Capítulo XXVII - Passos Ecoando
Como já observamos, era um lugar prodigioso por seus
ecos, aquela esquina onde o doutor vivia. Sempre ocupada enovelando o fio de
ouro com o qual ligava seu marido, seu pai, ela própria, e sua velha governanta
e companheira, a uma vida de serena felicidade, Lucie integrava-se na atmosfera
de quietude dessa casa, naquela esquina tranqüila e ressoante, ouvindo os
passos dos anos ecoando.
A princípio, embora ela fosse uma jovem esposa
perfeitamente feliz, havia momentos em que seu trabalho tombava lentamente de
suas mãos, e seus olhos se turvavam, pois havia alguma coisa chegando nos ecos,
um leve rumor, muito longínquo, e ainda quase inaudível, que fazia seu coração
confranger-se com uma angústia indefinível. Esperanças e dúvidas palpitantes,
esperança de um amor como ela ainda não conhecera; dúvidas, de sua permanência
na terra, para desfrutar dessa nova felicidade, travavam um conflito em seu
íntimo. Entre esses ecos, então, distinguia o som de passos em seu jazigo
precoce; e os pensamentos sobre a desolação e os lamentos do marido que seria
deixado para trás lançavam-se sobre seus olhos, onde se quebravam como ondas.
O tempo passou, e sua pequena Lucie repousava em seu
regaço. Então, em meio ao ecos que avançavam, havia os passos de seus
pequeninos pés e o som de suas palavras balbuciadas. Por mais que ressoassem os
maiores ecos, a jovem mãe ao lado do berço podia sempre ouvir aqueles passos
miúdos se aproximando. Eles chegavam, e a casa nas sombras era iluminada com um
riso de criança, e o Divino amigo das criancinhas, a quem, em sua aflição, ela
havia confiado os entes queridos, parecia ter sua filha em Seus braços, da
mesma forma que Ele carregara os pequeninos de outros tempos, fazendo disso uma
exultação sagrada para ela.
Sempre ocupada enovelando o fio de ouro que os
mantinha a todos juntos, entretecendo a sua benévola influência na trama de
suas vidas, e concentrando nisso todos as suas forças, Lucie não ouviu durante
anos senão ecos amigáveis e tranqüilizadores. Os passos de seu marido soavam
fortes e prósperos no meio deles; também os de seu pai, firmes e regulares. Já
a senhorita Pross, atrelada com tais cadeias, despertava novos ecos, como um
indócil cavalo de batalha mantido sob chicote, relinchando e escavando o solo
sob o plátano do jardim.
Mesmo quando havia sons lamentosos entre os demais,
não havia neles crueldade ou amargura. Mesmo quando cabelos dourados, como os
seus próprios, jaziam como uma auréola no travesseiro, envolvendo o rosto
abatido de um garotinho, que dizia, com um sorriso radiante: “Papai e mamãe,
meus queridos, eu lamento muito ter de deixá-los, e à minha linda irmãzinha;
mas estou sendo chamado, e devo partir!”, não eram lágrimas de agonia aquelas
que molharam seu rosto de jovem mãe, como se soubesse que o espírito que
abandonou os seus braços estivera ali apenas sob custódia.
Sofreu por ele e não o impediu. Eles viram a face do
Senhor. Oh! Pai, abençoadas palavras!
Então, o rumorejar das asas de um anjo veio a
misturar-se com os outros ecos, que, assim, deixaram de ser apenas terrenos,
passando a abrigar em seu seio algo de celestial. Os sussurros das brisas que
sopravam sobre um pequeno sepulcro do jardim mesclaram-se com eles, e ambos
eram ouvidos por Lucie, num silencioso murmúrio, como o ressonar de um mar de
verão adormecido sobre as areias da praia, como também pela pequena Lucie,
comicamente atenta às tarefas da manhã, ou vestindo uma boneca aos pés de sua
mãe, tagarelando nos idiomas das duas cidades que estavam amalgamadas em sua
vida.
