Capítulo XXXIX - Feito o Jogo
Enquanto Sydney Carton e o “carneiro” das prisões
estavam no quarto vizinho, falando tão baixo que não se ouvia um único som, o
senhor Lorry olhava para Jerry com profunda dúvida e suspeita. A maneira de o
honrado negociante receber aquele olhar não inspirava confiança; ora descansava
numa perna, ora noutra, como se tivesse cinquenta pernas e as estivesse
experimentando todas; examinava as unhas com uma questionável atenção, e,
sempre que os olhos do senhor Lorry encontravam os dele, era tomado por aquela
espécie peculiar de pigarro que obriga sempre a pôr a palma da mão diante da
boca, o que raramente, se é que alguma vez, é visto como um indício de uma
perfeita lhaneza de caráter.
— Jerry — chamou o senhor Lorry —, venha aqui.
O senhor Cruncher aproximou-se de través, com um dos
ombros chegando na frente.
— O que mais você foi, além de mensageiro?
Depois de alguma reflexão, acompanhada de um olhar
preocupado ao seu patrão, o senhor Cruncher concebeu a idéia luminosa de
responder:
— Agricultor.
— Muitas razões me levam a pensar — disse o senhor
Lorry, brandindo raivosamente um dedo em sua direção — que você usou o nome
respeitável da casa Tellson como anteparo, e que você tem uma ocupação ilegal e
infame. Se isso for verdade, não espere que eu o ajude quando voltarmos à
Inglaterra, tampouco que eu guarde o seu segredo. Não permitirei que abuse do
Tellson.
— Espero, senhor — suplicou o envergonhado senhor
Cruncher —, que um cavalheiro da sua estirpe, a quem tenho a honra de servir há
tanto tempo que meus cabelos ficaram grisalhos, pensará duas vezes antes de me
prejudicar, ainda que isso fosse verdade... não digo que o seja, mas mesmo que
o fosse. E há que se levar em conta que, se fosse verdade, a culpa não caberia
apenas a um dos lados. Há que se considerar os dois lados. Deve haver médicos,
neste momento, embolsando guinéus quando um honrado comerciante só recebe um
vintém, um vintém! não, nem mesmo meio vintém, meio vintém! Não, nem mesmo um
quarto de vintém, o dinheiro deles desaparece no ar como fumaça, em depósitos
no Tellson, e ainda piscam seus olhos doutorais para o pobre negociante que
está do lado de fora da porta; e eles entram em suas carruagens e saem delas,
ah! também como fumaça, mais parecidos, até! Isso também é abusar do Tellson. E
há ainda a senhora Cruncher, que tem idéias do tempo da Velha Inglaterra e reza
tanto contra o sucesso dos meus negócios que me está arruinando, arruinando!
Enquanto isso, as esposas dos doutores médicos rezam em favor das doenças, para
que nunca faltem pacientes para seus maridos, e o senhor vem culpar a mim, só a
mim? E o que me diz dos agentes funerários, dos sacristãos, dos coveiros, dos
vigias particulares (todos metidos nisso, e todos tão avarentos)? Um homem não
ganharia muito nesse ofício, mesmo que fosse verdade. E o pouco que ganhasse
não o faria prosperar, senhor Lorry. Estaria sempre muito longe da riqueza e abandonaria
o negócio com alívio se tivesse outro meio de ganhar a vida, se fosse verdade,
senhor.
— Arre! — exclamou o senhor Lorry, embora um tanto
compadecido. — Estou chocado com você.
— O que eu humildemente lhe suplico, senhor —
prosseguiu o senhor Cruncher —, mesmo se fosse verdade, o que não é o caso...
— Não me venha com mentiras — interrompeu-o o senhor
Lorry.
