Capítulo 10
Os três órfãos Baudelaire e os dois trigêmeos Quag-mire estavam
sentados no Barraco dos Órfãos, que nunca parecera tão desagradável como agora.
As cinco crianças calçavam os sapatos barulhentos inventados por Violet, de
modo que os caranguejos territorialmente apegados não eram visíveis em canto
algum. O sal secara o fungo bege-claro, convertendo-o numa crosta endurecida
que não era atraente mas que pelo menos cessara o plop!plop! do suco de fungo
sobre os garotos. Depois da chegada do instrutor Genghis, focalizaram a energia
no propósito de derrotar os banditismos do conde Olaf, e os cinco órfãos não
haviam tomado nenhuma providência quanto às paredes verdes salpicadas com corações
cor-de-rosa. Entretanto, podia-se dizer que desde a chegada dos Baudelaire o Barraco
dos Órfãos estava bem menos para ‘’montanha’’ do que para ‘’montinho de terra’’
(volte ao Capítulo 3 se você não entendeu). Ainda faltava muito para ser um
lugar atraente e confortável, mas na hora de um aperto, como local para bolar
um plano, até que quebrava o galho.
E sem dúvida alguma os órfãos Baudelaire estavam num aperto. Se
Violet, Klaus e Sunny tivessem mais uma noite exaustiva de corrida interminável,
dariam com os burros n'água nos exames rigorosos e nas tarefas administrativas,
e então o instrutor Genghis sumiria com eles para longe da Prep Prufrock. E, só
de pensar nisso, quase podiam sentir os dedos ossudos de Genghis como pinças a
extrair a vida de cada um deles. Os trigêmeos Quagmire se preocupavam tanto com
os amigos que também se sentiram pinçados, embora não estivessem diretamente ameaçados
— pelo menos não que soubessem.
— Não consigo acreditar
como foi que não desvendamos antes os planos do instrutor Genghis — disse
Isadora inconformada, revirando as páginas do caderno.
— Duncan e eu fizemos toda
essa pesquisa, e mesmo assim foi como se...
— Não se culpe — disse
Klaus. — Minhas irmãs e eu já tivemos
Olaf pela frente em várias oportunidades, e é sempre difícil descobrir o que
ele está aprontando.
— Nós estávamos tentando
levantar a história do conde Olaf — disse Duncan. — A biblioteca da Prep Prufrock tem uma boa
coleção de jornais antigos, e pensamos que, se conseguíssemos descobrir alguns
de seus planos anteriores, talvez desvendássemos este.
— É uma boa ideia — disse
Klaus pensativo. — Nunca tentei isso.
— Imaginamos que Olaf devia
ser mau-caráter bem antes de conhecer vocês — prosseguiu Duncan, — e então resolvemos pesquisar em jornais
antigos. Não foi possível reunir muito material, já que, como vocês sabem, ele
usa sempre nomes diferentes. De qualquer modo, encontramos uma pessoa com o
mesmo perfil na Gazeta de Bangcoc, um cara que foi detido por estrangular um
bispo mas escapou da prisão em apenas dez minutos.
— Esse tem muito a ver com
ele, com certeza — disse Klaus.
— E um outro no Diário de
Notícias de Verona — disse Duncan, — que
atirou uma viúva rica do alto de um despenhadeiro. Este tinha um olho tatuado
no tornozelo, mas escapou das autoridades. E também um jornal da cidade de vocês
que dizia...
— Não querendo interromper
— disse Isadora, — mas seria bom a gente
parar de pensar no passado e começar a pensar no presente. O almoço já está
mais que na metade, e precisamos desesperadamente de um plano.
— Você não está cochilando,
está? — Klaus perguntou a Violet, que havia permanecido em silêncio por longo
tempo.
— Claro que não estou
cochilando — respondeu Violet. — Estou
me concentrando. Acho que posso inventar algo para produzir todos esses grampos
de que Sunny necessita. Porém não vejo como inventar esse aparelho e ao mesmo
tempo estudar para o exame. Desde que começou a programação de D.O.R., nunca mais
fiz anotações aproveitáveis na aula do Sr. Remora, e não vou ser capaz de me
lembrar das histórias.
— Pois não se preocupe com
isso — disse Duncan, erguendo o caderno de capa verde.
— Escrevi aqui todas as
histórias que o Sr. Remora contou. Sem faltar nenhum detalhe, mesmo os mais
chatos. Está tudo neste caderninho.
— E eu tomei nota do
comprimento, largura e altura de todos os objetos da Sra. Bass — disse Isadora,
mostrando o próprio caderno. — Você,
Klaus, pode estudar pelas minhas anotações, e Violet pode estudar pelo caderno
de Duncan.
— Obrigado — disse Klaus, — só que vocês estão esquecendo uma coisa. Nós
temos corridas esta noite. Não vamos ter tempo de ler o caderno de ninguém.
— Tucur — disse Sunny , o
que provavelmente significava: — Você
tem razão, claro, D.O.R. vai até o nascer do sol, e os exames são logo de manhã
cedo.
— Se ao menos tivéssemos um
dos grandes inventores do mundo para nos ajudar — disse Violet. — Fico pensando no que Nikola Tesla seria
capaz de fazer.