Os ecos raramente respondiam aos passos verdadeiros
de Sydney Carton. Cerca de meia dúzia de vezes ao ano, quando muito, ele
reclamava seu privilégio de chegar sem ser convidado, e passar a tarde com
eles, como fazia antes com freqüência. Nunca veio alterado pela bebida. E outra
coisa era sussurrada sobre ele pelos ecos, a qual tem sido sussurrada por todos
os ecos leais de todas as eras.
Nenhum homem já amou realmente uma mulher, perdeu-a,
e preservou esse amor inocente mas inabalável em seu espírito quando ela se
tornou esposa e mãe. Seus filhos, contudo, nutriam uma estranha compaixão por
ele, uma comiseração instintiva e delicada. Que invisível sensibilidade é
tocada num caso como esse, isso os ecos não revelam; mas é assim, e era assim
aqui. Carton foi o primeiro desconhecido para quem a pequena Lucie estendeu os
bracinhos gorduchos, e ele conservou seu lugar naquele coração mesmo depois de
ela crescer. O garotinho balbuciou a seu respeito quase até o último suspiro:
“Pobre Carton! Beije-o por mim!”
O senhor Stryver abria caminho com os ombros pelas
trilhas da lei, como um grande engenho esforçando-se em águas turbulentas, e
arrastando o indispensável amigo em seu agitado curso, feito um barco levado a
reboque em sua popa.
Como só os barcos que se encontram em apuros, a
maioria já se tendo afundado, são favorecidos dessa forma, assim Sydney vivia
sempre à beira do naufrágio.
Contudo, um hábito cômodo e poderoso, infelizmente
mais cômodo e poderoso para ele do que qualquer estimulante senso do próprio
mérito ou da própria degradação, impunha-lhe aquela vida como a única possível;
e ele não mais pensava em emergir daquela condição de chacal diante do leão, da
mesma forma como jamais ocorre a um chacal de verdade transformar-se em leão.
Stryver estava rico. Desposara uma viúva espalhafatosa dotada de uma
propriedade e de três filhos que nada tinham de particularmente brilhante além
do cabelo liso que lhes escorria pelas cabeças rechonchudas.
Esses três jovens cavalheiros, o senhor Stryver,
exsudando um apadrinhamento da espécie mais ofensiva por todos os poros,
conduziu, como a três carneiros, ao sossegado recanto do Soho, oferecendo-os
como pupilos ao marido de Lucie, solicitando com sua proverbial delicadeza:
— Olá! Eis aqui três pedaços de pão com queijo para
seu piquenique matrimonial, Darnay!
A polida rejeição dos três pedaços de pão com queijo
fez o senhor Stryver inchar de indignação, a qual ele, mais tarde, transformou
em vantagem que enriquecia a educação dos rapazes, por meio de uma advertência
para que estes se conscientizassem do orgulho dos mendigos, do qual era exemplo
a atitude do professor. Ele também adquirira o costume de declamar para a
senhora Stryver, por sobre a garrafa de vinho que esvaziara, acerca das
artimanhas de que a senhora Darnay se valera para “agarrá-lo”, e sobre as preciosas
artimanhas de que ele tivera de lançar mão, madame, para não se deixar
“agarrar”. Alguns de seus colegas do Tribunal Superior de Justiça, que ocasionalmente
o ajudavam a esvaziar as garrafas de vinho e a mentir, desculpavam-no por esta
última alegando que ele contava aquela versão com tamanha freqüência que passara
a acreditar em sua veracidade, o que certamente é um inadmissível agravante de
uma ofensa originalmente grave, que justificaria que esse ofensor fosse levado
para algum lugar convenientemente retirado e lá enforcado.
Este era um dos ecos que Lucie, às vezes pensativa,
outras vezes alegre e sorridente, ouvia na esquina ressoante, até sua filhinha
atingir os seis anos de idade.
