Capítulo XXX - Atraído pelo Abismo

Foram três anos de tempestade. Três anos em que se ergueram chamas devoradoras e ondas furiosas de um mar bravio, em que a terra estremeceu, convulsionada pela maré de um oceano que subia e subia, para o terror de todos os que o contemplavam da praia. Três aniversários da pequena Lucie somaram-se ao fio dourado com que Lucie Darnay tecia a vida serena do seu lar.
Os moradores do lugar de acústica prodigiosa haviam passado muitas noites escutando ecos assustadores, pois não ignoravam que os passos que lhes chegavam aos ouvidos eram os de um povo em tumulto, que, agindo sob uma bandeira vermelha, declarava a pátria em perigo e que, por obra de um terrível encantamento, se havia transformado em um bando de feras.
Monseigneur, tomado em sentido figurado, como classe, estava assombrado por ver que seu país o prezava tão pouco que não somente o arrojara do solo pátrio como também gostaria de expulsá-lo deste mundo. A exemplo daquele camponês da fábula que, depois de tanto trabalho para invocar o demônio, ficou tão espantado que fugiu em vez de lhe fazer perguntas, sua excelência, depois de ter lido durante tantos anos o livro de orações de trás para a frente, e de valer-se de todos os meios mágicos para obrigar o demônio a aparecer-lhe, mal o avistou ficou tão aterrorizado que deitou a correr.
O “Olho de Boi” da corte se dispersara, para não servir de alvo a uma saraivada de patrióticas balas. Nunca fora prudente enxergar através daquele olho, que unia à arrogância de Lúcifer as paixões de Sardanapalo e a cegueira de uma toupeira.
Toda a corte empreendera a fuga, desde o centro, constituído pelo círculo mais íntimo, até os limites apodrecidos onde imperavam a corrupção e a hipocrisia. A realeza já não existia; fora presa e sitiada em seu palácio e acabava de ser “suspensa” no momento em que as últimas notícias chegaram à Inglaterra.
Era o mês de agosto de 1792 e monseigneur, a essa altura, já se encontrava em completa dispersão. Naturalmente, o Banco Tellson e Companhia, de Londres, era o seu quartel-general. Existe a crença de que os espíritos, preferencialmente, frequentam os lugares por onde seus corpos antes transitavam e sua excelência, agora com os bolsos vazios, dirigia-se sempre à casa onde tinha estado o seu dinheiro.
Aquele era o lugar que dispensava maior consideração a esses franceses, e, além disso, o Tellson era um estabelecimento magnífico, demonstrando grande liberalidade para com os antigos clientes que haviam caído de sua elevada posição; mais ainda, alguns nobres, prevendo o saque ou a confisco de seus bens, tinham transferido seus fundos para Londres desde os primeiros dias da tempestade. Por todas essas razões, todos os que chegavam da França acorriam ao Tellson, o que tornava o banco, em termos de informações, uma espécie de bolsa privilegiada. E esse fato era tão conhecido do público, sendo tão numerosas as pessoas que iam ali em busca de notícias, que o Tellson havia tomado a providência de anotar numa folha de papel as últimas novidades recebidas e afixá-lo nas janelas do prédio para que todos os que passavam por Temple Bar pudessem ler.
Charles Darnay, numa tarde abafada e úmida, com os cotovelos apoiados sobre a mesa do escritório do senhor Lorry, conversava com ele em voz baixa. Aquela espécie de “câmara dos condenados”, outrora reservada às entrevistas com “A Casa”, servia agora de departamento de notícias e encontrava-se repleta de curiosos. Faltava apenas meia hora para se fecharem as portas do banco.
— Mas, embora o senhor seja a pessoa mais cheia de vitalidade que eu conheça...
— disse Charles, um tanto hesitante — eu ainda devo sugerir que...
— Compreendo. Que sou demasiado velho? — perguntou o senhor Lorry.
— Uma estação rigorosa, uma longa jornada, a incerteza dos meios de transporte, um país desorganizado, uma cidade onde nem mesmo o senhor estará seguro...
— Meu caro Charles — rebateu o senhor Lorry com descontraída segurança —, a sua argumentação não me desaconselha a partir, mas sim a permanecer lá. Creia-me, não correrei riscos. Ninguém se importará com um velho de quase oitenta anos quando há tantas pessoas bem mais interessantes para atrair-lhes a atenção. Quanto à desorganização de Paris, não fosse por esta, não haveria necessidade de enviar alguém que conheça bem a cidade e os negócios e que, além disso, seja de confiança do Tellson. E quanto às incertezas da viagem, a longa jornada e o frio do inverno, se, depois de todos esses anos, eu não estivesse preparado para submeter-me a algumas poucas inconveniências pelo bem do Tellson, quem estaria?
