Capítulo 10
Recusar-se a dar atenção a um pensamento, como recusar-se a
entreter um primo bebê ou recusar-se a entreter uma alcatéia de hienas, é coisa
das mais perigosas.
Se você se recusa a entreter um primo bebê, o primo bebê pode
ficar entediado e se entreter sozinho perdendo-se ou caindo em um poço. Se você
se recusa a entreter uma alcatéia de hienas, elas podem ficar impacientes e se
entreter devorando você. Mas quando se recusa a dar atenção a um pensamento — o
que é apenas um modo afetado de dizer que você se recusa a pensar sobre uma
determinada idéia —, você tem de ser muito mais valente do que alguém que está
meramente enfrentando alguns animais sedentos de sangue, ou pais que ficaram
aborrecidos por encontrar o seu queridinho no fundo de um poço, porque ninguém
sabe o que uma idéia pode fazer quando sai para se entreter sozinha,
especialmente se a idéia vem de um vilão sinistro.
— Não me importa o que diz
aquele homem horrível — disse Violet aos irmãos depois que os passos plásticos
do detetive Dupin sumiram na distância. — Não vamos escolher qual de nós vai escapar e
quem vai ficar para ser queimado na fogueira. Eu me recuso terminantemente a
dar atenção a esse pensamento.
— Mas o que vamos fazer? —
perguntou Klaus. — Tentar contatar o Sr.
Poe? —
— O Sr. Poe não vai nos
ajudar — respondeu Violet. — Ele vai
achar que estamos arruinando a reputação do banco dele. Nós vamos fugir.
— Frulc! — disse Sunny.
— Eu sei que é uma cela de
cadeia — disse Violet, — mas deve haver algum jeito de sair. — Ela tirou a fita do bolso e amarrou o cabelo
com os dedos trêmulos. A Baudelaire mais velha tinha falado cheia de confiança,
mas não se sentia tão confiante como dera a parecer. Uma cela é construída com
o propósito específico de manter pessoas do lado de dentro, e ela não tinha
certeza de poder fazer uma invenção que tirasse os Baudelaire da cadeia
central. Mas depois que ela tirou o cabelo dos olhos, seu cérebro inventivo começou
a funcionar a toda potência, e Violet deu uma boa olhada pela cela inteira à procura
de idéias. Primeiro ela olhou para a porta da cela, examinando cada centímetro.
— Você acha que consegue
fazer uma outra gazua? — perguntou Klaus esperançoso. — Você fez uma excelente quando estávamos
morando com o tio Monty.
— Não desta vez — respondeu
Violet. — A porta é trancada pelo lado
de fora, portanto a gazua seria inútil. — Ela fechou os olhos um instante,
pensativa, depois ergueu os olhos para a minúscula janela gradeada. Os irmãos
acompanharam o seu olhar, uma expressão que aqui significa ‘‘‘‘também olharam
para a janela e tentaram pensar em alguma coisa que fosse de ajuda’‘‘‘.
— Boiclio? — perguntou
Sunny, o que queria dizer ‘‘‘‘Você acha que poderia fazer mais alguns
dispositivos de solda para derreter as grades? Você fez alguns excelentes quando
estávamos morando com os Squalor’‘‘‘.
— Não desta vez — disse
Violet. — Se eu subir no banco, e Klaus
subir nos meus ombros, e você subir nos ombros de Klaus, provavelmente
poderemos alcançar a janela, porém mesmo se derretermos as grades, a janela não
é grande o bastante para nos esgueirarmos por ela, nem mesmo Sunny conseguiria.
—
— Sunny poderia gritar pela
janela — disse Klaus, — e tentar chamar a atenção de alguém para vir nos
salvar.
— Graças à psicologia das
turbas, todo cidadão de C.S.C. acha que somos criminosos — salientou Violet. — Ninguém vai querer salvar uma pessoa acusada
de assassinato e seus cúmplices. — Ela fechou os olhos e pensou novamente,
depois ajoelhou-se para olhar o banco de madeira mais de perto. — Porcaria —
disse ela.
Klaus teve um leve sobressalto.
— Onde? — disse ele.
— Eu não quis dizer que o
banco está cheio de porcaria — disse ela, esperando estar dizendo a verdade. — Eu só quis dizer ‘‘Porcaria!’‘, porque tinha
esperanças de que ele fosse feito de tábuas presas umas nas outras com
parafusos ou pregos. Parafusos e pregos são sempre convenientes para invenções.
Mas é apenas um bloco sólido de madeira esculpida, que não é nada conveniente.
— Violet sentou-se no bloco sólido de madeira esculpida e suspirou. — Não sei o que posso fazer — admitiu ela.