Quão próximos de seu coração os ecos dos passos de
sua filha chegavam, bem como os de seu querido pai, sempre ativos e confiantes,
e os de seu adorado marido, não é preciso dizer. Nem é necessário mencionar que
o mais leve dos ecos de sua família unida, guiada por ela com tal sabedoria e
parcimoniosa, que era mais farta do que qualquer esbanjamento, elegância,
soava-lhe como música. Tampouco é preciso contar que havia ecos extremamente
doces aos seus ouvidos, como os do pai ao repetir que ela se tornara ainda mais
devotada a ele depois do casamento (se isso era possível), ou como os do
marido, ao reiterar-lhe que nenhum cuidado ou dever parecia dividir-lhe a atenção
e o amor por ele, e lhe perguntava:
— Qual é o segredo mágico, minha querida, que lhe
permite dedicar-se tão exclusivamente a todos e a cada um de nós, sem nunca se
mostrar cansada, apressada, ou demasiado ocupada?
Contudo, havia outros ecos, vindos de longe, que
rugiam surda e ameaçadoramente na esquina durante todo aquele espaço de tempo.
E era agora, por volta do sexto aniversário da pequena Lucie, que esses
começaram a ribombar de modo assustador, como se provenientes de uma grande
tormenta na França que fazia erguerem-se os mares.
Numa noite em meados de julho de 1789, o senhor
Lorry chegou tarde do banco e sentou-se ao lado de Lucie e do marido junto à janela.
Era uma noite quente e abafada, que os lembrou de uma outra noite, num domingo,
quando contemplaram os raios de uma tremenda tempestade naquela mesma sala.
— Eu já pensava — comentou o senhor Lorry,
empurrando a peruca marrom para trás — que teria de passar a noite no Tellson.
Estivemos às voltas com tantos negócios, hoje, que nem sabíamos por onde
começar. Reina uma tal inquietação em Paris que nós literalmente sofremos uma
enxurrada de depósitos e de transferências de fundos! Nossos clientes de lá parecem
não conseguir confiar suas propriedades aos nossos cuidados com rapidez
suficiente. Creio que se tornou uma verdadeira mania, entre eles, enviar seus
bens para a Inglaterra.
— É um mau prenúncio — observou Charles.
— Mau prenúncio, meu caro Darnay? Sim, mas não
sabemos o que tem causado esse transtorno. As pessoas são tão pouco razoáveis!
Alguns de nós, do Tellson, estamos envelhecendo, e não podemos ser
sobrecarregados dessa forma sem um bom motivo.
— Ainda assim — replicou Darnay —, o senhor sabe quão
escuro e ameaçador está o céu.
— Eu sei disso, por certo — anuiu o senhor Lorry,
procurando persuadir-se de que seu humor, usualmente bom, se havia
destemperado, e resmungou: — mas estou determinado a desabafar depois de um dia
cheio de aborrecimentos. Que é feito de Manette?
— Eis-me aqui — exclamou o médico, entrando naquele
instante na sala escura.
— Fico feliz que esteja em casa. Pois a azáfama de
hoje e os maus pressentimentos que me rondaram o dia inteiro enervaram-me sem
razão. Não pretende sair, pois não?
— Não. Pretendo jogar uma partida de gamão com o
senhor, se a idéia lhe agradar
— propôs o doutor.
— Não creio que me agrade, se permite a franqueza.
Não estou disposto a ser derrotado pelo senhor, esta noite. A bandeja de chá
ainda está por aí, Lucie? Não a vejo.
— É claro que está. Eu a guardei para o senhor.
— Muito obrigado, minha querida. Nossa adorável
garotinha está a salvo na cama?
— Dormindo como um anjo.
— Perfeito. Todos a salvo e bem! Não sei por que
estariam outra coisa que não a salvo e bem, graças a Deus. É que me estafei
tanto hoje... já não sou jovem como antes!
Meu chá, minha querida! Grato. Agora, venha e
sente-se no seu lugar. Fiquemos quietos e ouçamos os ecos sobre os quais você
tem uma curiosa teoria.
— Não se trata de uma teoria, mas de uma fantasia.
— Uma fantasia, que seja, minha sensata amiga —
retrucou o senhor Lorry, dando tapinhas carinhosos em sua mão —, esses ecos são
muito numerosos e altos, não? Escutem...