— Não, senhor, eu não o faria — volveu o
senhor Cruncher, como se nada estivesse mais distante de suas intenções do que
aquela. — O que lhe quero pedir é... o que eu humildemente gostaria de
rogar-lhe, senhor, é o seguinte. Lá, num tamborete na porta do Tellson,
senta-se também um menino, meu filho, que estou criando para um dia ser um
homem de bem, um bom mensageiro para o Tellson, para o senhor, para prestarlhe serviços
gerais, cumprindo-lhe à risca todas as ordens. Se fosse verdade, senhor, o que
eu ainda não digo que seja (embora eu não pretenda mentir para o senhor), eu
lhe suplicaria que permitisse que o menino continuasse no lugar do pai, para
poder sustentar a mãe. Não o castigue pelas faltas de seu pai, por favor não
faça isso, senhor, e mande esse pai trabalhar como coveiro, enterrando os
mortos como uma forma de compensação pelos mortos que desenterrou, se fosse
verdade, claro. Isso, senhor Lorry — disse o senhor Cruncher, enxugando a testa
com o braço, como se anunciasse ter chegado à peroração de seu discurso —, é o
que humildemente gostaria de rogar-lhe.
Um homem não pode ver tudo o que acontece por aqui,
tantos corpos sem cabeça, Deus do céu, tantos que o preço não vale o custo do
transporte, sem refletir seriamente a respeito das coisas. E esta seria, pois,
a minha súplica, se fosse verdade. E lhe pediria, também, para lembrar que eu
contei tudo, quando poderia ter permanecido calado.
— Isso, ao menos, é verdade — replicou o senhor
Lorry.
— Não diga mais nada, por ora. Pode ser que eu
continue seu amigo, se você merecer, e demonstrar arrependimento por meio de
atos, não de palavras. Já basta de palavras.
O senhor Cruncher batia com a mão na testa quando
Sydney Carton e o espião retornaram do quarto escuro. — Adieu, senhor
Barsad — despediu-se o primeiro. — Nosso acordo está celebrado, nada deve temer
de minha parte. Ele sentou-se junto à lareira, ao lado do senhor Lorry. Quando
ficaram a sós, este perguntou-lhe o que conseguira.
— Pouca coisa. Se o pior acontecer a Darnay, terei
acesso ao calabouço.
O semblante do senhor Lorry ensombreou-se.
— Foi tudo o que pude fazer — disse Carton. — Exigir
demais seria pôr a cabeça desse homem sob a guilhotina e, como ele próprio
ressaltou, seria o mesmo que denunciá-lo. Esse era obviamente o ponto fraco da
situação. Não há como evitá-lo.
— Mas, acesso ao calabouço — argumentou o senhor
Lorry —, se o pior ocorrer no tribunal, não o salvará.
— Jamais afirmei que o salvaria.
Os olhos do senhor Lorry gradualmente buscaram as
chamas. A solidariedade para com a querida Lucie e o profundo desapontamento
causado pela segunda prisão pouco a pouco lhes apagaram o brilho. Ele era agora
apenas um velho, subjugado pela tristeza e pela ansiedade. De seus olhos opacos
deslizaram lágrimas amarguradas.
— O senhor é um bom homem e um verdadeiro amigo —
declarou Carton, com a voz alterada. — Perdoe-me se percebo a sua comoção. Eu
não podia presenciar o sofrimento de meu pai sem me abalar. E não respeitaria mais
a sua dor se o senhor fosse meu pai. Felizmente, o senhor está livre do
infortúnio de me ter como filho.
Conquanto pronunciasse as últimas palavras com seu
modo habitual, havia um sentimento e um respeito genuínos tanto no tom quanto
no estilo, para os quais o senhor Lorry, que não conhecia o lado melhor de
Carton, não estava preparado. Estendeu-lhe a mão e Carton gentilmente
apertou-a.
— Mas, voltando ao pobre Darnay — prosseguiu Carton
—, não conte nada à esposa dele sobre essa entrevista, ou sobre esse arranjo.
Isso não lhe possibilitaria ir vê-lo. Ela poderia imaginar que se trata de um
plano para, se o pior acontecer, fornecer a Darnay meios de antecipar a
execução da sentença.
O senhor Lorry, que não havia considerado essa
possibilidade, lançou um olhar a Carton para verificar se tal ideia não estaria
de fato em sua mente. Pareceu-lhe que sim. Carton retribuiu o olhar, cuja
intenção ele evidentemente compreendera.
— Ela seria capaz de imaginar uma centena de coisas
— ele continuou —, e todas só serviriam para aumentar-lhe a aflição. Não lhe
fale sobre mim. Como o adverti assim que cheguei, é melhor que eu não a veja.
Posso oferecer-me para prestar toda a ajuda que estiver ao meu alcance sem que,
para isso, precise vê-la. Vai visitá-la agora, espero? Ela deve estar
especialmente desolada, esta noite.
