Capítulo XXXVIII - Uma Partida de Cartas

Na feliz inconsciência da nova calamidade que se abatia sobre a família, a senhorita Pross seguiu seu caminho pelas estreitas ruas que conduziam ao Sena e atravessou o rio pela Pont-Neuf, repassando na memória a quantidade de artigos indispensáveis que ainda teria de comprar. O senhor Cruncher, carregando a cesta, caminhava ao seu lado. Ambos olhavam à direita e à esquerda, espreitando a maioria das lojas pelas quais passavam, preocupados em se desviarem de aglomerações e evitando os grupos onde se falava com demasiada animação. A noite estava fria e úmida, e, no rio nevoento, escondido dos olhos pelo brilho das luzes e dos ouvidos pelo ruído de vozes ásperas, destacava-se o lugar onde balançavam as barcaças nas quais os ferreiros trabalhavam, fabricando armas para o exército da República. Infeliz do homem que pregasse peças nesse exército, ou fosse promovido nele sem merecimento! Melhor seria se jamais lhe nascesse a barba, pois a Navalha Nacional se apressaria a cortá-la bem rente.
Tendo comprado alguns poucos gêneros da mercearia e azeite para o lampião, a senhorita Pross lembrou-se do vinho que desejavam. Depois de entrar em várias tabernas, deteve-se diante da tabuleta do “Brutus, o Bom Republicano da Antiguidade”, não muito distante do Palácio Nacional, antigamente (e novamente hoje) palácio das Tulherias, cujo aspecto dos artigos lhe agradou bastante.
Sua atmosfera parecia mais tranqüila do que a de qualquer outra taberna e, embora vermelha de barretes patrióticos, não era tão vermelha quanto as demais. Tendo consultado Jerry, e encontrando-o partidário da mesma opinião, a senhorita Pross entrou no estabelecimento de “Brutus, o Bom Republicano da Antiguidade”, acompanhada por seu cavaleiro.
Sem fazerem caso dos candeeiros esfumaçados; dos homens de cachimbo na boca que jogavam com cartas amassadas e dominós amarelados; do trabalhador com o torso e os braços nus enegrecidos de fuligem que lia o jornal em voz alta, daqueles que o ouviam; das armas que traziam das que deixavam de lado para as apanharem de volta na saída; nem dos dois ou três fregueses que dormiam, os quais, estendidos no chão e vestindo coletes felpudos muito populares na época, mais pareciam cachorros ou ursos dormindo; os dois fregueses estrangeiros aproximaram-se do balcão e indicaram o que desejavam.
Enquanto o taberneiro media o vinho, um homem despediu-se de outro, num canto, e levantou-se a fim de ir embora. Para sair, ele tinha obrigatoriamente que passar pela senhorita Pross. Ao fazê-lo, a senhorita Pross soltou um grito e bateu com as mãos.
Num átimo, toda a freguesia se pôs de pé. Que alguém fora assassinado em consequência de uma divergência de opinião era a hipótese que se lhes afigurava a mais provável. Todos olharam em torno, procurando um corpo caído, mas viram apenas um homem e uma mulher que se fitavam com expressão atônita. O homem aparentava ser francês e republicano; a mulher, indubitavelmente inglesa.
No desapontado anticlímax que se seguiu, as palavras proferidas pelos discípulos de Brutus, o Bom Republicano da Antiguidade, embora pronunciadas de modo bastante loquaz e audível, se proferidas em hebreu ou caldeu teriam produzido o mesmo efeito na senhorita Pross e em seu escudeiro, mesmo que estes lhes dessem ouvidos. Mas, em sua surpresa, nenhum dos dois tinha ouvidos para nada mais. Pois, convém ressaltar, não foi apenas a senhorita Pross que se deixou agitar pela perplexidade, mas o senhor Cruncher, conquanto mantivesse uma atitude discreta de quem não mete o nariz onde não é chamado, estava absolutamente espantado.
— Qual é o problema, minha senhora? — inquiriu o homem que provocara o grito da senhorita Pross, num tom exasperado e abrupto embora baixo, e em inglês.
— Oh, Solomon, querido Solomon! — exclamou a senhorita Pross, tornando a bater as mãos. — Depois de tanto tempo sem vê-lo, sem receber notícias suas, eu o encontro aqui!