Precipitados, ensandecidos e perigosos passos abriam
caminho à força na vida de cada um, difíceis de purificar de novo, depois de
terem manchado de vermelho, os passos enfurecidos que vinham de longe, de Santo
Antônio, enquanto o pequeno grupo sentava-se à janela em Londres.
Santo Antônio havia sido, naquela manhã, uma grande
e escurecida vastidão de espantalhos ondulando de um lado para o outro, com
freqüentes clarões relampejando sobre as cabeças encapeladas, onde lâminas de
aço e baionetas reluziam ao sol. Um formidável rugido brotou da garganta de
Santo Antônio, e uma floresta de braços nus ergueu-se no ar como galhos de
árvores crestados pelo vento do inverno: todos os dedos convulsivamente
apertados em torno de cada arma ou improvisação de arma lançada das
profundezas, não importando a distância.
Quem lhas havia dado, de onde vieram, onde foram
fabricadas, através de que ação elas tortuosamente estremeciam e se sacudiam,
às vintenas de cada vez, sobre as cabeças da multidão, como uma espécie de
relâmpago, isso ninguém da multidão saberia dizer; contudo, mosquetes eram
distribuídos, bem como cartuchos, pólvora e balas, barras de aço e de ferro,
facas, machados, picaretas e cada arma que a perturbada engenhosidade pudesse
descobrir ou imaginar. As pessoas que não pudessem munir-se de nenhuma outra
coisa feriam as mãos até sangrarem arrancando pedras e tijolos dos muros. Cada
pulso e coração em Santo Antônio batia tenso e febril. Cada criatura viva ali
não dava nenhum valor à própria vida, enlouquecida com uma apaixonada
disposição de sacrificá-la.
Assim as águas de um remoinho rodopiam em torno de
um ponto central, assim esse raivoso círculo voluteava ao redor da taberna de
Defarge, e todos os seres humanos que caíam naquele caldeirão tendiam ao
vórtice onde Defarge, já enegrecido de pólvora misturada com suor, distribuía
or-dens e armas, mandava um homem recuar, enviava outro para a frente,
desarmava alguns para armar outros, labutava e se empenhava em meio ao tumulto.
— Fique perto de mim, Jacques terceiro — bradou
Defarge —, e vocês, Jacques primeiro e segundo, separemse e coloquem-se na
liderança de tantos patriotas quantos conseguirem. Onde está minha mulher?
— Eh! Bem! Eis-me aqui! — disse madame, tranqüila
como de hábito, embora não tricotasse naquele dia. A resoluta mão direita de
madame ocupava-se de um machado, no lugar dos costumeiros implementos mais
suaves, e em seu cinto trazia uma pistola e uma faca impiedosa.
— Aonde vai, minha esposa?
— Eu vou — ripostou madame — com meu marido, por
ora. Você me verá à frente das mulheres dentro em pouco.
— Então, venha! — gritou Defarge, com voz
tonitruante.
— Patriotas e amigos, estamos prontos! À Bastilha!!
Com um frêmito que ressoou como se todo o alento da
França assumisse a forma da execrada palavra, o mar humano ergueu-se, onda por
onda, profundeza por profundeza, e inundou a cidade até aquele ponto. Sinos de
alarme repicando, tambores rufando, o mar enfurecido estrondeando em sua nova
praia... o ataque teve início.
Fossos profundos, pontes levadiças duplas, muralhas
maciças de pedra, oito grandes torres, canhões, mosquetes, fogo e fumaça.
Através do fogo e da fumaça, no fogo e na fumaça, pois o mar arremessou-o para
um canhão, e, naquele instante, ele se tornou um canhoneiro, Defarge da taberna
lutava como um soldado intrépido já havia duas ferozes horas.
Fossos profundos, pontes levadiças simples, muralhas
maciças de pedra, oito grandes torres, canhões, mosquetes, fogo e fumaça. Uma
ponte caiu!
Trabalhem, companheiros, todos ao trabalho!