Klaus e Sunny se entreolharam, nervosos.
— Estou certo de que você
vai pensar em alguma coisa — disse Klaus.
— Talvez você pense em
alguma coisa — retrucou Violet, olhando para o irmão. — Deve haver alguma coisa
que leu que possa nos ajudar.
Foi a vez de Klaus fechar os olhos pensativo.
— Se você inclinasse o
banco — ele disse depois de uma pausa, — ele se transformaria em uma rampa. Os
egípcios antigos usaram rampas para construir as pirâmides.
— Mas nós não estamos
tentando construir uma pirâmide! — gritou Violet, exasperada. — Estamos tentando escapar da cadeia!
— Eu só estava tentando
ajudar! — gritou Klaus. — Se não fosse
por você e as suas ridículas fitas de cabelo, não teríamos sido presos, pra
começo de conversa!
— E se não fosse pelos seus
óculos ridículos — rosnou Violet em resposta, — não estaríamos aqui nesta
cadeia!
— Pára! — gritou Sunny.
Violet e Klaus ficaram olhando ferozmente um para o outro por um
momento, e depois suspiraram. Violet chegou para o lado a fim de dar lugar no
banco para os irmãos.
— Venham e sentem-se —
disse ela, melancolicamente. — Desculpe
ter gritado com você, Klaus. É claro que não é por sua culpa que estamos aqui.
— Também não é por sua
culpa — disse Klaus. — Estou apenas
frustrado. Faz só algumas horas, pensamos que seríamos capazes de achar os
Quagmire e salvar Jacques.
— Mas chegamos tarde demais
para salvar Jacques — disse Violet estremecendo. — Não sei quem ele era, nem
como arranjou aquela tatuagem, mas sei que ele não era o conde Olaf.
— Talvez ele tivesse
trabalhado com o conde Olaf — disse Klaus. — Ele disse que a tatuagem fazia parte do seu
trabalho. Você acha que Jacques estava na trupe teatral de Olaf?
— Acho que não — disse
Violet. — Nenhum dos parceiros de Olaf
tem essa mesma tatuagem. Se ao menos Jacques estivesse vivo, poderia solucionar
o mistério
— Pereg — disse Sunny, o
que queria dizer ‘’E se ao menos os Quagmire estivessem aqui, poderiam
solucionar o outro mistério — o significado verdadeiro de C.S.C.’’.
— O que precisamos — disse
Klaus, — é de um deus ex machina.
— Quem é esse? — disse
Violet.
— Não é quem , disse Klaus,
— é o quê. ‘‘Deus ex machina é um termo latino que significa ‘‘o deus que desce
por uma máquina. Significa a chegada de alguma coisa que pode ajudar quando
você menos espera. Precisamos salvar dois trigêmeos das garras de um vilão e
resolver o mistério sinistro que nos cerca, mas estamos presos na cela mais imunda
da cadeia central, e amanhã à tarde pretendem nos queimar na fogueira. Seria um
momento maravilhoso para que alguma coisa que possa nos ajudar chegue inesperadamente.
Naquele momento ouviu-se uma batida na porta e o som da fechadura
sendo aberta. A pesada porta da Cela de Luxo se abriu rangendo, e lá estava a
oficial Luciana, fazendo uma carranca para eles atrás do visor do capacete e
segurando um pão em uma das mãos e um jarro de água na outra.
— Se dependesse de mim, eu
não estaria fazendo isto — disse ela, — mas a Regra nº 141 reza claramente que
todos os prisioneiros devem receber pão e água, portanto aí está. — A chefe de
polícia enfiou o pão e o jarro nas mãos de Violet e bateu a porta, trancando-a
em seguida. Violet olhou para o pão, que parecia esponjoso e pouco apetitoso, e
para o jarro de água, que era decorado com uma pintura de sete corvos voando em
círculo. — Bem, ao menos temos alguma
alimentação — disse ela.
— Nosso cérebro precisa de
comida e água para funcionar apropriadamente. — Ela entregou o jarro a Sunny e
o pão a Klaus, que ficou olhando para o pão por um longo, longo tempo. Então,
voltou-se para as irmãs, que notaram que os seus olhos estavam se enchendo de
lágrimas.
— Acabo de me lembrar —
disse ele em uma voz baixa e triste. — É
o meu aniversário. Hoje faço treze anos.
Violet pôs a mão no ombro do irmão.
— Oh, Klaus — disse ela. — É mesmo o seu aniversário. Nos esquecemos
completamente.
