Capítulo XXXV - O Serrador
Um ano e três meses. Durante todo esse tempo, Lucie
nunca esteve segura, a cada hora, senão de que a Guillotine poderia decepar
a cabeça de seu marido no dia seguinte. Todos os dias, sobre as pedras das
ruas, os carros fúnebres passavam sacudindo-se pesadamente, repletos de
condenados. Graciosas moças, mulheres encantadoras de cabelos castanhos, pretos
e grisalhos, jovens, rapazes robustos, velhos, nobres e plebeus, todos formavam
o rubro vinho para La Guillotine, diariamente tirado das adegas dos
sombrios cárceres e carregado até ela pelas ruas para saciar-lhe a devoradora
sede. Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte; a última, muito mais fácil
de conceder do que as outras, ó Guillotine!
Se a subtaneidade de seu infortúnio e as rodopiantes
rodas do tempo houvessem atordoado a filha do médico a ponto de levá-la a
aguardar um desfecho em ocioso desespero, a sua sorte teria sido igual a de
muitos outros. Todavia, desde o momento em que apertara ao peito a cabeça
branca do pai, na água-furtada do bairro de Santo Antônio, mantivera-se sempre
fiel a seus deveres. Mostrava-se mais fiel ainda naquela época de provação,
como acontece com todos os que são leais e generosos.
Tão logo a família se instalou em sua nova residência,
e seu pai mergulhou na rotina de suas ocupações, ela organizou sua pequena casa
exatamente como se o marido estivesse ali. Para tudo havia um lugar certo e uma
hora certa. Ensinava as lições à pequena Lucie tão regularmente como se
estivessem todos juntos em seu lar inglês. Os pequenos estratagemas que
alimentavam-lhe a ilusão de que todos em breve se reuniriam, os preparativos
para um próximo retorno de Charles, separando-lhe a cadeira e os livros
favoritos, tudo isso e mais o solene prazer de rezar à noite por um adorado
prisioneiro em especial e pelas infelizes almas que jaziam na prisão sob a sombra
da morte, eram praticamente os únicos e sinceros consolos de sua alma dolorida.
Ela não mudara muito quanto à aparência. Os vestidos
simples e escuros, parecidos com trajes de luto, que ela e a filha usavam eram
tão bem cuidados quanto as roupas vistosas dos dias felizes. O tom rosado de
suas faces esmaecera, e a antiga e intensa expressão de sua fronte deixara de
ser ocasional para tornar-se constante. De resto, continuava muito bonita e
graciosa. Algumas vezes, à noite, quando beijava o pai, desabafava a mágoa que
reprimira durante todo o dia e declarava que sua única esperança, abaixo de
Deus, era ele. O pai, então, respondia em tom resoluto:
— Nada pode acontecer a ele sem meu conhecimento, e
sei que posso salvá-lo, Lucie.
Ainda não haviam completado muitas semanas em sua
modificada vida quando o doutor Manette lhe disse, ao voltar para casa:
— Minha querida, existe uma janela no alto da prisão
à qual Charles às vezes tem acesso por volta das três horas da tarde. Sempre
que ele obtiver permissão para ir lá, o que depende de muitas circunstâncias,
poderá vê-la na rua, se você se colocar num determinado local que lhe
indicarei. Você, contudo, não terá como vê-lo, minha pobre criança, e, mesmo
que o visse, não seria seguro para você fazer qualquer sinal de que o reconheceu.
— Oh, mostre-me o lugar, meu pai, e eu lá irei todos
os dias.
A partir daí, qualquer que fosse o tempo que
fizesse, ela aguardava no lugar combinado durante duas horas. Quando o relógio
anunciava as duas horas, ela chegava. E, às quatro horas, afastava-se
resignadamente. Se não estivesse demasiado úmido ou frio para a filha, levava-a
consigo. Quando não, ia sozinha, mas jamais faltou sequer um dia.
Tratava-se da escura e suja esquina de uma rua
pequena e batida pelo vento. A barraca de um cortador de madeira em lenha
constituía a única casa naquele trecho da rua; tudo o mais era muro. Na
terceira vez que ali apareceu, o homem notou a sua presença.
— Boa tarde, cidadã.
— Boa tarde, cidadão.
Essa fórmula de saudação fora prescrita por decreto.
Fora estabelecida voluntariamente algum tempo antes, entre os mais exaltados
patriotas; mas, agora, era lei para todos.
— Passeando por aqui outra vez, cidadã?
— Como vê, cidadão.
O serrador, um homenzinho cheio de gestos (que, em
certa época, foi reparador de estradas), lançou um olhar para a prisão,
apontou-a e, colocando os dez dedos diante do rosto para representar as grades,
espiou jocosamente através deles.
— Mas isso não é da minha conta — declarou, e
continuou a serrar a sua madeira.
No dia seguinte, ele estava à espera dela e
acercou-se assim que a viu chegar.
— O quê? Passeando por aqui outra vez, cidadã?
— Sim, cidadão.
— Ah! A menina também! Sua mãe, não é, cidadãzinha?