Trabalhem, Jacques primeiro, Jacques segundo, Jacques terceiro, Jacques quarto,
Jacques quinquagésimo, Jacques dois mil, Jacques vinte mil! Em nome de todos os
santos e de todos os demônios, como preferirem, trabalhem! — Assim comandava
Defarge da taberna, ainda em seu canhão, agora fervendo.
— Sigam-me, mulheres! — conclamou madame esposa
dele. — Ora! Nós poderemos matar tão bem quanto os homens, depois que o lugar
for tomado! — E atrás dela, com um estridente e sequioso alarido, seguiu uma
tropa de mulheres armadas das mais diversas maneiras, mas todas armadas com
igual avidez e desejo de vingança.
Canhões, mosquetes, fogo e fumaça. Mas, ainda, o
fosso profundo, a ponte levadiça dupla, as muralhas maciças de pedra e as oito
grandes torres. Ligeiros deslocamentos do mar bravio, causados pelos feridos
que tombavam. Armas lampejantes, tochas bruxuleantes, fumegantes carroças com
fardos de feno úmido, o trabalho árduo de erguer barricadas em todas as
direções, gritos, rajadas, imprecações, bravura sem limites, estrondos,
colisões e estrépitos, e os rugidos furiosos do mar humano. Mas, ainda, o fosso
profundo, a ponte levadiça simples, as muralhas maciças de pedra e as oito
grandes torres, e ainda Defarge da taberna em seu canhão, incandescente após
quatro ferozes horas de serviço.
Uma bandeira branca dentro da fortaleza e uma
conferência, esta mal perceptível no fragor da tempestade. De repente, o mar
eleva-se, incomensuravelmente mais alto e maior, e impulsiona Defarge da
taberna pela ponte levadiça abaixada, para dentro das muralhas maciças de
pedra, por entre as oito grandes torres que afinal se renderam!
Tão irresistível era a força do oceano que o impelia
que mesmo tomar fôlego ou voltar a cabeça era impraticável como se ele se
estivesse debatendo nas ondas dos tempestuosos mares do sul. Lá, apoiado numa
quina da muralha, forcejou para olhar em torno. Jacques terceiro estava a seu
lado. Madame Defarge, ainda liderando algumas mulheres, encontrava-se a curta
distância, empunhando sua faca. Por toda a parte havia tumulto, exultação,
ensurdecedora e maníaca confusão, um barulho estarrecedor, uma furiosa
pantomima.
— Os prisioneiros!
— Os arquivos!
— As celas secretas!
— Os instrumentos de tortura!
— Os prisioneiros!
Entre todos esses gritos, e dez mil incoerências,
“Os prisioneiros!” era o mais proclamado pelo mar que se precipitava para
dentro como se houvesse uma eternidade de pessoas, tanto quanto de tempo e de
espaço. Quando os primeiros vagalhões passaram, carregando os funcionários da
prisão e ameaçando-os todos de morte imediata se restasse um único recanto por
revelar, Defarge pousou a mão forte no peito de um desses funcionários, um
homem com cabelos grisalhos, que trazia uma tocha, separou-o dos demais e
imprensou-o contra a muralha.
— Mostre-me a Torre Norte! — ordenou Defarge. —
Depressa!
— Eu o farei de bom grado — replicou o homem — se o
senhor vier comigo. Mas não há ninguém lá.
— O que significa Cento e cinco, Torre Norte? —
indagou Defarge. — Depressa!
— O que significa, senhor?
— Será que designa um prisioneiro ou uma cela? Terei
de matá-lo para que me responda?
— Mate-o! — cacarejou Jacques terceiro, que se
aproximara. — Monsieur, trata-se de uma cela.
— Mostre-me!
— Venha por aqui, então.
