Capítulo 12
Se você chegou até aqui na história, precisa parar agora. Se você
der um passo atrás e olhar para o livro que está lendo, verá como falta pouco
para acabar esta desventurada história, mas se você pudesse saber quanto pesar
e infortúnio estão contidos nestas últimas poucas páginas, daria mais um passo
atrás, e depois mais um, e continuaria dando passos atrás até A Cidade Sinistra
dos Corvos ficar tão pequena e distante quanto a figura do detetive Dupin se
aproximando enquanto os órfãos Baudelaire abraçavam seus amigos, cheios de
alívio e júbilo. Os órfãos Baudelaire, lamento dizer, não podiam parar agora, e
para mim não há como viajar para trás no tempo e avisar os Baudelaire de que o
alívio e o júbilo que estavam vivenciando junto ao Chafariz Corvídeo eram os
últimos instantes de alívio e júbilo que iriam vivenciar por um longo, longo
tempo.
Mas eu posso avisar vocês. Vocês, diferentemente dos órfãos
Baudelaire e dos trigêmeos Quagmire, e de mim e da minha falecida Beatrice,
podem parar esta história fatídica neste exato momento, e olhar, em vez disso,
o que acontece no final de O menorzinho dos elfos.
— Não podemos ficar aqui —
alertou Violet. — Não é que eu queira
interromper esta reunião, mas já estamos no começo da tarde e o detetive Dupin
vem vindo por esta rua. — As cinco
crianças olharam na direção que Violet estava apontando e puderam ver a
manchinha turquesa da japona de Dupin e o pequenino ponto de luz de sua tocha enquanto
ele ia chegando mais perto do pátio.
— Você acha que ele está
nos vendo? — perguntou Klaus.
— Não sei — disse Violet, —
mas não vamos ficar para conferir. A turba de C.S.C. só pode ficar pior quando
as pessoas descobrirem que fugimos da cadeia.
— O detetive Dupin é o
último disfarce do conde Olaf — explicou Klaus para os Quagmire, — e...
— Já sabemos tudo sobre o
detetive Dupin — disse Duncan rapidamente, — e sabemos o que aconteceu com
vocês.
— Nós ouvimos tudo o que
aconteceu ontem, de dentro do chafariz — disse Isadora. — Quando ouvimos vocês
limpando o chafariz, tentamos fazer o maior barulho que éramos capazes de
fazer, mas vocês não podiam nos escutar por causa do ruído daquela água toda.
Duncan espremeu uma poça inteira de água dos pontos de tricô
encharcados da manga esquerda do seu suéter. Ele então enfiou a mão por baixo da
camisa e tirou de lá um caderno verde.
— Tentamos manter os nossos
cadernos tão secos quanto possível — explicou ele. — Afinal, temos informações cruciais aqui.
— Temos todas as
informações sobre C.S.C. — disse Isadora, pegando o seu caderno, que era preto
como piche. — O verdadeiro C.S.C., quero
dizer, não a cidade de Cultores Solidários de Corvídeos.
Duncan abriu o seu caderno e soprou em algumas das páginas
ensopadas.
— E nós sabemos a história
completa do pobre Jac...
Duncan foi interrompido por um grito atrás dele, e as cinco
crianças se voltaram para ver dois membros do Conselho dos Anciãos olhando
fixamente para o buraco na cadeia central. Rapidamente, os Baudelaire e os
Quagmire se agacharam atrás do Chafariz Corvídeo para não ser vistos.
Um dos Anciãos gritou de novo e tirou o chapéu de corvo para
enxugar a testa com um lenço de papel.
— Eles fugiram! — gritou
ele. — A Regra nº 1 742 reza claramente
que ninguém está autorizado a fugir da cadeia. Como eles se atrevem a
desobedecer esta regra!
— E o que devíamos esperar
de uma assassina e seus dois cúmplices — disse o outro Ancião. — E vejam — eles danificaram o Chafariz
Corvídeo. O bico está todo escancarado. O nosso lindo chafariz está arruinado!