— Ou se tivéssemos um dos
grandes jornalistas do mundo — disse Duncan. — Fico pensando no que Do-rothy Parker seria
capaz de fazer nesta situação.
— E eu fico pensando no que
Hamurabi, da antiga Babilônia, seria capaz de fazer para nos ajudar — disse
Klaus. — Ele foi um dos maiores
pesquisadores do mundo.
— Ou o grande poeta Lord By
ron — disse Isadora.
— Tubarão — disse Sunny ,
passando o dedo nos dentes pensativamente.
— Quem sabe o que essas
pessoas ou esse peixe seriam capazes de fazer se estivessem em nosso lugar? — disse
Violet. — Não dá para adivinhar. — Duncan
estalou os dedos, não para chamar um garçom ou porqu estivesse marcando o ritmo
de alguma música, e sim porque de repente teve uma ideia. — Se estivessem em nosso lugar...! — disse
ele. — É isso!
— É isso o quê?! — perguntou
Klaus. — O que você quer dizer?
— Quando você falou 'se
estivessem em nosso lugar tive uma ideia — disse Duncan. — E se alguém estivesse mesmo, de verdade, no
lugar de vocês — se nós nos disfarçássemos e nos fizéssemos passar por vocês?
Então o tempo todos os corredores poderíamos ser nós, enquanto vocês estudam
para os exames.
— Fazerem-se passar por nós?
— disse Klaus. — Vocês dois são a cópia
exata um do outro, porém não se parecem nada conosco.
— E daí? — disse Duncan. — Vai estar escuro de noite. Quando ficamos
vigiando vocês detrás do arco, tudo o que dava para ver era duas silhuetas
correndo e uma engatinhando.
— É verdade — disse
Isadora. — Se eu puser a fita que você
usa no cabelo e Duncan puser os óculos de Klaus, acho que vamos estar tão
parecidos com vocês que o instrutor Genghis nem vai perceber a diferença.
— E poderíamos trocar os
nossos sapatos, assim o ruído das pisadas na grama seria exatamente o mesmo — disse
Duncan.
— Mas e Sunny? — perguntou
Violet. — Não há como duas pessoas se
fazerem passar por três.
Aquilo foi uma ducha fria no entusiasmo dos Quagmire.
— Se ao menos nosso irmão
Quigley estivesse aqui — disse Duncan. —
Tenho certeza de que estaria disposto a vestir-se de bebê para ajudar vocês.
— E que tal um saco de
farinha? — perguntou Isadora. — Sunny
tem mais ou menos o tamanho de um saco de farinha. Sem querer ofender, Sunny.
— Naa — disse Sunny , dando
de ombros.
— Poderíamos pegar
escondidos um saco no refeitório — disse Isadora, — e puxá-lo do nosso lado
enquanto corrêssemos. De longe a semelhança com Sunny seria razoável o bastante
para afastar suspeitas.
— Trocar de identidade com
vocês pode ser um plano muito arriscado — disse Violet. — Se falhar, não apenas nós, os Baudelaire, estaremos
em apuros, mas vocês também, e quem sabe o que o instrutor Genghis será capaz
de fazer com vocês?
Como se verá, essa pergunta angustiaria os Baudelaire por muito
tempo, contudo os Quagmire nem se abalaram, não lhe deram a mínima atenção.
— Não se preocupem com isso
— disse Duncan. — O importante é que vocês
fiquem fora das garras dele. Pode ser um plano arriscado, mas trocar de
identidade foi a única saída que conseguimos encontrar.
— E não há tempo a perder
tentando descobrir outra — acrescentou Isadora. — Temos que nos apressar se
quisermos apanhar o saco de farinha sem nos atrasarmos para a aula.
— E vamos precisar de uma
corda ou algo parecido para puxá-lo durante a corrida e parecer que é Sunny
engatinhando — disse Duncan.
— E eu vou precisar me abastecer
de outras coisas também — disse Violet, — para montar minha invenção de
produzir grampos.
— Uora — disse Sunny ,
querendo dizer algo como: ‘’Então vamos indo’’, ou algo do gênero. As cinco
crianças deixaram o Barraco dos Órfãos depois de tirar os sapatos barulhentos e
calçar os sapatos normais para não chamar a atenção com o ruído de passos ao
atravessar o gramado em direção ao refeitório. Estavam nervosas porque era uma
irregularidade entrar no refeitório àquela hora, e era uma irregularidade pegar
coisas sem permissão, e estavam nervosas porque o plano era de fato arriscado.
O nervosismo não é uma sensação agradável, e eu não gostaria de
ver crianças pequenas ainda mais nervosas do que estavam os Baudelaire e os
Quagmire ao caminhar para o refeitório ainda em suas próprias identidades. Mas
sou obrigado a dizer que as cinco crianças não estavam tão nervosas quanto
deveriam. Elas não precisavam estar mais nervosas por entrar no refeitório em
hora inapropriada, apesar de estarem contrariando as regras, ou por pegar
coisas sem permissão, ainda mais que não haviam sido apanhadas no ato.
Deveriam, sim, estar mais nervosas com o plano, e com o que aconteceria aquela
noite quando o sol se pusesse sobre o gramado marrom e o círculo fosforescente
começasse a brilhar. Deveriam estar nervosas ao pensar no que aconteceria
quando trocassem de identidade e os Quagmire estivessem no lugar dos
Baudelaire.
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