Jacques terceiro, com sua habitual avidez, e
evidentemente desapontado com o fato de o diálogo tomar um rumo que não
prometia derramamento de sangue, segurou o braço de Defarge, que segurara o do
carcereiro. Os três haviam juntado as cabeças durante a breve discussão, para
que pudessem ouvir uns aos outros, tão tremendo era o ruído do oceano humano em
sua irrupção na fortaleza, e em sua inundação dos pátios, dos corredores e
escadarias. Fora, também, as vagas chocavam-se contra as muralhas com um
bramido profundo, rouco, do qual, ocasionalmente, destacavam-se gritos que se erguiam
como a espuma do mar.
Através de sombrias passagens abobadadas onde a luz
do dia jamais brilhava, das hediondas portas que trancavam covis e jaulas
escuras, descendo escadas escorregadias e subindo novamente por íngremes rampas
de pedra e tijolo, mais parecendo cachoeiras secas do que escadarias, Defarge,
o carcereiro e Jacques terceiro, unidos pelos braços, seguiram o mais depressa
que podiam. Aqui e ali, principalmente no início, a inundação os seguiu e
passou adiante. Contudo, depois que desceram, contornaram e subiram a torre,
não cruzaram com mais ninguém. Isolados ali pela maciça espessura dos muros e
arcos, a tempestade que rugia dentro e fora da fortaleza só era audível para
eles de uma forma abafada e longínqua, como se o barulho do qual tinham vindo
quase lhes houvesse destruído o sentido da audição.
O carcereiro parou diante de uma porta baixa, pôs a
chave na rangente fechadura, empurrou a porta com esforço e anunciou:
— Cento e cinco, Torre Norte.
Havia uma janela pequena e sem vidro no alto da
parede, com um anteparo de pedra na frente, de modo que só se podia ver o céu
curvando-se e olhando para cima; uma pequena chaminé fechada por uma grade de
madeira, a poucos metros; uma pilha de cinzas na lareira; um tamborete, uma
mesa e uma enxerga de palha. E havia as quatro paredes enegrecidas, numa das
quais via-se uma argola de ferro enferrujada.
— Ilumine devagar as paredes, para que eu possa vê-las
— ordenou Defarge ao carcereiro.
O homem obedeceu e Defarge, com os olhos, acompanhou
a tocha de perto.
— Pare! Olhe ali, Jacques.
— Um “A” e um “M” — cacarejou Jacques terceiro,
lendo avidamente.
— Alexandre Manette — murmurou Defarge em seu
ouvido, seguindo o traçado das letras com seu dedo incrustado de pólvora. — E
aqui, ele escreveu “um pobre médico”. E foi ele, sem dúvida, que rabiscou um
calendário nesta pedra. O que é isso em sua mão? Uma barra de ferro? Passe-a
para mim!
Ele ainda tinha o bota-fogo de sua arma na mão.
Efetuou uma troca súbita dos dois instrumentos e, voltando para o tamborete
carcomido e para a mesa, quebrou-os em pedaços.
— Levante a tocha! — comandou com irritação ao
carcereiro. — Procure bem por entre esses fragmentos, Jacques. E veja! Aqui
está a minha faca — atirou-a para ele —, corte o colchão e examine-lhe a palha.
Você, levante mais a tocha!
Lançou um olhar ameaçador ao carcereiro, introduziu-se
na chaminé, rompeu a grade e bateu nas paredes. Desprendeu-se um pouco de pó e
de cal e ele baixou a cabeça para evitar que lhe caíssem nos olhos. Em seguida,
revistou minuciosamente as cinzas, as aberturas e as fendas mais
insignificantes nas quais a sua arma esbarrara.
— Nada na madeira nem na palha, Jacques?
— Nada.
— Vamos juntar tudo no meio da cela. Assim! Erga a
tocha!
O carcereiro ateou fogo na pequena pilha, que ardeu
alto e quente. Curvando-se de novo para cruzar a porta arqueada e baixa, eles
deixaram o fogo crepitando e refizeram o caminho até o pátio, parecendo
recobrar o sentido da audição à medida que desciam, até imergirem-se de novo na
torrente.
