Capítulo 17
TRÊS DIAS ANTES QUE KATIE saísse
da região da Nova Inglaterra, uma brisa gelada, típica do início de janeiro,
fez com que os flocos de neve congelassem, e ela teve que baixar a cabeça
enquanto caminhava em direção ao salão de cabeleireiros. Seus longos cabelos
loiros esvoaçavam com o vento, fazendo com que sentisse as agulhadas do gelo
conforme os flocos se chocavam contra seu rosto. Ela estava usando sapatos de
salto alto, não botas, e seus pés já estavam congelando. Atrás dela, Kevin
estava no carro, sentado ao volante, observando-a. Embora ela não tivesse se
virado para olhá-lo, ela ouvia o barulho do motor e sabia que os lábios dele
formavam uma fina linha horizontal, com os músculos tensionados.
A multidão que enchia aquela região da cidade durante
o Natal já não ocupava mais as ruas. De um dos lados do salão havia a loja Radio Shack, especializada em produtos eletrônicos, e do outro, um pet shop.
As duas lojas estavam vazias. Quando Katie ia entrar no salão, o vento fez com
que a porta se abrisse violentamente, e ela teve que se esforçar para fechá-la.
O ar gelado a seguiu para dentro do recinto e os ombros de sua jaqueta estavam
cobertos por uma fina camada de neve. Tirou suas luvas e a jaqueta, virando-se
ao fazer aquilo. Ela acenou para Kevin em
despedida e sorriu. Ele gostava quando ela lhe lançava um sorriso.
Ela tinha um horário marcado para as 2 horas com uma
mulher chamada Rachel. A maioria das cadeiras já estava ocupada e Katie não
sabia para onde devia ir. Era a primeira vez que ela vinha até este salão e
sentia um certo desconforto com aquilo. Nenhuma das cabeleireiras parecia ter
mais de 30 anos e a maioria delas tinha penteados arrojados, com mechas ou
tinturas azuis e vermelhas. Logo depois, ela foi abordada por uma garota com
cerca de 25 anos, bronzeada e com alguns piercings, além de uma tatuagem
no pescoço.
— Você está agendada para as 2 horas? Corte e tintura?
Katie fez que sim com a cabeça.
— Meu nome é Rachel. Venha comigo.
Rachel deu uma olhada por cima do ombro.
— Está bem
frio lá fora, não é? Eu quase morri no caminho entre meu carro e a entrada do
salão. Eles nos obrigam a deixar o carro na parte mais distante do
estacionamento. Detesto isso, mas não há nada que eu possa fazer.
— Está bem frio — concordou Katie.
Rachel a levou para uma cadeira perto do canto do
salão. Era uma cadeira forrada com vinil roxo e o piso do salão era de azulejos
pretos. “Um lugar para pessoas mais jovens”, pensou Katie. Mulheres solteiras
que queriam se destacar. Não para mulheres casadas com cabelos loiros. Katie estava
inquieta, sentindo-se agitada à medida que Rachel cobria suas roupas com uma
bata. Ela agitava os dedos dos pés, tentando aquecê-los.
— Você é nova na cidade? —
perguntou Rachel.
— Eu moro em Dorchester — respondeu ela.
— Fica um pouco longe. Alguém lhe indicou o salão?
Katie havia passado em frente ao salão há duas
semanas, quando Kevin a levara às compras, mas não chegou a dizer aquilo. Em
vez disso, ela simplesmente negou com um aceno de cabeça.
— Bem, acho que foi sorte eu ter atendido ao telefone,
então — disse Rachel, com um sorriso. — Que tipo de tintura
você quer?
Katie detestava olhar para si mesma no espelho, mas
não tinha escolha. Ela tinha que conseguir fazer aquilo e da maneira certa. Era
sua única chance. Havia uma fotografia colada no espelho à sua frente,
mostrando Rachel e um rapaz que Katie presumiu ser o namorado dela. Ele tinha
mais piercings do que ela e também tinha o cabelo cortado em estilo
moicano. Por baixo da bata, Katie apertou as mãos.
— Eu quero algo que pareça natural, como umas luzes
escuras, que combinem com o inverno. E cuide das raízes também, para que não
fiquem muito destoantes.
Rachel assentiu, olhando para o reflexo de Katie no
espelho.
— Quer que o tom geral fique da mesma cor? Mais claro ou mais escuro?
O cabelo, não as luzes.
— Mais ou menos a mesma cor.
— Podemos usar a touca metálica?