— Desejaria tanto ir — revelou Charles, agitado e como se pensasse em voz alta.
— Não diga! E ainda me faz um sermão sobre prudência! — exclamou o senhor Lorry. — Desejaria ir, é? Um francês de nascimento? Você é mesmo um sábio conselheiro!
— Meu caro senhor Lorry, é porque sou francês que a idéia (que, entretanto, eu nem pretendia mencionar aqui) me tem ocorrido com freqüência. É impossível alguém não pensar, tendo nutrido uma certa compaixão por um povo desafortunado e tendo lhe deixado alguma coisa — ele retomou o ar pensativo anterior —, que talvez lhe fosse possível ser ouvido, que talvez tivesse o poder de persuadir esse povo a controlar-se. Ontem à noite, depois que o senhor saiu, quando eu conversava com Lucie...
— Quando conversava com Lucie — o senhor Lorry repetiu. — Imagino se você não sente remorso ao mencionar o nome de Lucie enquanto acalenta o desejo de ir para a França!
— Contudo, eu não irei — replicou Charles Darnay, com um sorriso. — Mas o senhor, sim.
— Com toda a certeza. A verdade, meu caro Darnay — o senhor Lorry lançou um olhar à distante “Casa” e baixou a voz —, é que você nem avalia a dificuldade com que se fazem as nossas transações e o perigo que correm os nossos livros e documentos de além-mar. Só Deus sabe as comprometedoras conseqüências que sofreriam inúmeras pessoas, se alguns desses documentos fossem destruídos ou confiscados. E isso pode ocorrer a qualquer momento, como não ignora, pois ninguém pode assegurar que Paris não esteja em chamas hoje ou que não seja saqueada amanhã! Agora, a providência de, sem perda de tempo, selecionar criteriosamente e queimar esses papéis, ou, ao contrário, trazê-los de lá em segurança, não está ao alcance de ninguém além de mim. Devo recusar-me, se o Tellson sabe disso, o Tellson, cujo pão me tem alimentado nos últimos sessenta anos, só porque minhas juntas estão um pouco enrijecidas? Ora, eu não passo de um garoto para muitos de meus colegas!
— Como admiro a coragem de seu espírito jovem, senhor Lorry.
— Bobagem. E devo lembrá-lo, meu caro Charles — o senhor Lorry tornou a fitar “A Casa” —, que é praticamente impossível tirar o que quer que seja de Paris, no presente momento. Hoje nos foram trazidos documentos preciosos (o que lhe estou contando é estritamente confidencial. Eu não deveria comentar sobre esse assunto nem com você) pelos mais estranhos portadores que pode imaginar. Cada um deles esteve a um triz de ter a cabeça decepada, ao atravessar as barreiras. Em outros tempos, nossa correspondência ia e vinha com a mesma facilidade que havia na velha e prática Inglaterra. Atualmente, porém, tudo é retido.
— O senhor partirá mesmo esta noite?
— Oh, sim. A urgência é demasiado grande para admitir atrasos.
— Não levará ninguém com o senhor?
— Propuseram-me toda sorte de acompanhantes, mas nenhum deles me convém. Pretendo levar Jerry. Jerry tem sido, há muitos anos, meu guarda-costas nas noites de domingo e me acostumei com ele. Ninguém suspeitará de que seja mais do que um buldogue inglês, ou que tenha outro desígnio senão o de morder quem quer que ouse tocar-lhe no amo.
— Devo repetir que admiro a coragem de seu espírito jovem.
— E eu repito que isso é bobagem. Depois que tiver cumprido a minha pequena missão, talvez aceite a proposta do Tellson de aposentar-me e viver em paz. Já é tempo de pensar em envelhecer.