— Sim, irei lá em seguida.
— Fico feliz. Ela é tão ligada ao senhor, conta
tanto com o seu apoio. Como está ela?
— Ansiosa e infeliz. Mas muito bonita.
— Ah!
Aquele foi um longo, pesaroso som, que ressoou como
um suspiro, quase um soluço. E atraiu o olhar do senhor Lorry para o rosto de
Carton, que se voltou para o fogo. Um brilho, ou uma sombra (o velho cavalheiro
não saberia dizer qual), perpassou por aquele rosto de forma tão efêmera como
uma ligeira mudança de luminosidade sobre o alto de uma montanha num dia de sol
ardente. Ele estendeu o pé para empurrar um pequeno tição que caíra. Trajava um
sobrecasaca branca e botas de cano alto, então em voga, e a luz bruxuleante da
lareira, ao tocar a superfície clara do tecido e das botas, fazia-o parecer
ainda mais pálido, com seus longos cabelos castanhos, desguarnecidos, pendendo
soltos sobre a fronte. Sua indiferença pelas chamas era perceptível o bastante
para provocar uma palavra de advertência por parte do senhor Lorry. Sua bota
ainda pisava na lenha incandescente que havia saltado para o chão.
— Não havia dado por isso — ele replicou.
Os olhos do senhor Lorry foram novamente atraídos
para o rosto de Carton. Reparando no ar fanado que lhe obscurecia as feições
naturalmente belas, e tendo vívida na memória a expressão dos prisioneiros,
instintivamente associou as duas imagens.
— Já concluiu suas obrigações em Paris, senhor? —
indagou Carton.
— Sim. Como lhe dizia ontem à noite, quando Lucie
chegou inesperadamente, já fiz tudo o que podia nesta cidade. Esperava
assegurar-lhes a mais absoluta segurança antes de partir, mas... Possuo um
salvo-conduto. Estava pronto para sair de Paris.
Os dois quedaram-se em silêncio por alguns
instantes.
— O senhor dispõe de uma longa vida para recordar —
comentou Carton, pensativo.
— Muito longa, com efeito. Estou com setenta e oito
anos.
— O senhor foi sempre útil, em toda a sua vida.
Manteve-se constantemente ocupado. Objeto do respeito e da confiança de todos.
— Desde que me entendo por gente, sou um homem de
negócios. Com efeito, posso afirmar que já era um homem de negócios quando não
passava de um garoto.
— Veja a posição que ocupa aos setenta e oito anos.
Quantos sentirão a sua falta quando a deixar vaga!
— Ora, um velho e solitário solteirão — retrucou o
senhor Lorry, sacudindo a cabeça. — Ninguém chorará por mim.
— Como pode afirmar isso? Ela não choraria pelo
senhor? E também a filha?
— Sim, sim, graças a Deus. Eu realmente não quis
dizer isso.
— Tem motivos para agradecer a Deus, não acha?
— Certamente, certamente.
— Se o senhor pudesse confessar esta noite, com toda
a sinceridade, para o seu próprio coração: “não conquistei o amor, nem o
apreço, nem a gratidão ou o respeito de ninguém neste mundo; não granjeei a
estima ou o carinho de ninguém; nada fiz de bom ou de útil para ser lembrado
por quem quer que seja!”, os seus setenta e oito anos equivaleriam a setenta e
oito maldições. Não é?
— É verdade, senhor Carton. Julgo que seria assim.
Sydney tornou os olhos para o fogo e, após uma
pausa, indagou:
— Gostaria de perguntar-lhe... sua infância parece
muito distante? Os dias em que o senhor se sentava no colo de sua mãe lhe
parecem muito longínquos? Sensível à suavidade de seus modos, o senhor Lorry
respondeu:
— Há vinte anos, sim. Nesta época de minha vida,
não. Quanto mais me aproximo do fim, como se andasse em círculo, chego cada vez
mais perto do início. Deve ser uma forma de abrandar e preparar o caminho. Meu
coração, agora, comove-se com muitas lembranças que havia muito estavam
adormecidas... lembranças de minha mãe, linda e jovem (e eu, tão velho!), e,
por meio de uma série de associações, recordo os dias quando o que chamamos de
“mundo” ainda não era tão real para mim, e minhas falhas ainda não se haviam
cristalizado em meu caráter.