— Devo responder que sim, mamãe? — cochichou a
pequena Lucie, aproximando-se mais de sua mãe.
— Sim, meu amor.
— Sim, cidadão.
— Ah! Mas isso não é da minha conta. Meu negócio é o
meu trabalho. Veja a minha serra! Chamo-a de “minha pequena Guillotine”. La,
la, la; la, la, la! E lá se vai a cabeça dele!
O pedaço de madeira caiu e o homem atirou-o num
cesto.
— Eu me chamo o Sansão da Guillotine de madeira! Estão
vendo? Roc... roc... roc; roc...
roc... roc! Lá se vai a cabeça dela! Agora, uma criança!
Rique... rique; Tique... tique! E lá se foram as cabeças da família toda!
Lucie estremeceu, vendo-o atirar mais dois pedaços
de madeira no cesto, porém seria impossível permanecer ali enquanto o serrador
trabalhava sem que este a visse. Daí por diante, para granjear-lhe as boas graças,
era a primeira a cumprimentá-lo e lhe dava sempre algumas moedas, que o homem
prontamente aceitava. Ele era um sujeito indiscreto, e às vezes, quando Lucie o
havia quase esquecido, entretida em espreitar o teto e as grades da prisão,
erguendo os olhos e o coração para o marido, acontecia de ela surpreendê-lo a
fitá-la, com um joelho apoiado em seu tamborete e a serra imóvel na madeira.
— Mas isso não é da minha conta — ele geralmente
resmungava nessas ocasiões, retomando bruscamente o trabalho.
Em todas as estações, na neve e no gelo do inverno,
nos ásperos ventos da primavera, no sol escaldante do verão e nas chuvas do
outono, Lucie passava duas horas, todos os dias, naquela esquina; e todos os
dias, ao partir, beijava o muro da prisão. Seu marido podia avistá-la, assim o
soube através do pai, uma em cada cinco ou seis vezes e vislumbrar-lhe o vulto
ao passar outras duas ou três. Como também podia deixar de vê-la por dez ou
quinze dias seguidos. Bastava, todavia, que ele pudesse vê-la e o fizesse
sempre que tivesse a oportunidade. Por essa possibilidade, ela esperaria o dia
todo, sete dias por semana.
Absorvida por essas ocupações, ela chegou ao mês de
dezembro. Nesse intervalo, seu pai caminhou de cabeça erguida por entre todos
os terrores. Numa tarde em que nevava levemente, Lucie dirigiu-se à esquina
costumeira. Aquele era um dia festivo, de selvagem regozijo público. Ela
notara, ao passar, que as casas estavam decoradas com pequenas lanças em cuja
extremidade havia um barrete vermelho e também com faixas tricolores, nas quais
se lia a inscrição, em letras também tricolores: “República Una e Indivisível.
Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte!”.
A miserável oficina do serrador era tão estreita que
o espaço oferecido por sua fachada inteira era insuficiente para essa legenda.
Ele havia conseguido alguém para garatujar as palavras em sua faixa, porém, que
rabiscara “Morte” com a mais inadequada dificuldade. No teto de sua casa,
colocara a lança adornada com o barrete vermelho, como um bom cidadão, e, numa
janela, prendera a sua serra, com a inscrição: “Pequena Santa Guilhotina”, pois
o afiado instrumento do gênero feminino fora, nessa época, popularmente
canonizado. Sua oficina estava fechada, ele não se encontrava por ali, o que
foi um alívio para Lucie, que ficou em tranqüila solidão.
Contudo, o homenzinho não devia ter ido muito longe,
pois logo ela ouviu aproximarem-se passos tumultuosos e gritos, que a encheram
de terror. Um momento depois, uma multidão espalhava-se pela esquina vindo dos
lados da prisão, no meio da qual se achava o serrador, de mãos dadas com “A
Vingança”. Não havia menos de quinhentas pessoas, que dançavam como quinhentos
demônios. A música era constituída por seu próprio canto. Dançavam ao som de um
canto popular revolucionário, mantendo um ritmo feroz, semelhante a um ranger
de dentes em uníssono. Homens e mulheres dançavam juntos, mulheres dançavam
juntas, homens dançavam juntos, conforme o acaso os reunisse. No início, eles
eram apenas um turbilhão de grosseiros barretes e grosseiros trapos vermelhos;
porém, à medida que lotavam a praça e paravam para dançar perto de Lucie, começaram
a se organizar numa espécie de fantasmagoria coreográfica ensandecida, onde
avançavam, retrocediam, batiam nas mãos uns dos outros, agarravam-se mutuamente
as cabeças, descreviam piruetas isoladamente, reuniam-se a outros e descreviam
piruetas aos pares, e rodopiavam, rodopiavam até que alguns caíram. Enquanto
esses estavam no chão, os demais formaram uma corrente de mãos dadas e todos
rodopiaram juntos. Então, a corrente se partiu, e, em elos separados de dois e
quatro, giraram e giraram até que todos pararam ao mesmo tempo, começando
novamente, batendo, agarrando e rasgando, e então mudaram a direção e giraram
todos em sentido contrário. De súbito, interromperam o giro mais uma vez,
fizeram uma pausa, bateram novamente o compasso, formaram fileiras ao longo da
rua, e, com suas cabeças abaixadas e as mãos erguidas, arremetiam, soltando
gritos medonhos. Nenhuma batalha teria metade do efeito terrífico dessa dança.