— Eu mesmo me esqueci
completamente, até este momento — disse Klaus, olhando de novo para o pão. — Alguma coisa neste pão me fez lembrar o meu
décimo segundo aniversário, quando os nossos pais fizeram aquele pudim de pão.
Violet pôs o jarro de água no chão e sentou-se ao lado de Klaus.
— Eu me lembro — disse ela
sorrindo. — Foi a pior sobremesa que já
provamos.
— Vom — concordou Sunny.
— Era uma nova receita que
eles estavam testando — disse Klaus. — Eles
queriam que fosse especial para o meu aniversário, mas estava queimado, azedo e
encharcado. E eles prometeram que no ano seguinte, para o meu décimo terceiro
aniversário, eu teria a melhor refeição de aniversário do mundo. — Ele olhou
para as irmãs e teve de tirar os óculos para enxugar as lágrimas. — Não quero parecer mimado — disse ele, — mas
estava esperando uma refeição de aniversário melhor do que pão e água na Cela
de Luxo da cadeia central na cidade de Cultores Solidários de Corvídeos.
— Chift — disse Sunny,
mordendo gentilmente a mão de Klaus.
Violet deu-lhe um abraço e sentiu os seus próprios olhos se
encherem de lágrimas.
— Sunny tem razão, Klaus.
Você não parece mimado.
Os Baudelaire sentaram-se juntos por um momento e choraram
baixinho, fixando o pensamento em como as suas vidas tinham se tornado
horríveis em um tempo tão curto. O décimo segundo aniversário de Klaus não
parecia ter sido há tanto tempo assim, e no entanto as suas lembranças do
repugnante pudim de pão pareciam tão pálidas e indistintas quanto a primeira
visão que tiveram de C.S.C. no horizonte. Era uma sensação curiosa, de que
alguma coisa pudesse estar tão próxima e tão distante ao mesmo tempo, e as
crianças choraram por sua mãe e seu pai e por todas as coisas felizes de sua
vida que lhes tinham sido arrebatadas desde aquele dia terrível na praia.
Finalmente, as crianças se debulharam em lágrimas, e Violet
enxugou os olhos e esforçou-se por sorrir para o irmão.
— Klaus — disse ela, — Sunny
e eu estamos dispostas a oferecer a você o presente de aniversário de sua
escolha. Qualquer coisa que queira na Cela de Luxo, você poderá ter.
— Muito obrigado — disse
Klaus, sorrindo e olhando em volta da cela imunda. — O que eu realmente queria é um deus ex
machina.
— Eu também — concordou
Violet, e pegou o jarro de água das mãos de Sunny para beber. Entretanto, antes
de tomar um gole sequer, ela ergueu os olhos e fitou o outro lado da cela.
Pondo o jarro no chão, ela foi rapidamente até a parede e esfregou com os dedos
para remover um pouco da sujeira e ver do que era feita a parede. Depois olhou para
os irmãos e começou a sorrir. — Feliz
aniversário, Klaus — disse ela. — A
oficial Luciana nos trouxe um deus ex machina.
— Ela não nos trouxe um
deus descendo por uma máquina — disse Klaus. — Ela trouxe água em um jarro.
— Brioche! — disse Sunny, o
que queria dizer ‘’E pão!’’
— Estas são as coisas mais
parecidas com um deus descendo por uma máquina que vamos obter — disse Violet. — Agora levantem-se, vocês dois. Precisamos do
banco, ele vai ser de ajuda, afinal. Vai funcionar como uma rampa, bem como
disse Klaus.
Violet colocou o pão em pé encostado na parede, diretamente abaixo
da janela gradeada, e depois inclinou o banco na direção do mesmo ponto.
— Vamos despejar a água do
jarro fazendo com que ela escorra pelo banco abaixo e atinja a parede — disse
ela.
— A água então vai escorrer
pela parede até o pão, que funcionará como uma esponja, absorvendo a água.
Vamos então espremer o pão para devolver a água ao jarro, e começar tudo de
novo.
— Mas de que isto vai
adiantar? — perguntou Klaus.
— As paredes desta cela são
feitas de tijolos — disse Violet, — com argamassa entre os tijolos para
mantê-los unidos. Argamassa é uma espécie de barro que endurece feito cola,
portanto um amolecedor de argamassa soltaria os tijolos, possibilitando nossa
fuga. Acho que podemos amolecer a argamassa despejando água sobre ela.
— Mas como? — perguntou
Klaus. — As paredes são tão sólidas, e a
água é tão macia.
— A água é uma das forças
mais poderosas sobre a terra — respondeu Violet. — As ondas do oceano podem desgastar os
penhascos de pedra.