— Não me chame de Solomon. Quer causar a minha morte? — perguntou o homem de modo furtivo e amedrontado.
— Meu querido irmão! — bradou a senhorita Pross, rompendo em pranto. — Terei eu sido tão dura com você para que me faça uma pergunta tão absurda?
— Então, segure essa sua língua inconveniente — replicou Solomon. — Se deseja falar-me, é melhor sairmos daqui. Pague o vinho e venha comigo. Quem é esse homem?
A senhorita Pross, balançando a cabeça na direção de seu adorado e nada afetuoso irmão, respondeu por entre as lágrimas.
— É o senhor Cruncher.
— Que venha conosco, também — volveu Solomon. — Será que ele me toma por um fantasma?
A julgar por sua expressão assombrada, era assim que o senhor Cruncher o via. Contudo, ele não retrucou e a senhorita Pross, com os olhos molhados, esquadrinhou com grande dificuldade as profundezas de sua bolsa, em busca do dinheiro para pagar a conta. Enquanto isso, Solomon, virando-se para os seguidores de Brutus, o Bom Republicano da Antiguidade, ofertou-lhes algumas poucas palavras em francês para explicar o incidente. Todos, então, retornaram a seus lugares e afazeres.
— Conte-me de uma vez — ordenou Solomon, detendo-se numa esquina sombria — o que deseja.
— Como é cruel ser recebida assim por um irmão a quem sempre estimei tanto! — queixou-se a senhorita Pross.
— Que diabo! — exclamou Solomon, tocando de leve os lábios da irmã com os seus. — Está satisfeita, agora?
A senhorita Pross apenas sacudiu a cabeça e continuou a chorar silenciosamente.
— Se esperava que eu me mostrasse surpreso — declarou seu irmão Solomon —, lamento decepcioná-la. Sabia que você estava em Paris; conheço quase todos os habitantes desta cidade. Se você realmente não quer pôr a minha existência em risco, como me sinto tentado a crer, siga logo o seu caminho, cuide dos seus negócios e deixe que eu cuide dos meus. Não tenho tempo a perder. Sou um empregado público.
— Solomon, meu irmão inglês — gemeu a senhorita Pross, erguendo os olhos banhados de lágrimas —, que podia estar entre os melhores e mais distinguidos homens de sua pátria, tornou-se um empregado desses estrangeiros, e que estrangeiros! Eu quase preferia ver seu querido corpo morto a...
— Eu não disse?! — bradou o irmão, interrompendo-a.
— Eu sabia! Você quer a minha morte. Serei acusado como Suspeito por minha própria irmã. Justo agora que tudo ia tão bem...
— Que o bom Deus não o permita! — ripostou a senhorita Pross. — Prefiro jamais tornar a vê-lo, querido Solomon, embora eu o ame com todo o meu coração. Basta uma única palavra de carinho que me convença de que você não está zangado comigo, que não há nenhuma estranheza entre nós, e eu irei embora.
Bondosa senhorita Pross! Como se a estranheza entre ambos existisse por culpa dela. Como se o senhor Lorry não houvesse descoberto anos antes, naquela tranqüila casa do Soho, que aquele precioso irmão a havia abandonado depois de ter gastado todo o seu dinheiro!
Contudo, Solomon concedia à irmã a palavra de carinho que esta lhe pedira, com a postura condescendente e protetora que teria assumido se seus méritos e posições se invertessem, inversão que ocorre invariavelmente neste mundo, quando o senhor Cruncher, tocando-lhe no ombro, rouca e inesperadamente interveio com esta singular questão:
— Ora, posso fazer-lhe uma pergunta? Como devo chamá-lo: John Solomon ou Solomon John?
O funcionário voltou-se em sua direção com súbita desconfiança.
— Ora, vamos! — prosseguiu o senhor Cruncher. — Seja franco — instou, embora ele próprio não pudesse abusar da franqueza. — John Solomon ou Solomon John? Ela o chama de Solomon e deve saber o seu nome, pois é sua irmã. Mas eu o conheço como John. Qual dos dois vem primeiro? Quanto ao sobrenome Pross, não me consta que o usasse do outro lado do canal.
— O que quer dizer?
— Bem, eu não sei tudo o que quero dizer, pois não consigo lembrar qual era o seu sobrenome do outro lado do canal.