Era tão claramente uma brincadeira deturpada, algo, antes inocente, que
degenerara em toda a sorte de perversidades, um divertimento outrora saudável
que se converteu numa forma de aquecer o sangue, desorientar os sentidos e endurecer
o coração. A graciosidade que se observava nela tornava-lhe a natureza ainda
mais vil, demonstrando a que ponto se podiam deformar e perverter todas as coisas
boas por natureza. Aquele seio virginal desnudado, aquela linda cabeça quase infantil
perturbada por aquele frenesi, aquele pé delicado andando com passos ágeis naquele
atoleiro de sangue e lama, eram exemplos dessa época em dissolução.
Esta era a Carmagnole. Depois que ela se afastou,
deixando Lucie assustada e desnorteada na porta da oficina do serrador, os
flocos de neve caíram silenciosos como plumas e se assentaram, tão brancos e
suaves que era como se nada tivesse ocorrido.
— Oh! Meu pai! — exclamou Lucie ao doutor Manette,
que estava à sua frente quando ela abriu os olhos que momentaneamente havia
coberto com as mãos —, que espetáculo selvagem e maldoso!
— Eu sei, minha querida, eu sei. Eu tenho visto tais
cenas muitas vezes. Não se amedronte! Nenhum deles faria mal a você.
— Não temo por mim, meu pai. Mas quando penso em meu
marido, à mercê dessas pessoas...
— Muito em breve nós o colocaremos a salvo delas. Eu
o deixei quando subia para a janela, e vim avisá-la. Não há ninguém aqui que a
veja. Você poderá enviar um beijo para aquela parte mais alta do teto.
— Eu o farei, pai, e lhe mandarei minha alma com
esse beijo.
— Você não consegue avistá-lo, minha pobre filha?
— Não, pai, não — disse Lucie, chorando de saudade
enquanto beijava a mão.
Ruído de passos na neve. Madame Defarge.
— Eu a saúdo, cidadã — cumprimentou o médico.
— Eu o saúdo, cidadão — ela respondeu.
Nada mais. Madame Defarge passou por eles como uma
sombra escura sobre a neve do caminho.
— Dê-me o braço, querida. Quero que saia daqui com
um ar de disposição e coragem, pelo bem dele. Está tudo arranjado. —
Afastaram-se da esquina. — Seu esforço não será em vão. Charles deverá
comparecer amanhã ao tribunal.
— Amanhã!
— Não há tempo a perder. Tenho tudo preparado, mas há
precauções a tomar, que deverão aguardar até que ele compareça perante o
tribunal. Ele ainda não recebeu a notícia, mas eu sei que ele será intimado
para amanhã e removido para a Conciergerie. Acabei de receber a informação. Você
está com medo?
Ela mal pôde responder:
— Eu confio no senhor.
— Pois confie inteiramente. Sua expectativa está
prestes a terminar, minha querida. Ele lhe será restituído dentro de poucas
horas. Eu o cerquei de toda a proteção. Devo encontrar-me com Lorry...
Ele se interrompeu. Um rumor surdo de rodas chegava
aos seus ouvidos. Ambos sabiam muito bem do que se tratava. Um. Dois. Três. Três
carros fúnebres, com sua carga terrível, desfilaram ao longe, sobre a neve.
— Devo encontrar-me com Lorry — repetiu o Doutor,
conduzindo-a por outro caminho.
O velho e leal cavalheiro já estava em seu posto;
nunca o abandonava. Ele e seus livros sofriam freqüentes requisições como
propriedade confiscada e considerada como propriedade nacional. Tudo o que
podia, ele salvava para os proprietários.
Nenhum outro homem defenderia com tanta dedicação os
bens que o Banco Tellson mantinha sob sua custódia nem lhe asseguraria tal
tranquilidade. Um sombrio céu tingido de vermelho e amarelo e a neblina que se
erguia do Sena prenunciavam a chegada das trevas da noite. Já quase escurecera
quando eles chegaram ao Banco. A residência imponente de monseigneur estava
totalmente arruinada e deserta. Acima de um monte de poeira e cinzas no pátio,
liam-se as palavras: Propriedade Nacional. República Una e Indivisível.
Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte!
Quem poderia estar com o senhor Lorry, o dono da
capa de viagem sobre a cadeira, quem não devia ser visto? De que pessoa recém-chegada
ele se separou, agitado e surpreso, para tomar sua favorita nos braços? Para
quem ele parecia estar repetindo as palavras que ela balbuciara quando,
levantando a voz e voltando a cabeça na direção da porta do quarto de onde
havia saído, ele disse:
—
Removido para a Conciergerie, e intimado para amanhã?
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)