— Compreendo seus sentimentos — exclamou Carton,
corando. — E isso lhe serve de alento?
— Espero que sim.
Carton encerrou a conversa aqui, levantando-se para
ajudá-lo a vestir o sobretudo.
— Mas o senhor — observou o senhor Lorry, retomando
o tema — é jovem.
— Sim — retorquiu Carton, — Não sou velho, mas a
maneira como gasto a juventude não me conduz à velhice. Já basta de falarmos
sobre mim.
— E também sobre mim, com certeza — replicou o
senhor Lorry. — Vai sair?
— Eu o acompanharei até o portão da casa dela.
Conhece meus hábitos errantes e inquietos. Se eu resolver perambular pelas ruas
por um longo tempo, não se preocupe. Voltarei pela manhã. Irá à corte amanhã?
— Sim, infelizmente.
— Estarei lá, em meio à multidão. Meu espião me
conseguirá um lugar. Tome o meu braço, senhor.
O senhor Lorry assim fez e os dois, depois de
descerem a escada, alcançaram a rua. Em poucos minutos chegavam ao destino do
senhor Lorry. Carton deixou-o ali; contudo, deteve-se a uma curta distância, e
retornou ao portão novamente depois que este se fechou, tocando-o. Ouvira
contarem que ela ia à prisão todos os dias.
— Ela saía por aqui — murmurou, olhando em torno —,
por este caminho, pisava estas pedras. Seguirei seus passos.
Eram dez horas da noite quando ele parou diante da
prisão de La Force, onde ela parara centenas de vezes. Um serrador baixinho,
tendo fechado a serraria, fumava seu cachimbo na porta.
— Boa noite, cidadão — cumprimentou-o Sydney Carton,
pois o homenzinho fitava-o interrogativamente.
— Boa noite, cidadão.
— Como vai a República?
— Refere-se à guilhotina? Não vai mal. Sessenta e
três, hoje. Logo chegaremos a cem. Sansão e seus homens às vezes se queixam de
cansaço. Ha, ha, ha! É tão engraçado, esse Sansão. Que barbeiro!
— O senhor vai sempre lá vê-lo...
— Fazer a barba? Sempre. Todos os dias. Que
barbeiro! Já o viu trabalhando?
— Nunca.
— Pois vá e veja-o quando tiver outra fornada boa.
Imagine, cidadão, que hoje ele barbeou sessenta e três, enquanto eu fumei menos
de duas cachimbadas. Menos de duas. Palavra de honra!
Quando o homenzinho estendeu seu cachimbo para
explicar como media o tempo, Carton foi acossado por um desejo tão intenso de
estrangulá-lo que se virou para ir embora.
— Mas o senhor não é inglês — observou o serrador —,
apesar do traje inglês...
— Sou, sim — ripostou Carton, por sobre o ombro.
— Pois fala como um francês.
— Estudo aqui há muito tempo.
— Ah, um perfeito francês! Boa noite, inglês!
— Boa noite, cidadão.
— Não deixe de ir ver aquele diabo de barbeiro —
insistiu o homenzinho. — E não se esqueça de levar um cachimbo.
Sydney ainda não se havia afastado muito quando
parou no meio da rua, sob um lampião que se balançava ao vento, e escreveu com
seu lápis num pedaço de papel.
Então, atravessou, com o andar decidido de quem se
lembrava bem do caminho, várias ruas escuras e estreitas, muito mais sujas do
que o habitual, pois não se limpavam as vias públicas naqueles tempos de terror,
e parou numa botica cujas portas o proprietário ia fechando. Era uma loja
pequena, soturna e de aspecto duvidoso, mantida numa rua tortuosa por um homem
pequeno, soturno e de aspecto duvidoso.
Desejando boa noite também a esse cidadão, ao
encostar-se no balcão, Carton estendeu o pedaço de papel para ele.
— Fiuu! — o boticário assobiou de leve, ao ler. —
Hi, hi, hi!
Carton não fez caso, e o boticário inquiriu:
— É para o cidadão?
— Sim, para mim.
— Terá o cuidado de manter tudo separado, cidadão?
Conhece as consequências que adviriam se os misturasse?
