inteiro na taberna sem lhe prestar a menor atenção, tão determinada a não
perceber que a presença dele ali tivesse conexão com qualquer coisa oculta sob
a superfície, que ele estremecia em seus sapatos de madeira sempre que seus
olhos se fixavam nela. Refletia com seus botões que era impossível prever o que
a dama simularia em seguida e convencera-se de que, se lhe desse na cabeça
afirmar que o tinha visto matar e esfolar alguém, não vacilaria em coisa alguma
até o fim e continuaria a afirmar o mesmo até vê-lo enforcado.
Assim, pois, quando chegou o domingo, o reparador de
estradas não ficou satisfeito, embora declarasse o contrário, ao descobrir que
madame Defarge os acompanharia a Versalhes. Era desconcertante ter a seu lado,
durante todo o caminho, uma mulher tricotando ininterruptamente em público; e
ainda mais desconcertante era aquele tricô nas mãos dela no meio da multidão
que esperava para ver a chegada do rei e da rainha.
— A senhora trabalha bastante — observou um homem
que estava por perto.
— Sim — respondeu madame Defarge —, tenho muito o
que fazer.
— Que tipo de malhas a senhora tece?
— Vários tipos.
— Quais?
— Por exemplo — ripostou madame Defarge, tranquilamente
—, mortalhas.
O homem afastou-se assim que pôde, e o reparador de
estradas começou a abanarse com o barrete azul, sentindo o tempo subitamente
quente e opressivo. Se ele precisava de um rei e uma rainha para
restabelecer-se, teve sorte em encontrar o remédio à mão, pois, pouco depois, o
rei com uma grande mandíbula e a rainha com um belo rosto chegaram em sua
carruagem dourada, escoltados pelo resplandecente “Olho de Boi” de sua corte,
uma cintilante multidão de damas sorridentes e lordes elegantes. Diante de
tantas jóias e tanta seda, de tantas figuras empoadas, esplendorosas,
luxuosamente trajadas, e dos rostos belos e desdenhosos dos nobres de ambos os
sexos, o camponês ficou a tal ponto entusiasmado que, no meio da sua exaltação,
ergueu vivas ao rei, à rainha, aos grandes senhores, a tudo e a todos, como se
não tivesse ouvido os estranhos Jacques. Em seguida, admirando os jardins, as galerias,
os terraços, as fontes e os bancos de relva e contemplando novamente o rei, a rainha
e toda a comitiva, tornou a erguer vivas, ficando tão comovido que desatou a chorar.
Durante três horas, ele gritou e soluçou como criança. Defarge segurava-o pelo colarinho,
como para evitar que, levado por tão grande arrebatamento, ele se atirasse sobre
os objetos daquela devoção momentânea, rompendo-os em pedaços.
— Bravo! — elogiou o taberneiro, batendo-lhe no
ombro, quando o espetáculo terminou. — Você é um bom rapaz.
O reparador de estradas, voltando a si, ficou
confuso, julgando ter cometido um erro ao entregar-se àqueles arroubos. Mas,
não... não cometera nenhum erro.
— Você é o companheiro que desejávamos —
murmurou-lhe Defarge ao ouvido.
— Fez os idiotas pensarem que isso durará para
sempre. Contudo, a insolência deles está no fim.
— Ei! — exclamou o reparador de estradas com ar
pensativo. — É verdade.
— Esses tolos não desconfiam de nada. Enquanto
desprezam o ar que você respira, e o impediriam de respirar para sempre, não só
a você, mas a todos da sua espécie, preferindo a morte de cem pessoas de sua
classe à morte de um de seus cavalos ou cães, eles só sabem o que o seu bafejo
lhes conta. Que essas manifestações os enganem. Não os enganarão por muito
tempo mais.
Madame Defarge olhou para o hóspede com ar de
superioridade e inclinou a cabeça em confirmação.
— Quanto ao senhor — ela comentou —, creio que
gritará e chorará por qualquer coisa colorida e ruidosa. Estou enganada? Diga!
— Para falar a verdade, madame, acho que tem razão.
No momento.
— Se lhe apontassem uma porção de bonecas, para que
as fizesse em pedaços e as despojasse para seu proveito, o senhor escolheria a
mais brilhante e a mais rica. Não é?
— Decerto, minha senhora.
— E se o pusessem diante de um bando de pássaros que
não pudessem voar e o mandassem arrancar-lhes a plumagem para seu proveito, o
senhor escolheria os que tivessem a plumagem mais vistosa. Não é?
— É fato, minha senhora.
— Pois o senhor viu aqui magníficas bonecas e
pássaros de rica plumagem — declarou madame Defarge, indicando o lugar onde
acabara de ser representado o espetáculo. — Agora, volte para casa!
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