— Aqueles três órfãos são
os piores criminosos da história — disse o primeiro.
— Olhem, lá vem o detetive
Dupin descendo aquela rua. Vamos contar a ele o que aconteceu. Talvez ele
consiga descobrir aonde eles foram.
— Vá você contar a Dupin —
disse o segundo Ancião, — e eu vou ligar para O Pundonor Diário. Quem sabe eles
publicam o meu nome no jornal.
Os dois membros do Conselho saíram apressados para espalhar as
novas, e as crianças suspiraram de alívio.
— Peto — disse Sunny.
— Perto demais — replicou
Klaus. — Logo este distrito inteiro vai
se encher de cidadãos à nossa caça.
— Bem, ninguém está caçando
a nós — disse Duncan. — Isadora e eu
vamos andando na frente, para que vocês não sejam reconhecidos.
— Mas aonde podemos ir? —
perguntou Isadora. — Esta cidade
sinistra fica no meio de coisa nenhuma.
— Eu ajudei Hector a
terminar a sua casa móvel auto-sustentável a ar quente — disse Violet, — e ele
prometeu que a deixaria aguardando por nós. Tudo o que temos de fazer é chegar
até os subúrbios da cidade, e poderemos escapar.
— E viver para sempre
flutuando no ar? — disse Klaus com uma careta.
— Talvez não seja para
sempre — retrucou Violet.
— Scylla! — disse Sunny, o
que queria dizer ‘’E ou casa móvel auto-sustentável a ar quente, ou ser
queimados na fogueira!’’.
— Já que você coloca as
coisas nestes termos — disse Klaus, — estou convencido.
Todos concordaram, e Violet olhou em volta do pátio para ver se
mais alguém tinha chegado.
— Em um lugar tão plano
como este — disse ela, — dá para ver as pessoas chegando desde muito longe, e
nós vamos tirar vantagem disto. Vamos caminhar por qualquer rua vazia que
pudermos encontrar, e se virmos alguém chegando, dobramos uma esquina. Não
conseguiremos chegar lá em vôo de corvo, mas acabaremos conseguindo chegar à
Árvore do Nunca Mais.
— Por falar em corvos —
disse Klaus aos dois trigêmeos, — como vocês conseguiram entregar aqueles
poemas via corvo? E como sabiam que íamos recebê-los?
— Vamos andando — respondeu
Isadora. — Vou contar a história inteira
enquanto caminhamos.
As crianças foram andando. Com os trigêmeos Quagmire à frente, o
grupo de jovens perscrutou uma rua após a outra até encontrar uma onde não
havia sinal de ninguém se aproximando, e eles saíram apressados do pátio.
— Olaf nos levou
clandestinamente naquele item do Leilão In com a ajuda de Esmé Squalor —
começou Duncan, referindo-se à última vez em que ele e a irmã tinham sido vistos
pelos Baudelaire. — E ele nos escondeu
por algum tempo no quarto da torre da sua casa horrorosa.
Violet estremeceu.
— Eu não pensava naquele
quarto há um bom tempo — disse ela. — É difícil acreditar que chegamos a morar
com um homem tão odioso.
Klaus apontou para a figura distante que caminhava na direção
deles, e as três crianças entraram em outra rua vazia.
— Esta rua não leva à casa
de Hector — disse ele, — mas tentaremos voltar sobre os nossos passos.
Prossiga, Duncan.
— Olaf ficou sabendo que
vocês três iriam morar com Hector nos arredores desta cidade — continuou Duncan,
— e ele e os seus parceiros construíram aquele chafariz pavoroso.
— Ele então nos colocou lá
dentro — disse Isadora, — e mandou nos instalar no pátio da cidade alta, para
que pudesse ficar de olho em nós enquanto tentava caçá-los. Nós sabíamos que
vocês eram a nossa única chance de escapar.