— Não?
— Não. Contudo, poderia jurar que era um nome de duas sílabas.
— É mesmo?
— É, sim. Eu o conheço. O senhor era o espião que testemunhou em Old Bailey. Como, em nome do Pai das Mentiras, portanto, o seu pai, era seu nome, naquela época?
— Barsad — respondeu uma outra voz, acercando-se do grupo.
— Com mil diabos, era este o nome! — bradou Jerry.
O homem que se intrometera na conversa era Sydney Carton. Com as mãos cruzadas nas costas, parou diante do senhor Cruncher com o mesmo ar negligente que demonstrava em Old Bailey.
— Não se assuste, minha cara senhorita Pross. Cheguei ontem à tarde, fiz uma surpresa ao senhor Lorry e concordamos que eu não apareceria em parte alguma até que tudo se resolvesse, a menos que eu pudesse ser útil. Resolvi aproximar-me porque preciso falar com seu irmão. Gostaria, senhorita Pross, que tivesse um irmão com uma profissão mais digna do que a do senhor Barsad. Pelo seu bem, preferiria que o senhor Barsad não fosse um “carneiro” das prisões.
“Carneiro” era uma gíria da época que significava “espião” dos carcereiros. O espião, que era pálido, ficou ainda mais pálido e inquiriu-lhe como ousava...
— Eu lhe direi — atalhou-o Sydney. — Vi-o há pouco, senhor Barsad, saindo da Conciergerie, num momento em que eu contemplava as paredes do cárcere, há cerca de uma hora. O senhor tem uma fisionomia marcante e eu sou um bom fisionomista. Intrigado por encontrá-lo ali, e tendo razões que o senhor não desconhece para associá-lo com os infortúnios de um amigo meu, agora muito desafortunado, resolvi segui-lo. Entrei na taberna, bem atrás do senhor, e sentei-me ao seu lado. Não tive dificuldade em deduzir das suas palavras e dos elogios dos seus admiradores quais eram as suas relações com os cárceres. E, aos poucos, essa dedução tomou a forma de uma proposta, senhor Barsad.
— Que proposta? — o espião indagou.
— Seria problemático, e talvez perigoso, explicar-lhe aqui. Poderia ter a bondade de conceder-me alguns minutos do seu tempo... no escritório do Banco Tellson, por exemplo?
— Sob que ameaça?
— Oh! Eu o ameacei?
— Se não ameaçou, por que motivo eu iria lá?
— Com efeito, senhor Barsad. Se o senhor não sabe por quê, não sou em quem lhe dirá.
— Quer dizer que outra pessoa me diria? — o espião inquiriu, indeciso.
— Compreendeu-me com muita clareza, senhor Barsad. Eu teria de contar a outra pessoa o que sei. O negligente atrevimento de Carton somou-se à sua habilidade para a consecução do propósito que tinha em mente e para lidar com o homem que servia a seus objetivos. Sua perspicácia percebeu a oportunidade e aproveitou-a ao máximo.
— Eu a avisei — censurou o espião, lançando um olhar de reprovação à irmã. — Se alguma coisa me acontecer, a culpa será sua.
— Vamos, vamos, senhor Barsad! — exclamou Carton.
— Não seja ingrato. Não fosse meu grande respeito por sua irmã, eu não me contentaria em delicadamente fazer-lhe uma simples proposta para nossa satisfação mútua. Virá comigo ao Tellson?
— Ouvirei o que tem a me propor. Sim, irei com o senhor.
— Sugiro que primeiro acompanhemos sua irmã até a esquina da rua onde mora.
Aceite o meu braço, senhorita Pross. Esta não é mais uma cidade segura para quem anda por aí sem proteção. E como o seu acompanhante conhece o senhor Barsad, eu o convidarei para ir conosco ao escritório do senhor Lorry. Todos prontos? Então, vamos.
Até o fim de sua vida, a senhorita Pross recordaria que, ao pousar a mão no braço de Sydney e fitar-lhe a face, implorando-lhe para não prejudicar Solomon, percebeu uma corajosa determinação naquele braço e uma generosa inspiração em seus olhos, as quais não só contradiziam sua habitual negligência mas também o transformavam e elevavam como ser humano. Naquele momento, porém, ela estava demasiado ocupada com os temores relativos ao irmão, que tão pouco merecia o seu afeto, e com as palavras tranquilizadoras de Sydney, para atentar na observação.