— Donax! — disse Sunny, o
que queria dizer alguma coisa como ‘’Mas isto leva anos e anos e, se não
escaparmos, seremos queimados na fogueira amanhã à tarde’’.
— Então é melhor parar de
fixar-se no pensamento e começar a despejar água — disse Violet. — Teremos de ficar fazendo isso a noite
inteira, se quisermos amolecer a argamassa. Eu vou ficar nesta ponta, segurando
o banco na posição inclinada. Klaus, você fica ao meu lado e despeja a água.
Sunny, você fica perto do pão e, quando tiver absorvido toda a água, traz de
volta para mim. Prontos?
Klaus pegou o jarro e segurou alto, junto à ponta do banco. Sunny
engatinhou até o pão, que era só um pouquinho menor do que ela.
— Pronto! — disseram os
dois Baudelaire mais jovens em uníssono e, juntas, as três crianças começaram a
fazer funcionar o amolecedor de argamassa de Violet. A água escorreu pelo banco
e atingiu a parede, depois escorreu pela parede e foi absorvida pelo pão
esponjoso. Sunny rapidamente levou o pão para Klaus, que o espremeu no jarro, e
todo o processo recomeçou. De início, parecia que os Baudelaire estavam latindo
para a árvore errada, pois a água não parecia ter sobre a parede da Cela de
Luxo mais efeito do que um lenço de seda teria sobre a investida de um
rinoceronte, mas logo ficou claro que a água — diferentemente de um lenço de
seda — é realmente uma das forças mais poderosas sobre a terra. Quando os Baudelaire
ouviram o ruflar das asas dos corvos de C.S.C. voando em círculo antes de tomar
o rumo da cidade baixa para o seu pouso vespertino, a argamassa entre os
tijolos já se mostrava ligeiramente amolecida ao toque, e quando os últimos
raios do sol brilharam através da minúscula janela, uma parte considerável da
argamassa já tinha começado realmente a se desgastar.
— Grespo — disse Sunny, o
que queria dizer alguma coisa como ‘’uma parte considerável da argamassa já
começou realmente a se desgastar’’, ou coisa do gênero.
— Isto é uma boa notícia —
disse Klaus. — Se a sua invenção salvar
as nossas vidas, Violet, será o melhor presente de aniversário que você já me
deu, incluindo aquele livro de poesia finlandesa que você comprou para mim
quando fiz oito anos.
Violet bocejou.
— Por falar em poesia, por
que não conversamos sobre os dísticos de Isadora? Ainda não conseguimos
descobrir onde os trigêmeos estão escondidos, e, além disso, se ficarmos
conversando será mais fácil ficar acordados.
— Boa ideia — disse Klaus,
e recitou os poemas de memória:
Cá, por safiras, cativos
estamos. Hora após hora, em terror aguardamos.
Até de manhã, não vai dar pra falar; Fechado e tristonho há de o
bico ficar.
A que antes se lê, contém uma pista, Recurso inicial que o bandido
despista.
Os Baudelaire ouviram os poemas e começaram a alimentar todos os pensamentos
que lhes vinham à mente, que pudessem ajudá-los a decifrar o significado dos
dísticos. Violet segurava o banco no lugar, mas sua cabeça estava em por que a primeira
linha do primeiro poema era ‘’Cá, por safiras, cativos estamos’’ uma vez que os
Baudelaire já sabiam sobre a fortuna Quagmire. Klaus despejava água do jarro
para fazê-la escorrer pela parede, mas sua cabeça estava na parte do poema que
dizia — A que antes se lê, contém uma pista — e o que, exatamente, Isadora
queria dizer com ‘’uma pista’’. Sunny monitorava o pão enquanto ele se embebia
de água vezes e vezes seguidas, mas sua cabeça estava na última linha do último
poema que eles tinham recebido, e no que poderia significar ‘’Recurso inicial
que o bandido despista’’. Os três Baudelaire fizeram funcionar a invenção de
Violet até de manhã, discutindo os dísticos de Isadora o tempo todo, e muito
embora as crianças tivessem feito um bocado de progresso em amolecer a argamassa
na parede da cela, elas não fizeram progresso nenhum em decifrar os poemas de
Isadora.
— A água pode ser uma das
forças mais poderosas sobre a terra — disse Violet quando as crianças ouviram
os primeiros sons dos corvos de C.S.C. chegando para o seu pouso vespertino, — mas
a poesia pode bem ser a mais confusa. Nós conversamos, e conversamos, e ainda
não sabemos onde os Quagmire estão escondidos.
— Precisamos de outra dose
de deus ex machina — disse Klaus. — Se
alguma coisa não vier logo nos ajudar, não seremos capazes de salvar os nossos
amigos, mesmo que consigamos escapar desta cela.