As crianças chegaram a uma esquina e pararam, enquanto Duncan
espiava em volta para se certificar de que ninguém se aproximava. Ele fez sinal
de que estava tudo bem e continuou a história.
— Precisávamos mandar uma
mensagem para vocês, mas tínhamos medo de que caísse nas mãos erradas. Isadora
teve a idéia de escrever em dísticos, com a nossa localização oculta na
primeira letra de cada verso.
— E Duncan bolou o jeito de
fazer os corvos chegarem à casa de Hector — disse Isadora. — Ele tinha feito um pouco de pesquisa sobre
os padrões de migração dos grandes pássaros pretos, portanto sabia que os
corvos iriam se empoleirar todas as noites na Árvore do Nunca Mais — bem do
lado da casa de Hector. Eu escrevia um dístico todas as manhãs, e nós dois o
levávamos para cima através do bico do chafariz.
— Havia sempre um corvo
empoleirado bem no topo do chafariz — disse Duncan, — portanto nós enrolávamos
a tirinha de papel em volta da perna dele. O papel estava todo molhado por
causa do chafariz, e se colava com facilidade.
— Certíssimo estava Duncan,
com sua pesquisa; À noite o papel caía, seco pela brisa — recitou Isadora.
— Foi um plano arriscado —
disse Violet.
— Não mais arriscado do que
fugir da cadeia e pôr as suas vidas em perigo para nos salvar — disse Duncan, e
lançou aos Baudelaire um olhar de gratidão. — Vocês salvaram as nossas vidas, mais uma
vez.
— Não iríamos deixar vocês
para trás — disse Klaus. — Nos recusamos
a alimentar esse pensamento.
Isadora sorriu e acariciou a mão de Klaus.
— Nesse meio-tempo — disse
ela, — enquanto tentávamos contatar vocês, Olaf engendrou um plano para roubar
a sua fortuna, e se livrar de um velho inimigo ao mesmo tempo.
— Você quer dizer Jacques —
disse Violet. — Quando o vimos com o
Conselho dos Anciãos, ele estava tentando nos contar alguma coisa. Por que ele
tem a mesma tatuagem que Olaf? Quem é ele?
— Seu nome completo — disse
Duncan folheando o seu caderno, — é Jacques Snicket.
— Soa familiar — disse
Violet.
— Não me surpreende — disse
Duncan. — Jacques Snicket é irmão de um
homem que...
— Lá estão eles! — gritou
uma voz, e num instante as crianças se deram conta de que tinham se descuidado
de olhar atrás delas, bem como na frente delas e atrás de cada esquina. Uns
dois quarteirões atrás deles estava o sr. Lesko à frente de um pequeno grupo de
cidadãos carregando tochas, vindo diretamente para eles. Estava entardecendo, e
as tochas projetavam sombras longas e estreitas nas calçadas, como se a turba estivesse
sendo liderada por serpentes negras rastejantes, em vez de um homem de calças
axadrezadas.
— Lá estão os órfãos! —
bradou o Sr. Lesko, triunfante. — Atrás
deles, cidadãos!
— Quem são aqueles outros
dois? — perguntou um Ancião na multidão.
— Quem se importa? — disse
a Sra. Morrow, e acenou com a sua tocha. — Provavelmente são mais cúmplices!
Vamos queimá-los na fogueira também!
— Por que não? — disse
outro Ancião. — Nós já temos tochas e
lenha, e não temos mais nada o que fazer agora.
O Sr. Lesko parou em uma esquina e gritou para uma rua que as
crianças não podiam ver.
— Ei, todos vocês! — bradou
ele. — Eles estão aqui!
As cinco crianças estavam olhando fixamente para o grupo de
cidadãos, aterrorizadas demais para ir andando de novo. Sunny foi a primeira a
se recuperar.
— Lililc! — gritou ela, e
começou a engatinhar pela rua o mais rápido que podia. Ela queria dizer alguma
coisa tipo ‘’Vamos embora! Não olhem para trás! Vamos tentar chegar até Hector e
a sua casa móvel auto-sustentável a ar quente antes que a turba nos alcance e
nos queime na fogueira!’’, mas seus companheiros não precisavam de nenhum
encorajamento.