Eles a deixaram na esquina de sua casa e Carton conduziu os outros dois ao escritório do senhor Lorry, que ficava a poucos minutos de caminhada. John Barsad, ou Solomon Pross, andava a seu lado.
O senhor Lorry tinha acabado de jantar e estava sentado diante da lareira, talvez procurando nas chamas crepitantes o retrato daquele funcionário do Tellson (menos velho, na época) que se sentara junto à lareira no Royal George, em Dover, havia tantos anos. Ouvindo abrir a porta, voltou a cabeça e manifestou surpresa ao ver o estranho.
— É o irmão da senhorita Pross, senhor — explicou Sydney. — Senhor John Barsad.
— Barsad? — repetiu o idoso cavalheiro. — Barsad? Esse nome lembra-me alguma coisa... e o rosto...
— Eu lhe disse que o senhor possui uma fisionomia marcante, senhor Barsad — observou Carton, com frieza. — Peço-lhe que se sente. Ao acomodar-se também numa cadeira, ele supriu a lacuna na memória do senhor Lorry, revelando-lhe, com a testa franzida:
— Figurou como testemunha naquele processo de traição. O senhor Lorry recordou-se imediatamente e olhou para Barsad com ostensiva repugnância.
— O senhor Barsad foi reconhecido pela senhorita Pross como o querido irmão de quem tanto nos falava — prosseguiu Sydney — e admitiu o parentesco. Agora, porém, tenho uma péssima notícia para lhe dar: Darnay foi preso outra vez.
Consternado, o idoso cavalheiro exclamou:
— Que diz?! Deixei-o seguro e livre há duas horas, e estava prestes a voltar à sua casa!
— Pois prenderam-no. A que horas isso aconteceu, Barsad?
— Agora há pouco.
— O senhor Barsad é a melhor autoridade possível sobre o assunto, senhor — comentou Sydney. — Tomei conhecimento da prisão ao ouvir-lhe a conversa com um colega “carneiro”, diante de uma garrafa de vinho. Ele deixara na porta os quatro homens encarregados de levar Darnay. Vira-os entrar. Portanto, não pode haver nenhuma dúvida.
O olhar experiente do senhor Lorry leu no rosto de Sydney que seria perda de tempo discutir o fato. Confuso, mas ciente de que a situação exigiria sua presença de espírito, controlou-se, permanecendo silenciosamente atento.
— Eu acredito — ponderou Sydney — que o nome e a influência do doutor Manette produzirão amanhã o mesmo efeito de hoje... o senhor afirmou que amanhã ele comparecerá novamente perante o tribunal, senhor Barsad?
— Sim. Creio que comparecerá amanhã.
— Espero que a influência do doutor produza o mesmo efeito. Contudo, é possível que se dê justamente o contrário. Confesso-lhe, senhor Lorry, que me espanta saber que o doutor Manette não teve o poder de impedir essa prisão.
— É provável que de nada soubesse — respondeu o senhor Lorry.
— Mas é essa circunstância que me assusta. Por que não o preveniram, se todos sabem que Darnay é genro dele?
— É verdade — concordou o senhor Lorry, segurando o queixo com a mão trêmula e pousando os olhos preocupados em Carton.
— Em suma — disse Carton —, esta é uma época de desespero, em que partidas desesperadas são jogadas por desesperadas apostas. Que o doutor jogue para ganhar; a mim, resta a posição de perdedor. Aqui, a vida de nenhum homem tem valor. Qualquer um carregado para casa em triunfo hoje poderá ser condenado amanhã. Minha aposta no jogo, na pior das hipóteses, é um amigo na Conciergerie. E esse amigo que pretendo ganhar é John Barsad.
— O senhor precisará de boas cartas para ganhar essa partida — retrucou o espião.
— Joguemos, pois. Já conhece os trunfos que tenho na mão... senhor Lorry, não ignora que sou um beberrão. Ficaria grato se me pudesse oferecer um pouco de conhaque.
O conhaque foi colocado à sua frente, e ele bebeu um copo, depois outro, e afastou a garrafa, com ar pensativo.