Esse diálogo se passara diante da escrivaninha habitual do senhor Lorry, a dois passos de distância de onde monseigneur se vangloriava de como, em breve, se vingaria daquela plebe ordinária. Era próprio de sua excelência, em meio aos revezes da vida de refugiado, e era muito próprio da ortodoxia britânica, falar dessa terrível Revolução como se esta fosse a única safra, sob o céu, colhida sem jamais ter sido semeada, como se nada jamais tivesse sido feito ou deixado de fazer que conduzisse a tal resultado, como se os observadores dos milhões de miseráveis da França e de seus desviados e malbaratados recursos, que, de outra forma, os teriam tornado prósperos, não houvessem, anos antes, percebido a sua inexorabilidade e não tivessem registrado com todas as letras tudo o que viram. Tal fatuidade, combinada com os extravagantes projetos de monseigneur para a restauração de uma ordem que se havia totalmente exaurido, exaurindo também a terra e os céus, era intolerável para qualquer homem sensato que conhecesse a verdade. Tanta fatuidade encheu os ouvidos de Charles Darnay e zumbiu perturbadoramente em seu cérebro, misturando-se à latente inquietação que ultimamente o vinha perseguindo.
Entre os presentes, encontrava-se o senhor Stryver, advogado do Tribunal Superior de Justiça, já bem avançado em sua carreira rumo a um posto oficial, que discorria em voz alta sobre o tema. Expunha ele a monseigneur as estratégias que concebera para exterminar o povo e eliminá-lo da face da Terra, que passaria muito bem sem aquela ralé, e para a consecução de diversos objetivos afins, estratégias essas semelhantes, em sua natureza, à abolição das águias por meio do espargimento de sal nas caudas de toda a espécie. A ele, Charles escutava com especial antagonismo, dividido entre o impulso de sair para não ouvir mais nada e o desejo de ficar para contestar o que diziam, quando o inevitável aconteceu, pondo fim ao conflito.
“A Casa” aproximou-se do senhor Lorry e, colocando sobre a sua escrivaninha um sujo envelope fechado, indagou-lhe se já havia descoberto quem era o destinatário daquela carta. “A Casa” pousou o envelope tão perto de Darnay que este, rapidamente, leu o sobrescrito, pois ali constava seu verdadeiro nome. O endereço, traduzido para o inglês, rezava: “Urgentíssimo. Ao senhor outrora marquês de St. Evrémonde, da França, aos cuidados dos senhores Tellson & Cia., banqueiros, Londres, Inglaterra”.
Na manhã do casamento, o doutor Manette lhe impusera a promessa de manter em segredo a sua verdadeira identidade, a menos que ele, o doutor, o desobrigasse do juramento. Ninguém mais, além dos dois, conhecia seu nome. A própria esposa não alimentava nenhuma desconfiança. Muito menos o senhor Lorry.
— Não — respondeu o senhor Lorry à “Casa”. — Perguntei a todos os presentes, mas ninguém soube informar quem é e onde se pode encontrar esse cavalheiro.
Como os ponteiros do relógio aproximavam-se da hora de fechar o banco, havia uma grande movimentação entre os palradores visitantes, que, no caminho para a porta, passavam pela mesa do senhor Lorry, que lhes exibia o envelope com uma expressão interrogativa no semblante. Monseigneur contemplou a carta, na pessoa dos maquinadores e indignados refugiados; e Este, Aquele e Aquele Outro, todos tinham um insulto na ponta da língua, em inglês ou em francês, a respeito do desaparecido marquês.
— Ele é sobrinho, suponho, em todo o caso, um degenerado sucessor, do ilustre marquês assassinado — declarou um deles. — Felizmente, jamais o conheci.
— Um covarde que abandonou seu posto há alguns anos — acusou-o monseigneur, que acabara de chegar, esbaforido, de Paris.
— Contaminado com as novas doutrinas — acrescentou um terceiro, examinando o sobrescrito com o monóculo grudado no olho —, desafiou o antigo marquês, abandonou as propriedades que herdou e deixou-as para a horda de desordeiros. Eles o recompensarão, espero, do modo como merece.
— O quê? — espantou-se o palreiro Stryver. — Ele fez isso? Então é assim o tal sujeito? Vejamos qual é o seu infame nome.
Darnay, incapaz de conter-se por mais tempo, tocou o ombro do senhor Stryver e anunciou:
— Eu conheço o tal sujeito.
— Por Júpiter! Conhece? — replicou Stryver. — Lamento muito.
— Por quê?
— Como “por quê”, senhor Darnay? Não ouviu o que disseram? Nos dias de hoje, é melhor nem fazer esse tipo de pergunta.
— Mas eu insisto. Por quê?