— Psiu! — uma voz
inesperada veio da janela, assustando tanto as crianças que elas quase deixaram
cair tudo, destruindo o amolecedor de argamassa. Os Baudelaire olharam para
cima e viram os tênues contornos do rosto de alguém atrás das grades da janela.
— Psiu! Baudelaires! — sussurrou a voz.
— Quem está aí? — sussurrou
Violet em resposta. — Não podemos vê-lo.
— É Hector — sussurrou
Hector. — Eu deveria estar na cidade
baixa fazendo as tarefas matinais, mas em vez disso, vim até aqui às
escondidas.
— Você pode nos tirar
daqui? — sussurrou Klaus.
Durante alguns segundos, as crianças não ouviram nada além dos
sons dos corvos de C.S.C. crocitando e chapinhando no Chafariz Corvídeo. Então
Hector suspirou.
— Não — ele admitiu. — A oficial Luciana está com a única chave, e
esta cadeia é feita de tijolos sólidos. Não acho que exista um modo de tirar
vocês daí.
— Dala? — perguntou Sunny.
— Minha irmã quer dizer, você
contou ao Conselho dos Anciãos que nós estávamos com você na noite em que
Jacques foi assassinado, portanto não poderíamos ter cometido o crime?
Houve mais uma pausa.
— Não — disse Hector. — Vocês sabem que o Conselho me deixa
desassossegado demais para falar. Eu queria falar em defesa de vocês quando o detetive
Dupin os acusou, mas bastou uma olhada para aqueles chapéus de corvo e não consegui
mais abrir a boca. Mas pensei em uma coisa que posso fazer para ajudar.
Klaus pôs no chão o jarro de água e apalpou a argamassa da parede
oposta. A invenção de Violet parecia estar funcionando muito bem, mas ainda não
havia garantia de que aquilo os libertaria antes que a turba de cidadãos
chegasse, à tarde.
— E o que é? — perguntou
ele a Hector.
— Vou deixar a casa móvel
auto-sustentável a ar quente pronta para partir — disse ele. — Vou aguardar no celeiro a tarde inteira, e
se vocês conseguirem escapar de algum modo, poderão ir embora flutuando comigo.
— Está bem — disse Violet,
muito embora estivesse esperando uma ajuda um pouquinho maior de uma pessoa
totalmente adulta. — Estamos tentando
fugir desta cela neste momento, portanto é possível que consigamos.
— Bem, se vocês estão
fugindo agora, é melhor eu ir andando — disse Hector. — Não quero me meter numa enrascada. Eu só
queria dizer, caso vocês não consigam fugir e sejam queimados na fogueira, que
foi um prazer conhecê-los. Ah, eu quase ia me esquecendo.
Os dedos de Hector surgiram através das grades e deixaram cair uma
tirinha de papel enrolada para os Baudelaire.
— É mais um dístico — disse
ele. — Não faz sentido para mim, mas
vocês podem achar útil. Adeus, crianças. Eu realmente espero ver vocês mais tarde.
— Adeus, Hector — disse
Violet, soturna. — Eu também espero.
— Baibai — murmurou Sunny.
Hector aguardou um segundo pela despedida de Klaus, mas então foi
embora sem mais uma palavra, e o eco de seus passos foi ficando mais distante
até se confundir com os sons dos corvos que crocitavam e chapinhavam na água.
Violet e Sunny se voltaram para olhar para o irmão, surpresas por ele não ter
se despedido, muito embora a visita de Hector tivesse sido tamanho
desapontamento que elas podiam entender que Klaus estivesse aborrecido demais
para ser polido. Mas quando elas olharam para o Baudelaire do meio, ele não
lhes pareceu aborrecido. Klaus estava olhando para o último dístico de Isadora
e, à luz que ia ficando mais forte dentro da Cela de Luxo, suas irmãs puderam ver
um amplo sorriso em seu rosto. Sorrir é algo que você faz quando está entretido
em alguma coisa, como ler um bom livro ou observar uma pessoa de quem você não
gosta derramar refrigerante de laranja pela roupa toda. Mas não havia livro
nenhum na cadeia central, e os Baudelaire tinham tomado o cuidado de não
derramar nem uma gota de água enquanto operavam o amolecedor de argamassa,
portanto as irmãs Baudelaire sabiam que seu irmão estava sorrindo por outra
razão. Ele sorria porque estava se fixando num pensamento, e quando Klaus lhes
mostrou o poema que tinha nas mãos, Violet e Sunny tiveram uma ideia bem clara
de qual era esse pensamento.
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