— Senhor Barsad — continuou com o tom de quem realmente examina as cartas —, “carneiro” das prisões, emissário dos comitês da República, algumas vezes carcereiro, outras vezes prisioneiro, sempre espião e delator, tão mais valioso aqui por ser inglês, já que um inglês é menos passível de suspeita de suborno, no desempenho desses papéis, do que um francês, mas apresenta-se a seus patrões com um nome falso. Esta é uma carta muito boa. Senhor Barsad, agora empregado do governo republicano francês, antigamente era empregado do governo aristocrático inglês, inimigo da França e da liberdade. Esta é uma carta excelente. Uma dedução tão clara como o dia, nesta terra de suspeitas, é a de que o senhor Barsad, ainda sob o pagamento do governo aristocrático inglês, é o espião de Pitt, o traiçoeiro inimigo que a República alimenta em seu seio, o traidor inglês causador de todos os danos de que tanto falam e que é tão difícil de localizar. Esse é um trunfo imbatível. Seguiu bem o meu jogo, senhor Barsad?
— Não a ponto de entender a sua jogada — retrucou o espião, um tanto inquieto.
— É simples: joguei o meu ás: denúncia do senhor Barsad à seção do comitê mais próxima. Examine a sua mão, senhor Barsad, e verifique de que cartas dispõe. Não se apresse.
Ele apanhou a garrafa, encheu outro copo com conhaque e bebeu-o. Percebeu que o espião temia que ele se embriagasse e fosse denunciá-lo imediatamente. Percebendo isso, encheu e bebeu outro copo.
— Examine as suas cartas, senhor Barsad, e não tenha pressa.
As cartas de seu adversário eram mais pobres do que imaginava. O senhor Barsad viu jogadas perdidas das quais Carton nada sabia. Afastado de seu honroso emprego na Inglaterra, em razão de extremamente malsucedidos depoimentos no tribunal e não porque não o quisessem lá: nossos britânicos motivos para proclamarmos nossa superioridade em termos de espionagem e espiões são muito recentes, atravessara o Canal e aceitara serviço na França: primeiro, como provocador e bisbilhoteiro entre seus próprios compatriotas, depois, gradualmente, como provocador e bisbilhoteiro entre os nativos. Sob o governo destituído, ele fora o espião destacado para Santo Antônio e para a taberna de Defarge. Havia recebido da vigilante polícia informações acerca da prisão e da libertação do doutor Manette, que lhe serviriam de introdução para uma conversa mais familiar com os Defarge. Tentou sondar o casal, concentrando-se em madame Defarge, e fracassara rotundamente. Estremecia de medo sempre que se lembrava de que aquela terrível mulher tricotara incessantemente quando conversou com ela, fitando-o com uma expressão lúgubre enquanto movia os dedos. Ele a tinha visto muitas vezes desde então, na seção de Santo Antônio, sempre e sempre tricotando seus registros, denunciando pessoas cujas vidas a guilhotina então ceifou. Sabia, assim como todos os que exerciam a mesma função, que nunca estava seguro e que era impossível fugir. Sobre ele pairava a sombra do machado e, a despeito de seus subterfúgios e de sua traição por aderir ao terror reinante, bastaria uma palavra para que esse lhe cortasse a cabeça. Uma vez denunciado, e considerando todas as graves lembranças que agora lhe acudiam à mente, previa que aquela mulher terrível, de cujo caráter implacável tivera provas suficientes, apresentaria aquele registro fatal contra ele, mandando-o com toda a certeza para a morte. Afora o fato de que todos os espiões se amedrontam facilmente, tinha de admitir que havia no seu jogo cartas numa sequência suficientemente sinistra para justificar a palidez repentina que se espalhou em seu rosto.
— Parece-me que não está muito contente com as suas cartas — observou Sydney, com extrema serenidade. — Não vai jogar?
— Creio, senhor — disse o espião, com ar torpe, voltando-se para o senhor Lorry —, que posso apelar a um cavalheiro com a sua idade e benevolência para suplicar-lhe que pergunte a este outro cavalheiro, muito mais jovem do que o senhor, se ele pode, sob quaisquer circunstâncias, conciliar com a posição que ocupa a decisão de jogar o ás de que falava há pouco. Reconheço que eu sou um espião, e que essa posição é muito malvista, embora alguém tenha de ocupá-la. Mas este cavalheiro não é espião. Por que, então, haveria de se desmerecer atuando como um de nós?