— Nesse caso, terei de repetir-lhe que lamento muito. Lamento ouvi-lo formular perguntas tão disparatadas. Estamos falando de um sujeito que, infectado pelos mais pestilentos e blasfemos preceitos da crueldade, abandonou sua propriedade para a mais torpe gentalha do mundo, que pro-move assassinato por atacado, e ainda me pergunta por que lamento o fato de um homem responsável pela instrução dos nossos jovens conhecer esse velhaco? Bem, eu lhe responderei. Lamento porque acredito que o patife é capaz de contaminar o ambiente.
Cônscio da necessidade de manter segredo, Darnay, com grande dificuldade, controlou-se e ripostou:
— Talvez o senhor não tenha compreendido o cavalheiro.
— Mas compreendo os meios de colocá-lo num beco sem saída, senhor Darnay — retrucou Stryver —, e o farei. Se o tal sujeito é um cavalheiro, tem razão, eu não o compreendo. Pode transmitir-lhe isso, com os meus cumprimentos. Também pode transmitir-lhe, de minha parte, que eu imagino se ele, depois de abandonar seus bens materiais e sua posição por essa corja sanguinária, não se tornou um de seus líderes. Mas, não, cavalheiros — discursou Stryver, olhando em torno e estalando os dedos. — Conheço alguma coisa da natureza humana, e lhes garanto que não existe ninguém que se entregue ao arbítrio de tão preciosos protégés. Não, cavalheiros. Ele sempre se esquivará da briga, sendo o primeiro a pôr o pé na estrada para fugir. Com essas palavras, e um último estalar de dedos, o senhor Stryver abriu caminho com os ombros para a rua Fleet, sob a aprovação geral de seus ouvintes. O senhor Lorry e Charles Darnay ficaram a sós, após a debandada geral que ocorreu no banco.
— Poderia encarregar-se da carta? — o senhor Lorry solicitou. — Sabe onde entregá-la?
— Sei.
— Se puder explicar que recebemos o envelope há vários dias, mas não conseguimos localizar o destinatário, eu lhe agradeço.
— Não há problema. Partirá daqui ou de sua casa?
— Daqui, às oito horas.
— Eu voltarei para despedir-me do senhor.
Profundamente aborrecido consigo mesmo, com Stryver e com a maioria dos homens, Darnay esperou até chegar a Temple para abrir e ler a carta. Seu conteúdo era o seguinte:

“Prisão de l’Abbaye, Paris.
21 de junho de 1792.
SENHOR OUTRORA MARQUÊS.
Depois de ter sofrido por um longo tempo o perigo de morrer nas mãos dos habitantes da aldeia, fui preso, com grande violência e indignidade, e obrigado a fazer a pé a longa jornada até Paris. Na estrada, infligiram-me um grande sofrimento. E isso não é tudo. Demoliram minha casa, destruíram-na até os alicerces.
O crime pelo qual me prenderam, monsieur outrora marquês, e pelo qual serei levado perante o tribunal e perderei minha vida (sem o seu generoso auxílio), é, segundo me disseram, o de traição contra a majestade do povo, por ter agido contra seus interesses e em benefício de um emigrado. Em vão argumentei que agi em favor do povo, e não o contrário, ao seguir as ordens que recebi do senhor. Em vão argumentei que, antes de confiscarem a propriedade do emigrado, eu tinha remitido os impostos que me haviam cessado de pagar; que eu deixara de coletar as rendas e que jamais tomara qualquer providência legal contra os devedores. A única resposta que obtive foi que agi em benefício do emigrado, e ƒonde está o emigrado?”
Ah! Digníssimo monsieur outrora marquês, onde está esse emigrado? Até enquanto durmo, eu me pergunto, onde está esse emigrado? Indago aos céus, será que ele não me virá libertar? Mas não obtenho resposta. Ah, monsieur outrora marquês, envio meu desolado lamento para além-mar, na esperança de que este talvez o alcance através dos ouvidos do grande banco de Tilson, tão conhecido aqui em Paris!
Pelo amor de Deus, da justiça, da generosidade, da honra de seu nobre nome, eu lhe suplico, monsieur outrora marquês, que me socorra e me liberte. Meu único erro foi ter sido leal ao senhor. Oh, monsieur outrora marquês, rogo-lhe que também seja leal comigo!
Dos horrores desta prisão, donde a cada hora me aproximo mais e mais da morte, eu me coloco, monsieur outrora marquês, aos seus dolorosos e infelizes serviços.
Seu aflito
GABELLE.”