Encontraram-na ondulando e agitando-se em busca de
Defarge. Santo Antônio clamava pela presença de seu taberneiro, para que este
se pusesse à frente da tropa encarregada do governador que defendera a Bastilha
e disparara contra o povo. Do contrário, o governador não chegaria ao Palácio
de Ville para julgamento. Do contrário, o governador escaparia e o sangue do
povo (que, subitamente, adquirira algum valor, após tantos séculos sem valor
algum) não seria vingado.
No uivante universo de paixão e luta que parecia
circundar esse velho e cruel oficial, conspícuo em sua casaca cinza guarnecida
de vermelho, só havia uma pessoa calma e impassível, e essa era uma mulher.
— Vejam, ali está meu marido! — ela bradou,
apontando para ele. — Vejam Defarge! — Ela se manteve imóvel junto dele através
das ruas, enquanto Defarge e os demais o carregavam; permaneceu imóvel junto
dele quando se aproximavam de seu destino e começaram a golpeá-lo por trás;
imóvel junto dele também quando a copiosa chuva de punhaladas e pauladas se
abateu pesada sobre o homem ferido; estava tão perto quando ele caiu morto que,
subitamente animada, ela pôs o pé sobre seu pescoço e, com sua cruel faca,
havia muito pronta para atacar, decepou-lhe a cabeça. A hora chegara, quando
Santo Antônio executaria sua medonha idéia de dependurar homens em vez de
lampiões para mostrar o que podia ser e fazer. O sangue de Santo Antônio
fervia, e o sangue da tirania e da dominação por mão de ferro esfriara,
esfriara nos degraus do Palácio de Ville, onde o corpo do governador jazia,
esfriara no sapato de madame Defarge, que pisara o corpo para facilitar a
mutilação.
— Baixem o lampião! — gritava Santo Antônio, depois
de procurar em redor um outro objeto de suplício. — Eis aqui um dos soldados
dele para ficar de guarda!
A sentinela se balançou nos ares e a onda seguiu o
seu curso.
O mar de águas escuras e ameaçadoras, cujas ondas
destruidoras se sucediam com fúria, cujas profundezas eram ainda insondáveis e
cuja força era ainda desconhecida. O mar sem remorso de formas turbulentamente
convulsionadas, de vozes que clamavam por vingança e de faces temperadas nas
fornalhas do sofrimento até que o toque da piedade não mais pudesse marcá-las.
Contudo, no oceano de faces em que cada expressão
feroz e furiosa se estampava em cores vivas, havia dois grupos de faces, com
sete em cada um, tão fortemente contrastantes com as demais que nunca o mar
revolto arrojou de suas águas restos mais memoráveis. Sete faces de
prisioneiros, subitamente libertados pela tormenta que lhes arrombara o
sepulcro, foram carregadas nos ombros: todas amedrontadas, perdidas, perplexas
e intrigadas, como se o Juízo Final houvesse chegado e aqueles que se
regozijavam ao seu redor fossem espíritos extraviados. Outras sete faces havia,
carregadas nos ombros, sete faces mortas, cujas pálpebras caídas e olhos
semicerrados aguardavam o Juízo Final. Faces impassíveis que, entretanto,
exibiam uma expressão não destruída, mas suspensa. Faces que pareciam estar
numa temível pausa, como se fossem levantar as pálpebras caídas e prestar
testemunho com os lábios exangues:
“Vós fizestes isso!”.
Sete prisioneiros libertados, sete ensangüentadas
cabeças nos mastros, as chaves da amaldiçoada fortaleza das oito grandes
torres, algumas cartas descobertas e outras recordações de prisioneiros dos
velhos tempos, havia muito, mortos de desespero, todas essas coisas, e outras
da mesma natureza, os passos ressoantes de Santo Antônio escoltaram pelas ruas
de Paris em meados de julho de 1789. Agora, que os céus derrotassem a fantasia
de Lucie Darnay e mantivessem aqueles longínquos passos bem longe de sua vida!
Pois eles são precipitados, ensandecidos e perigosos. E, tantos anos depois de
um barril de vinho ter-se quebrado na porta da taberna de Defarge, eles não são
tão fáceis de purificar, por se terem uma vez manchado de vermelho.
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