— Eu jogarei o meu ás, senhor Barsad — replicou Carton, que tomou a si responder, consultando o relógio —, dentro de poucos minutos.
— Eu esperava, meus caros senhores — argumentou o espião, sempre se esforçando para incluir o senhor Lorry na discussão —, que a consideração de ambos por minha irmã...
— Eu não poderia demonstrar melhor o meu respeito por sua irmã do que livrando-a por fim do seu irmão — atalhou-o Sydney Carton.
— Pensa assim, senhor?
— Estou absolutamente convencido disso.
Os modos gentis do espião, curiosamente em dissonância com a ostensiva rudeza de seus trajes e provavelmente com as suas maneiras habituais, foram acolhidos com tal repulsa pelo inescrutável Carton, o qual era um mistério até mesmo para homens mais sábios e honestos do que ele, que acabaram por fraquejar, abandonando-o.
Enquanto, perdido e confuso, ele se mantinha calado, Carton prosseguiu, retomando o ar de quem segurava cartas na mão e as contemplava:
— Ora, ora, tenho a forte impressão de ter aqui outra carta excelente, que ainda não havia jogado. Quem era aquele seu colega “carneiro” que se gabava de pastar nas prisões das províncias?
— Era um francês. O senhor não o conhece — o espião apressou-se a responder.
— Francês, é? — ecoou Carton, refletindo, aparentando não se lembrar da presença dele, embora tivesse repetido sua palavra. — Bem, talvez o seja.
— É, sim, eu lhe asseguro — retrucou o espião. — Embora isso não venha ao caso.
— Embora isso não venha ao caso — repetiu Carton, no mesmo tom maquinal. — Embora não venha ao caso... não, não vem ao caso. Não. Contudo, conheço aquele rosto.
— Julgo que não. Estou certo que não. Não pode ser — o espião contrapôs.
— Não... pode... ser — murmurou Carton, tornando a encher o copo (felizmente, era um copo pequeno). — Não pode... ser... Ele fala bem o francês, mas como um estrangeiro.
— Não, como um camponês.
— Como um estrangeiro! — bradou Carton, batendo na mesa com a mão espalmada, enquanto uma luz se acendia em sua mente. — É Cly! Disfarçado, mas é ele. Estava conosco no tribunal de Old Bailey!
— Não se precipite, meu caro senhor — retorquiu Barsad, com um sorriso que aumentou a inclinação de seu nariz aquilino para um dos lados —, ou me deixará em posição de vantagem. Cly (que agora admito abertamente ter sido meu sócio) morreu há vários anos. Estive ao seu lado nos seus últimos momentos. Foi enterrado em Londres, no cemitério de São Pancrácio dos Campos. A impopularidade dele junto à turba no dia do enterro impediu-me de acompanhá-lo à última morada. Mas eu ajudei a colocá-lo no caixão.
Aqui, o senhor Lorry apercebeu-se, do lugar onde estava, de uma sombra fantástica na parede. Procurando encontrar-lhe a fonte, descobriu que se tratava da sombra dos cabelos do senhor Cruncher, que estavam mais eriçados do que nunca.
— Sejamos razoáveis e justos — ponderou o espião. — Para demonstrar-lhe seu equívoco e o quanto é infundada a sua afirmação, eu lhe apresentarei o certificado de óbito de Cly, que, por acaso, trago aqui em meu bolso — com gestos apressados, apanhou o documento e exibiu-o. — Ei-lo aqui. Oh, veja-o, veja-o. Pode segurá-lo, não é uma falsificação.
O senhor Lorry notou que a sombra alongara-se mais e mais na parede. O senhor Cruncher, então, levantou-se e caminhou alguns passos. Não teria o cabelo mais violentamente eriçado se, naquele instante, o houvesse penteado a vaca de chifre enrolado na casa que Jack construiu.
Sem ser visto pelo espião, o senhor Cruncher postou-se ao seu lado e tocou-lhe no braço de leve, como um mordomo.
— Esse tal de Roger Cly — disse o senhor Cruncher, com ar taciturno e rígido — foi o senhor quem o colocou no caixão?
— Sim, fui eu.