Saíram correndo rua abaixo, sem prestar atenção nos passos e
brados atrás deles, que pareciam estar ficando mais numerosos à medida que cada
vez mais gente ouvia a notícia de que os prisioneiros de C.S.C. estavam
fugindo. As crianças correram por becos estreitos e amplas artérias,
atravessando parques e pontes, tudo recoberto de penas pretas. De vez em quando
eles tinham de voltar sobre seus passos, uma expressão que aqui significa ‘’fazer
meia-volta e correr na direção oposta ao ver os cidadãos se aproximando’’ e muitas
vezes tiveram de esquivar-se para vãos de portas ou agachar-se debaixo de
arbustos enquanto cidadãos irados passavam correndo, como se as crianças estivessem
brincando de esconde-esconde em vez de correr para salvar a própria vida. A tarde
foi avançando, e as sombras nas ruas de C.S.C. iam ficando cada vez mais
longas.
As calçadas reverberavam com os sons dos gritos da turba, e as
janelas dos edifícios refletiam as chamas das tochas que os cidadãos estavam
carregando. Por fim, as cinco crianças chegaram aos limites da cidade e
encararam a paisagem achatada e descalvada.
Os Baudelaire procuraram desesperadamente por algum sinal do
factótum e sua invenção, mas somente as silhuetas da casa de Hector, do celeiro
e da Arvore do Nunca Mais estavam visíveis no horizonte.
— Onde está Hector? —
perguntou Isadora, frenética.
— Não sei — disse Violet. — Ele disse que estaria no celeiro, mas não
estou vendo ninguém.
— Aonde podemos ir? —
exclamou Duncan. — Não dá para se
esconder em lugar nenhum por aqui. Os cidadãos vão nos localizar num segundo.
— Caímos numa armadilha —
disse Klaus, a voz rouca de pânico.
— Vireo! — gritou Sunny, o
que queria dizer ‘’Vamos correr — ou, no meu caso, engatinhar ‘’o mais depressa
que pudermos!’’.
— Nunca vamos conseguir
correr suficientemente depressa — disse Violet, apontando atrás deles. — Olhem.
Os jovens se voltaram e viram toda a cidade de Cultores Solidários
de Corvídeos marchando unida em um enorme grupo. Eles tinham contornado a
última esquina e estavam agora se encaminhando diretamente para as cinco
crianças, suas passadas reboando alto como uma trovoada rolando na direção
deles. Mas os jovens não tinham a sensação de que uma trovoada vinha rolando na
direção deles. Enquanto centenas de ferozes e irados cidadãos se aproximavam,
eles tinham a sensação de que uma batatona gigantesca vinha rolando na direção
deles. A sensação era de uma batata que poderia esmagar todos os répteis da
coleção do tio Monty em cinco segundos, ou que poderia absorver até a última
gota d’água do Lago Lacrimoso num instante. A turba se aproximando dava a
sensação de uma batata que deixaria todas as árvores da Floresta Finita
parecidas com gravetos minúsculos, que deixaria a enorme lasanha servida na Escola
Preparatória Prufrock parecida com um lanchinho leve, e deixaria o arranha-céu da
Avenida Sombria 667 parecido com uma casa de bonecas feita para crianças anãs brincarem,
uma batata que, de tão tremendamente grande, poderia ganhar todas as medalhas
de primeiro lugar em todos os concursos de safras tuberosas em feiras de todos
os estados e todos os países do mundo inteiro de agora até o fim dos tempos. A marcha
da turba portadora de tochas, ansiosa por capturar Violet e Klaus e Sunny e Duncan
e Isadora e queimar cada um deles na fogueira, dava a sensação de ser a maior batata
que os órfãos Baudelaire e os trigêmeos Quagmire já tinham encontrado.
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