— Perfeitamente.
O boticário preparou vários pequenos pacotes, que
Carton colocou separados um a um nos bolsos internos da sobrecasaca. Em
seguida, pagou a conta e saiu vagarosamente.
— Não há mais nada a fazer — murmurou consigo mesmo,
erguendo os olhos para a lua — até amanhã. Não posso dormir.
Não foi inquieta a maneira como ele pronunciou essas
palavras sob as nuvens que deslizavam, rápidas, pelo céu, nem expressava
indiferença ou desafio. Era a maneira apaziguada de um homem cansado, que havia
andado sem rumo, que lutara e se perdera, mas que, por fim, reencontrou seu
caminho e vislumbrou-lhe o término.
No passado distante, quando era famoso entre seus
primeiros concorrentes como um jovem promissor, ele conduziu o pai até o
sepulcro. Sua mãe já havia morrido anos antes. Aquelas solenes palavras, lidas
diante da sepultura do pai, voltaram-lhe à memória enquanto avançava pelas ruas
escuras, por entre as pesadas sombras, com a lua e as nuvens deslizantes sobre
ele. “Eu sou a ressurreição e a vida”, disse o Senhor; “quem crê em mim, ainda
que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá.”
Numa cidade dominada pelo patíbulo, sozinho na
noite, sentindo uma genuína tristeza pelos sessenta e três que haviam sido
executados naquele dia, e pelas vítimas do dia seguinte, que aguardavam a morte
nos calabouços, e também as do outro dia, e as do outro ainda, a cadeia de
associações que lhe trouxe aquelas palavras à memória, como a enferrujada
âncora de um velho navio emergindo das profundezas, produziu-se naturalmente.
Ele não as procurara, mas repetiu-as e seguiu em frente.
Com um solene interesse pelas janelas iluminadas
onde as pessoas se preparavam para repousar, esquecidas por algumas poucas e
tranqüilas horas dos horrores que as circundavam; pelas torres das igrejas,
onde nenhuma prece era rezada, pois a revolta popular atingira esse ponto de
autodestruição, como conseqüência dos anos e anos de impostura eclesiástica, de
libertinagem e rapina; interessado pelos distantes cemitérios, reservados,
conforme escreviam sobre os portões, ao Sono Eterno; pelas abundantes prisões e
pelas ruas por onde os grupos de sessenta eram guiados para a morte, a qual se
tornara algo tão cotidiano e concreto que não sobrara espaço para as histórias
lúgubres de fantasmas e aparições que normalmente surgem entre as pessoas,
remanescendo apenas o lúgubre terror da guilhotina; com um solene interesse, enfim,
pela vida e pela morte da cidade que se aplacava para a breve pausa noturna de sua
fúria, Sydney Carton cruzou o Sena, regressando às ruas iluminadas.
Poucas carruagens circulavam, pois conduzir coches
era uma boa maneira de levantar suspeitas, e os fidalgos escondiam a cabeça
debaixo de barretes vermelhos, calçavam sapatos pesados e andavam a pé.
Contudo, os teatros estavam todos cheios, e as pessoas saíam deles tagarelando
alegremente quando Carton passou.
Na porta de um dos teatros, viu uma menina com a
mãe, procurando um lugar menos enlameado por onde pudessem atravessar a rua.
Ele tomou a criança nos braços, levoua para o lado oposto e, antes que o
bracinho da menina se desprendesse do seu pescoço, pediu-lhe um beijo.
“Eu sou a ressurreição e a vida”, disse o Senhor;
“quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive, e crê
em mim, nunca morrerá.”
Agora que as ruas estavam quietas e a noite se
exauria, as palavras ressoavam no eco dos seus passos e no ar. Completamente
calmo e decidido, repetia-as para si mesmo, por vezes, enquanto caminhava. Mas
ouvi-as sempre.
A noite se exauriu e, enquanto, apoiado à ponte,
ouvia o rumorejar do Sena açoitando as muralhas da Ilha de Paris, onde a
pitoresca confusão de casas e catedral refulgia
sob o luar, o dia surgiu friamente, parecendo um rosto morto projetado no céu.
Então, a noite, com a lua e as estrelas, empalideceu e morreu e, por um
instante, foi como se a Criação ficasse sob o domínio absoluto da Morte.
