Capítulo XXXIII - A Sombra

Uma das primeiras considerações que assomaram ao espírito profissional do senhor Lorry, quando amanheceu, foi a seguinte: não tinha o direito de comprometer a casa Tellson, abrigando sob o seu teto a esposa de um prisioneiro emigrado. Tudo o que ele possuía, a sua segurança, a própria vida, teria sacrificado por Lucie e sua filha, sem um momento de hesitação. Porém, o que se encontrava sob a sua custódia não lhe pertencia e, quanto a esse ponto, era o homem de negócios escrupuloso e rígido.
A princípio, seu pensamento voltou-se para Defarge e cogitou em procurá-lo na taberna, a fim de aconselhar-se sobre onde encontraria um local seguro naquela cidade desvairada. Todavia, a mesma cogitação que lhe apontou Defarge o fez repudiá-lo. Ele vivia no bairro mais violento de Paris, sobre o qual, sem dúvida, exercia grande influência e onde se dedicava a suas perigosas atividades.
Já era quase meio-dia, e como o doutor ainda não havia regressado e como cada minuto de demora podia comprometer o banco, o senhor Lorry revelou suas inquietações a Lucie. Ela lhe respondeu que seu pai planejava alugar uma casa por curta temporada por ali mesmo, nas imediações do banco. Como não houvesse objeções a opor, e como previa que lhes seria impossível partir, ainda que Charles fosse libertado, pois não permitiriam que ele saísse de Paris, o senhor Lorry foi procurar uma habitação e não tardou a encontrá-la, situada numa travessa retirada, cujas casas, com as venezianas melancolicamente cerradas, indicavam estarem desabitadas.
Imediatamente, removeu para lá Lucie, a menina e a senhorita Pross, proporcionando-lhes todo o conforto que pôde, muito mais do que ele próprio usufruía. Deixou Jerry com elas, como um homem de confiança para guardar-lhes a porta, já que ele seria capaz de suportar até pancadas na cabeça para protegê-las, se necessário, e retornou às suas obrigações. Entregou-se ao trabalho com o coração pesado e a mente atribulada, de forma que o dia transcorreu com dolorosa lentidão.
Por fim, anoiteceu e o banco fechou as portas. O senhor Lorry estava novamente sozinho no aposento que ocupara na noite anterior, meditando sobre o que faria em seguida, quando ouviu passos subindo a escada. Pouco depois, perfilou-se diante dele um homem que, observando-o atentamente, chamou-o pelo nome.
— Seu criado — cumprimentou-o o senhor Lorry. — O senhor me conhece?
Tratava-se de um homem de constituição forte, cabelos negros e crespos, com idade entre quarenta e cinco e cinquenta anos. Em resposta, ele repetiu, com exatamente a mesma ênfase, a pergunta:
— O senhor me conhece?
— Já o vi em algum lugar.
— Talvez na minha taberna?
Demonstrando grande interesse e agitação, o senhor Lorry indagou:
— Vem da parte do doutor Manette?
— Sim, venho da parte do doutor Manette.
— E o que ele diz? O que ele me envia?
Defarge depositou um pedaço de papel em sua mão trêmula de ansiedade. A letra pertencia ao doutor Manette:
“Charles está a salvo e seguro, porém não seria seguro eu deixar este lugar agora. Consegui que o portador deste fizesse o favor de levar um bilhete de Charles para Lucie. Leve-o à presença dela”.
Aquelas palavras foram escritas em La Force, havia apenas uma hora.
— Quer ter a bondade de acompanhar-me — solicitou o senhor Lorry alegremente, experimentando um grande alívio depois de ler a mensagem em voz alta
— à casa da esposa de Darnay?
— Sim — assentiu Defarge.
Ainda sem perceber o tom curiosamente seco e mecânico de Defarge, o senhor Lorry pôs o chapéu e ambos desceram até o pátio. Lá encontraram duas mulheres, uma das quais fazia tricô.
— Madame Defarge, com toda a certeza! — exclamou o senhor Lorry, que a deixara exatamente na mesma atividade dezessete anos antes.
— Sim, é ela — confirmou o marido.
— Madame irá conosco? — inquiriu o senhor Lorry, notando que ela os acompanhava.
— Sim. Para que possa reconhecer os rostos e conhecer as pessoas. É para a segurança delas.
Começando a reparar nos modos de Defarge, o senhor Lorry fitou-o com desconfiança e tomou a dianteira. As duas mulheres o seguiam. A segunda delas era A Vingança.
Atravessaram as ruas o mais rápido que puderam, subiram as escadas do novo domicílio, foram recebidos por Jerry e encontraram Lucie sozinha, chorando. Ela se deixou arrebatar pela alegria ao ouvir as notícias que o senhor Lorry lhe trouxe de seu marido e apertou as mãos que trouxeram o bilhete, sem suspeitar que aquelas mãos haviam desempenhado na véspera uma tarefa lúgubre, tendo deixado de matar-lhe o marido por mero acaso.

“Minha querida,
Tenha coragem. Eu estou bem, pois seu pai tem empregado sua grande influência em meu favor. Você não me poderá responder. Beije a nossa filha por mim.”