— Quem o tirou de lá?
Barsad encostou-se no espaldar da cadeira e gaguejou:
— O... que quer di... dizer?
— Quero dizer — ripostou o senhor Cruncher — que Roger Cly não estava no caixão. Nunca esteve. Que me cortem a cabeça, se não digo a verdade.
O espião olhou para os dois cavalheiros. Ambos fitavam Jerry com indescritível espanto.
— Eu lhe afirmo — continuou Jerry — que o senhor enterrou pedras e terra naquele caixão. Não tente convencer a mim que enterrou Cly. Foi uma farsa. Eu e mais dois homens sabemos disso.
— Como sabem?
— Que lhe importa isso? Por Deus! — resmungou o senhor Cruncher. — Então é do senhor que eu há muito tempo tenho raiva, o senhor, com suas vergonhosas trapaças para enganar honrados negociantes. Eu o estrangularia com prazer por meio guinéu.
Sydney Carton, que, como o senhor Lorry, ficara atônito com o que ouvira, rogou ao senhor Cruncher que se acalmasse e se explicasse.
— Em outra ocasião, senhor — ele respondeu em tom evasivo. — O momento não é lá muito conveniente para explicações. Mas afirmo que esse homem sabe muito bem que Cly nunca esteve naquele caixão. Ele que se atreva a sustentar o contrário, com uma palavra, uma sílaba que seja, e o estrangulo por meio guinéu. — O senhor Cruncher insistia nesse ponto como se fizesse uma oferta das mais liberais. — Ou então eu o denuncio imediatamente.
— Hum! Vejo que — comentou Carton — a minha carta é boa, senhor Barsad. É impossível para o senhor, nesta furiosa cidade onde a suspeita paira no ar, sobreviver à denúncia, pois que mantém contato com um espião de um governo aristocrático que possui os mesmos antecedentes que o senhor, e que, além de tudo, está envolvido no mistério de ter morrido e ressuscitado! Uma conspiração nas prisões, promovida pelo estrangeiro contra a República. Uma carta bastante forte... carta de uma certa guilhotina! Vai jogar?
— Não! — exclamou o espião. — Eu entrego os pontos. Confesso que nós éramos  tão impopulares junto àquela ultrajante turba que eu só consegui fugir da Inglaterra sob risco de morrer afogado, e que Cly foi tão investigado por toda a parte que ele jamais teria escapado se não fosse por essa farsa. Agora, como esse homem tenha descoberto a farsa é o maior de todos os enigmas, para mim.
— Não se preocupem mais com esse velhaco — retorquiu o belicoso senhor Cruncher. — Com certeza se aborrecerão se derem mais atenção a esse “cavalheiro”. E repito! — o senhor Cruncher não pôde deixar de dar uma nova e generosa prova de sua liberalidade —: eu o estrangulo e corto em pedaços por meio guinéu.
O “carneiro” das prisões virou-se para Carton e declarou com ar decidido:
— Não posso perder mais tempo. Logo entrarei em serviço, portanto tenho de partir. O senhor mencionou uma proposta. Que proposta é essa? Só lhe previno que é inútil exigir muito de mim. Se pedir que eu faça alguma coisa que tenha relação com o meu emprego, colocando a minha cabeça em grande perigo, prefiro confiar a minha vida aos acasos de uma recusa aos de um consentimento. Falou há pouco em desespero. Estamos todos desesperados aqui. Lembre-se! Também posso denunciá-lo, jurar o que quiser, e outros podem fazer o mesmo. O que quer de mim?
— Não muito. É carcereiro na Conciergerie?
— Vou-lhe dizer de uma vez por todas: não existe fuga possível — declarou o espião, com firmeza.
— Por que me responde o que não perguntei? O senhor é carcereiro na Conciergerie?
— Às vezes.
— Pode sê-lo sempre que o desejar?
— Posso entrar no cárcere sempre que desejar.
Sydney Carton encheu outro copo com conhaque, derramou-o lentamente na lareira e observou enquanto o líquido caía. Ao cair a última gota, disse, erguendo-se:
— Até aqui, nós conversamos na presença deles, porque o mérito das cartas não devia ser julgado apenas por nós dois. Passemos agora àquele quarto escuro, onde terminaremos nossa conversa a sós.

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