Contudo, o glorioso sol, erguendo-se, dava a
impressão de repetir aquelas palavras, aquele bordão da noite, ininterrupto e
cálido para o coração dele, com seus raios longos e resplandecentes. E enquanto
os contemplava, com os olhos reverentemente protegidos, uma ponte luminosa
estendeu-se pelo ar entre ele e o sol, por sobre o rio reverberante.
A forte correnteza, tão ligeira, tão profunda e
certa, era como uma amiga congenial, na quietude da manhã. Ele caminhou pela
margem do rio, longe das casas, e, sob a luz e o calor do sol, adormeceu.
Quando despertou e se pôs novamente a andar, deixou-se ficar por ali um pouco
mais, observando um remoinho que volteava e volteava sem propósito até que a
corrente o absorveu e o carregou para o mar. “Como eu!”
Um barco mercante, cuja vela tinha a cor esmaecida
de uma folha morta, deslizou perante seus olhos, flutuou para longe e passou.
Quando seu silencioso rastro na água desapareceu, a prece que irrompera de seu
coração por uma piedosa benevolência para com os seus erros e falta de visão
brotou-lhe dos lábios:
— Eu sou a ressurreição e a vida.
O senhor Lorry já havia saído quando ele regressou,
e era fácil presumir aonde o bom velho tinha ido. Sydney Carton nada tomou além
de um pouco de café, comeu um pedaço de pão e, tendo-se banhado e trocado de
roupas, dirigiu-se ao local do julgamento.
A corte estava em pleno movimento e num grande
tumulto quando o “carneiro” das prisões, de quem muitos se afastavam de medo,
levou-o para um canto escondido por entre a multidão. O senhor Lorry e o doutor
Manette se achavam lá. Ela também se encontrava lá, sentada ao lado do pai.
Quando o marido foi trazido, ela lhe lançou um olhar
tão solidário, tão encorajador, tão pleno de admiração, amor e compassiva
ternura, e tão cheio de coragem, pelo bem dele, que coloriu-lhe as faces,
conferiu brilho a seus olhos e animou-lhe o coração. Se alguém houvesse
observado a influência daquele olhar sobre Sydney Carton, teria percebido que
sua reação fora exatamente a mesma.
Perante aquele injusto tribunal, havia pouca ou
nenhuma forma de procedimento que assegurasse a qualquer acusado uma
oportunidade razoável de defesa. Tal Revolução não teria sido possível se todas
as leis, formalidades e cerimônias não houvessem sofrido primeiro abusos tão monstruosos
que a vingança suicida da Revolução os espalhou todos aos ventos.
Todos os olhos fixaram-se no júri. Os mesmos
determinados patriotas e bons republicanos do dia anterior e do dia seguinte.
Mais sôfrego e proeminente entre eles, via-se um homem com uma face ávida e
dedos perpetuamente adejando em volta dos lábios, cujo aparecimento causou
grande satisfação aos espectadores. Esse jurado sequioso por mortes, com uma
expressão antropofágica e mente sanguinária era Jacques terceiro de Santo Antônio.
O júri inteiro parecia uma matilha de cães lançando-se sobre o gamo.
Todas os olhos, então, voltaram-se para os cinco
juízes e para o promotor público. Nenhuma tendência favorável naquele
quadrante, dessa vez, onde reinava uma atmosfera cruel, inflexível e propensa
ao assassinato. Todos os olhos, agora, buscavam alguém na multidão, e
lampejaram em aprovação. Cabeças se voltaram umas para as outras antes de se
virarem para a frente com a máxima atenção.
Charles Evrémonde, chamado de Darnay. Absolvido ontem.
Novamente acusado e preso ontem. Indiciação enviada a ele ontem. Suspeito e
denunciado como inimigo da República, aristocrata, membro de uma família de
tiranos, de uma raça proscrita por haver usado de seus abolidos privilégios
para oprimir o povo de maneira infame. Charles Evrémonde, chamado de Darnay,
absolutamente morto em razão de Lei. Com esse propósito e em poucas palavras,
manifestou-se o promotor público.
O presidente inquiriu se o réu fora denunciado em
sigilo ou abertamente.
— Abertamente, presidente.
— Por quem?