A latente inquietação que perseguia Darnay veio à tona com todo o vigor após a leitura da carta. A situação de perigo em que se encontrava um velho e bom criado, cujo único crime consistia em se ter mantido fiel ao seu senhor e à sua família, fazia o sentimento de culpa transbordar em sua mente. Caminhando pelo Temple, ruminava sobre o que deveria fazer, era tão grande sua humilhação que quase ocultou o rosto para que os transeuntes não o vissem.
Ele sabia muito bem que, em sua abominação pelo ato que culminou em outros terríveis atos e granjeou uma péssima reputação para toda a família, em suas ressentidas suspeitas em relação ao tio, e na repugnância com a qual sua consciência encarava uma estrutura que desmoronava, mas que, no entanto, esperava-se que ele preservasse, não atuara de maneira correta. Ele sabia muito bem que, em seu amor por Lucie, sua renúncia às próprias prerrogativas sociais, embora a idéia de renunciar não fosse de forma alguma recente em seus pensamentos, se dera de forma apressada e incompleta. Sabia que devia ter sistematicamente dirigido e supervisionado o processo, e que até desejara fazêlo, porém jamais o fizera.
A felicidade que experimentava em seu adotivo lar inglês, a necessidade de trabalhar para garantir o próprio sustento, as mudanças aceleradas e os problemas que se sucediam com tanta rapidez que os eventos de um semana anulavam os planos formulados na semana anterior, eram circunstâncias sob as quais, ele sabia bem, acabara cedendo, embora não sem inquietação, mas ainda sem uma contínua e acumulativa resistência à inércia. Era verdade que aguardara a hora certa para agir, mas, na França, o povo se ergueu e lutou e a hora passou sem que a aproveitasse. A nobreza fugia em bandos da França por todas as estradas e atalhos, enquanto suas propriedades eram confiscadas e destruídas e seus nomes, enlameados. De tudo isso ele sabia, como decerto saberiam as novas autoridades francesas que tinham o poder de acusá-lo.
Contudo, não oprimira ninguém e a ninguém aprisionara. Em momento algum exigira que lhe pagassem seus direitos, dos quais abriu mão por livre e espontânea vontade para ingressar num mundo onde não contava com quaisquer privilégios e onde conquistou um espaço próprio e o pão de cada dia à custa de seu trabalho e esforço.
Monsieur Gabelle havia mantido a empobrecida propriedade conforme as instruções que lhe deixara por escrito, segundo as quais devia poupar o povo e dar-lhe o pouco que houvesse para dar, coisas como lenha para o inverno que os credores lhes deixassem, e o que restasse da colheita, no verão, e, sem dúvida, cuidara para que tudo fosse formalmente registrado, para a sua própria segurança, de forma que agora pudesse servir-lhe de defesa.
A carta favorecia a desesperada resolução para a qual Charles Darnay já se vinha inclinando. A de ir a Paris.
Sim. Como aconteceu com o marinheiro da lenda, os ventos e as correntezas impeliam-no na direção da pedraímã, que o atraía inexoravelmente para o abismo. E para o abismo todas as reflexões que lhe assaltavam a mente arrastavam-no, com uma velocidade e uma força cada vez mais terríveis. A inquietação latente se devia ao fato de que objetivos perversos se engendravam em sua própria e infeliz pátria através dos meios mais cruéis, enquanto ele, que não podia deixar de considerar-se melhor do que seus pares, não estava lá para tentar deter a carnificina e defender os clamores por misericórdia e humanidade. Com a inquietação a sufocá-lo e a acusá-lo, ele se viu conduzido àquela situação comparável ao do bravo marinheiro cujo senso de dever era tão intenso. Sob o efeito dessa comparação (que lhe era prejudicial), dera ouvidos ao sarcasmo de monseigneur, que o aferroara dolorosamente, e ao de Stryver, que, mais do que o dos outros, fora grosseiro e irritante, por motivos muito antigos. Para culminar, havia a carta de Gabelle, prisioneiro inocente cuja vida estava em risco, que apelava para sua justiça, honra e bom nome.
Sua decisão estava tomada. Ele devia ir a Paris.
Sim. A pedra-ímã atraía-o e ele tinha de navegar até que o abismo o tragasse. Darnay não enxergava a pedra e vislumbrava quase nenhum risco. O intento que o levara a proceder como procedera, mesmo não havendo completado a tarefa, afigurava-se-lhe como um fato que mereceria o reconhecimento e a gratidão de seus compatriotas quando chegasse à França. Então, a gloriosa visão de praticar o bem, que frequentemente constitui a encorajadora miragem de tantas boas almas, formou-se diante dele, que se imaginou, em sua ilusão, dotado de alguma influência para guiar os caminhos da Revolução, a qual se perdia nos desvios da fúria, tornando-se a cada instante mais aterradoramente selvagem.