Nada mais havia além daquelas poucas palavras. Entretanto, tão poucas palavras significavam tanto para aquela a quem se destinavam que ela se voltou de Defarge para a esposa e beijou uma das mãos que tricotavam. Foi um gesto apaixonado, afetuoso, feminino e pleno de gratidão, que não encontrou resposta. A mão beijada pendeu, fria e inerte, e voltou ao tricô.
Mas houve, naquele contato, alguma coisa que fez Lucie estremecer. Ela paralisou o movimento de guardar o bilhete no seio e, com a mão ainda no peito, olhou aterrorizada para madame Defarge, que, arqueando as sobrancelhas, devolveu-lhe o olhar com impassível frieza.
— Querida — disse o senhor Lorry, intervindo para explicar —, acontecem motins pelas ruas com muita freqüência, agora, e, conquanto não seja provável que venham a molestá-la, madame Defarge quer ver todos a quem ela tem o poder de proteger nessas ocasiões, para reconhecer... identificar essas pessoas. Eu acredito — acrescentou o senhor Lorry, quase interrompendo as próprias palavras tranquilizadoras, cada vez mais impressionado com a rigidez pétrea de todos os três — ter resumido bem a situação. Correto, cidadão Defarge?
Defarge lançou um olhar sombrio à esposa e limitou-se a resmungar em aquiescência.
— Seria melhor, Lucie — continuou o senhor Lorry, esforçando-se, em tom e maneiras, para ser conciliador —, trazer aqui a menina e a nossa boa Pross. A nossa boa senhorita Pross, Defarge, é uma dama inglesa e não conhece uma palavra de francês.
A dama em questão, cuja firme convicção de que valia tanto ou mais do que qualquer estrangeira não se abatia pela angústia nem pelo perigo, parou diante da “Vingança”, cujos olhos encontrou primeiro:
— Ora, ora, madame Insolência! Espero que a senhora esteja muito bem!
Ela ainda lançou um pigarro inglês sobre madame Defarge. Nem esta, porém, nem a outra lhe prestaram grande atenção.
— É esta a filha do prisioneiro? — indagou madame Defarge, interrompendo pela primeira vez o seu trabalho e apontando para a pequena Lucie com a agulha, como se fosse o dedo do Destino.
— Sim, madame — respondeu o senhor Lorry. — É a única e querida filha do nosso pobre prisioneiro.
A sombra que envolvia madame Defarge e sua comitiva pareceu adensar-se tão negra e ameaçadora sobre a criança que a mãe instintivamente se ajoelhou ao lado dela e aconchegou-a nos braços... A sombra que envolvia madame Defarge e sua comitiva pareceu então adensar-se, negra e ameaçadora, sobre mãe e filha...
— É o bastante, meu marido — declarou madame Defarge. — Já as vi. Agora, podemos ir.
Entretanto, no tom contido ressoavam tantas ameaças, não visíveis e concretas, mas indistintas e veladas, que Lucie, alarmada, suplicou, pousando a mão no vestido de madame Defarge:
— Seja generosa com meu marido, não lhe faça mal. A senhora me ajudará a vê-lo, se puder?
— Seu marido não é problema meu — retorquiu madame Defarge, que fitou-a do alto, absolutamente serena. — É pela filha de seu pai que vim aqui.
— Por mim, então, tenha piedade de meu marido. Pelo bem de minha filha! Ela lhe rogará de mãos postas que seja misericordiosa. A senhora nos causa mais temor do que os outros.
Madame Defarge recebeu aquela confissão como um cumprimento e olhou para o marido. Defarge, que estivera inquieto, roendo a unha do polegar e contemplando a esposa, recompôs o semblante, imprimindo-lhe uma expressão mais austera.
— Que diz seu marido nesse bilhete? — inquiriu madame Defarge, com um sorriso. — Influência. Ele não menciona qualquer coisa sobre “influência”?
— Que meu pai — ripostou Lucie, apressando-se a tirar o papel do seio, sem, contudo, despregar os olhos alarmados de sobre sua interrogadora — tem empregado sua influência em favor dele. — Essa influência certamente o porá em liberdade — replicou madame Defarge. — Pois que o faça.
— Como esposa e mãe — bradou Lucie, com fervor —, imploro-lhe que tenha compaixão de mim e não exerça o seu poder contra meu inocente marido, mas sim em seu benefício. É uma mulher como eu, é minha irmã. Tenha piedade de uma esposa e mãe!
Madame Defarge fitava-a, glacial como sempre, e comentou, virando-se para sua amiga “A Vingança”:
— As esposas e mães que nos acostumamos a ver, desde que éramos tão pequenas quanto essa criança, e até antes, jamais contaram com a piedade de ninguém. Nós não nos cansamos de saber que os maridos e pais delas lhes eram arrebatados e trancafiados nas prisões? Em toda a nossa vida, não presenciamos o sofrimento das mulheres, nossas irmãs, e de seus filhos, em conseqüência da miséria, da nudez, da fome, da sede, das doenças, da opressão e de toda a sorte de negligência?
— Nunca vimos outra coisa — concordou “A Vingança”.
— Suportamos tudo isso durante muito tempo — prosseguiu madame Defarge, voltando novamente os olhos para Lucie. — Agora, julgue por si mesma! Acha possível que o sofrimento de uma única esposa e mãe nos abale?
Ela retomou o tricô e retirou-se. “A Vingança” seguiu-a. Defarge saiu por último e fechou a porta.
— Coragem, minha querida Lucie — procurou animá-la o senhor Lorry, erguendo-a. — Coragem, coragem! Até agora, tudo tem corrido bem para nós, muito, muito melhor do que para tantos outros. Vamos, anime-se e seja grata.
— Não sou ingrata, espero, mas aquela temível mulher parece ter lançado uma sombra sobre mim e sobre todas as minhas esperanças.
— Ora, ora — disse o senhor Lorry —, que desalento é esse num coração tão valente? Uma sombra, com efeito! Não há substância nas sombras, Lucie.
Mas a sombra dos Defarge pairava escura também sobre ele, e, no recôndito de seu espírito, perturbava-o profundamente.

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