— Por três indivíduos: Ernesto Defarge, taberneiro
no bairro de Santo Antônio...
— Muito bem.
— Thérèse Defarge, sua esposa.
— Muito bem.
— Alexandre Manette, médico.
Um grande tumulto tomou conta da corte e, em meio ao
alarido, o doutor Manette,
pálido e trêmulo, levantou-se.
— Presidente, eu indignadamente protesto, pois
estamos diante de uma mentira, de uma fraude. O senhor sabe que o réu é marido
de minha filha. E minha filha e aqueles que lhe são caros são ainda mais caros
à minha vida. Quem é e onde está esse torpe conspirador que declara que eu
denunciei o meu genro!
— Cidadão Manette, acalme-se. A insubmissão à
autoridade deste tribunal o colocaria fora da lei. Quanto ao que lhe é caro na
vida, nada pode ser tão precioso para um bom cidadão quanto a República.
Vivas aclamações acolheram essa repreensão. O
presidente tocou a sineta e, com entusiasmo, concluiu:
— Se a República lhe exigisse o sacrifício de sua
própria filha, o senhor teria o dever de sacrificá-la. Agora, ouça o que se vai
seguir. E mantenha-se em silêncio!
Novas e frenéticas aclamações irromperam. O doutor
Manette sentou-se, olhando em torno, com os lábios trêmulos. A filha
aproximou-se mais dele. O homem sôfrego no júri esfregou as mãos e devolveu uma
delas aos lábios.
Defarge foi chamado quando se restabeleceu ordem na
corte suficiente para que ele fosse ouvido. Rapidamente, ele expôs a história
do cativeiro, relatando que fora um simples garoto a serviço do doutor, e falou
acerca da libertação deste, do estado em que o prisioneiro se encontrava quando
foi solto e enviado para ele. O interrogatório prosseguiu, abreviando essa
parte inicial, pois a corte era rápida em seu trabalho.
— É verdade que se distinguiu na tomada da Bastilha,
cidadão?
— Acho que sim.
Aqui, uma exaltada mulher guinchou em meio à
multidão:
— Foi um dos mais bravos patriotas. Por que não o
diz? Você tomou conta do canhão, lá, e esteve entre os primeiros a entrar na
fortaleza maldita quando esta caiu. Patriotas, eu digo a verdade!
Foi “A Vingança” quem, com a calorosa aprovação da
audiência, assim interrompera a audiência. O presidente tornou a tocar a
sineta. Mas “A Vingança”, acalorando-se com o encorajamento, guinchou de novo:
— Eu desafio essa sineta! — no que foi igualmente
muito aclamada.
— Informe ao tribunal o que você fez, naquele dia,
dentro da Bastilha, cidadão.
— Eu sabia — disse Defarge, olhando para baixo na
direção da esposa, que estava na parte inferior da escada, fitando-o com
atenção —, sabia que esse prisioneiro de quem falo tinha sido confinado numa
cela conhecida como Cento e cinco, Torre Norte. Soube-o por ele mesmo. Ele não
se conhecia por outro nome que não Cento e cinco, Torre Norte, quando fabricava
sapatos sob os meus cuidados. Enquanto carregava minha arma, naquele dia, resolvi
examinar a cela depois que a fortaleza caísse. Ela caiu. Eu subi à cela, com um
companheiro cidadão que é membro do júri, guiado por um carcereiro. Eu a
examinei minuciosamente. Num buraco na parede da chaminé, onde uma pedra havia
sido arrancada e recolocada no lugar, encontrei um papel escrito. Este é o
papel escrito. Quando eu era um garoto e trabalhava para o doutor Manette, tive
a oportunidade de ver vários documentos com a letra dele. Esta é a letra do
doutor Manette. Entrego este papel, com a letra do doutor Manette, às mãos do
presidente.
“Que seja lido!”
Num silêncio mortal, o prisioneiro sob julgamento
fitando amorosamente a esposa, a esposa desviando o olhar apenas para
contemplar o pai com solicitude, o doutor Manette mantendo os olhos fixos no
leitor, madame Defarge jamais tirando os olhos de cima do prisioneiro, Defarge
jamais tirando os olhos de cima de sua deleitada mulher, e todos os outros
dirigindo os olhos para o doutor, que não via ninguém, o papel foi lido, como
se segue.
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