Enquanto caminhava de um lado para o outro com a resolução já tomada, refletia que nem Lucie nem o pai deveriam saber de nada até ele estar longe. Era preciso poupar Lucie da dor da separação. Quanto ao doutor Manette, sempre relutante em dirigir seus pensamentos para o que ocorria em sua pátria, deveria tomar conhecimento de sua partida como um fato consumado e não como um projeto que se pudesse discutir. Além disso, não tinha idéia do quanto poderia desabafar com o sogro acerca do desconforto de sua situação sem reavivar-lhe antigas e dolorosas associações, as quais já o havia influenciado em outros tempos.
Ele caminhou de um lado para o outro, com a mente fervilhando, até aproximar-se a hora de regressar ao Tellson e despedir-se do senhor Lorry. Embora pretendesse procurar o velho amigo assim que chegasse a Paris, preferia não lhe revelar suas intenções por enquanto.
Uma carruagem atrelada a cavalos de posta estava pronta na porta do banco, e Jerry aguardava, de botas e vestido para viagem.
— Entreguei a carta — anunciou Darnay ao senhor Lorry. — O destinatário deume a resposta, mas não consenti que a mandasse por escrito. Será que o senhor a transmitiria verbalmente?
— Com muito gosto — aquiesceu o senhor Lorry —, se não for perigoso.
— De modo algum. Embora se destine a um prisioneiro do cárcere de Abbaye.
— Como se chama? — perguntou o senhor Lorry, abrindo o caderninho de notas.
— Gabelle.
— Gabelle. E qual é a mensagem para o infeliz Gabelle na prisão?
— Diga-lhe simplesmente que ele recebeu a carta e irá vê-lo.
— A visita tem hora marcada?
— Não. Ele partirá amanhã à noite.
— Devo mencionar alguma outra pessoa?
— Não.
Darnay auxiliou o amigo a envolver-se em casacos e mantas e saíram da atmosfera aquecida do velho banco para o ar nevoento da rua Fleet.
— Abraços a Lucie e à pequena — disse o senhor Lorry ao partir. — E cuide bem das duas durante a minha ausência.
Charles Darnay sacudiu a cabeça e sorriu, enquanto a carruagem se afastava.
Naquele noite, era 14 de agosto, Darnay recolheu-se tarde, demorando-se na sala para escrever duas fervorosas cartas. Uma era para Lucie, explicando o imperioso dever que o obrigava a ir a Paris e expondo, por fim, as razões pelas quais tinha certeza de que não se envolveria em nenhum perigo pessoal. A outra era para o doutor, confiando Lucie e a filha a seus cuidados e repetindo as mesmas palavras convictas para tranqüilizá-lo. A ambos, avisou que lhes escreveria imediatamente após a chegada, como prova de sua segurança.
Foi um dia terrível, aquele em que ficou entre as pessoas que amava, com a primeira restrição a separá-lo delas desde o início de sua vida em comum. Era penoso preservar a inocente farsa, da qual eles nem de longe suspeitavam. Contudo, um olhar afetuoso à esposa, tão feliz e ocupada com seus afazeres domésticos, fortaleceu-lhe a decisão de não lhe revelar seu plano; estivera tentado a contar-lhe tudo, tanto lhe era estranha a situação de agir sem seu apoio, e o dia transcorreu rapidamente. No começo da noite, ele a abraçou e tomou no colo a homônima não menos querida, fingindo que retornaria logo (inventara um compromisso como desculpa para ausentar-se, tendo deixado arrumada uma valise de roupas), e mergulhou na névoa pesada das ruas, sentindo o coração ainda mais pesado.
A força invisível atraía-o aceleradamente, agora, e todas as ondas e ventos o impeliam para o abismo. Ele deixara as duas cartas com um mensageiro de confiança, encarregando-o de entregá-las meia hora depois da meia-noite e nem um minuto antes. Alugou um cavalo até Dover. E principiou a jornada. “Pelo amor de Deus, da justiça, da generosidade e da honra de seu nobre nome!” foi a súplica do pobre prisioneiro, com a qual fortalecia o coração desfalecido ao deixar para trás tudo o que lhe era caro no mundo, e deixava-se arrastar para a pedra-ímã.

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