— Sim — respondeu Katie.
— Vai ser moleza, então —
disse Rachel. — Me dê alguns minutos para preparar minhas coisas. Eu volto já.
Katie assentiu. Ao seu lado, ela viu uma mulher
recostada em um lavatório e outra cabeleireira ao seu lado. Ela ouviu a água
correr e o murmúrio geral das conversas que vinha das outras cadeiras do salão.
Uma música suave vinha pelos alto-falantes.
Rachel voltou com a touca metálica e a tintura. Perto
da cadeira ela misturou os produtos, certificando-se de que a consistência estava correta.
— Há quanto tempo você mora em Dorchester?
— Quatro anos.
— E onde você morava antes?
— Na Pensilvânia — respondeu Katie. — Eu morava em
Atlantic City antes de me mudar para cá.
— Aquele homem que te trouxe até aqui é seu marido?
— Sim.
— Ele tem um belo carro. Vi quando você acenou para
ele. Qual é o modelo? Um Mustang?
Katie assentiu mais uma vez, mas não respondeu. Rachel
trabalhou por algum tempo em silêncio, aplicando a tintura e ajustando a
touca.
— Há quanto tempo vocês
são casados? — perguntou Rachel, conforme aplicava a tintura e envolvia com a
touca uma mecha mais rebelde do cabelo de Katie.
— Quatro anos.
— Foi por isso que você se mudou para Dorchester, não
é?
— Sim.
Rachel continuou com sua conversa.
— E o que você faz?
Com o que trabalha?
Katie olhou para frente, tentando não enxergar a si
mesma no espelho. Desejando ser outra pessoa. Ela poderia ficar ali por uma
hora e meia antes que Kevin voltasse para buscá-la e rezava para que ele não
chegasse mais cedo.
— Eu não trabalho — respondeu Katie.
— Acho que ficaria louca se não tivesse um emprego.
Não que seja fácil manter um, é claro. E o que você fazia antes de se casar?
— Eu era garçonete e trabalhava servindo coquetéis.
— Em um dos cassinos?
Katie fez que sim com a cabeça.
— Foi lá que você conheceu seu marido?
— Sim — respondeu Katie.
— E o que ele está fazendo agora? Enquanto você está
aqui embelezando o cabelo?
“Provavelmente está em
algum bar”, pensou Katie.
— Não sei.
— E por que você não veio até aqui dirigindo? Como eu disse,
Dorchester fica um pouco longe daqui.
— Eu não tenho habilitação. Meu marido me leva sempre
que eu preciso ir a algum lugar.
— Eu não sei o que faria sem meu carro. Não é nada de
especial, mas vou aonde preciso com ele. Detestaria ter que depender de outra
pessoa para ir de um lugar a outro.
Katie podia sentir o perfume no ar. O radiador sob o
balcão começou a fazer barulho.
— Nunca aprendi a dirigir.
Rachel deu de ombros enquanto ajustava outro pedaço da
touca metálica no cabelo de Katie.
— Não é difícil. Treine um pouco, faça o
teste e você logo estará guiando pelas ruas.
Katie olhou para Rachel no espelho. Rachel parecia
saber o que estava fazendo, mas ela ainda era jovem e estava começando sua
vida, e enquanto a olhava, Katie desejava que ela fosse mais velha e mais
experiente. E aquilo lhe pareceu estranho, porque ela provavelmente era
somente alguns anos mais velha do que Rachel. Mas Katie sentia-se velha.
— Você tem filhos?
— Não.
Talvez a garota tivesse percebido que dissera algo
errado, pois trabalhou em silêncio durante os minutos seguintes. Os pedaços da
touca metálica faziam Katie parecer como se tivesse antenas na cabeça, como um
alienígena, até que Rachel finalmente a conduziu para outra cadeira. Ela ligou
uma das lâmpadas de calor.
— Já volto para ver como você está em alguns minutos,
certo?
Rachel se afastou, indo em direção a outra
cabeleireira. Elas começaram a conversar, mas o murmúrio generalizado no salão
fazia com que fosse impossível compreender o que elas estavam dizendo. Katie
olhou para o relógio na parede. Kevin voltaria em menos de uma hora. O tempo
estava passando rápido. Rápido demais.
Ao voltar, Rachel verificou seu cabelo.
— Mais um
pouco — comentou ela e voltou a conversar com sua colega, gesticulando com as
mãos. Animada. Jovem e despreocupada. Feliz.
Mais alguns minutos se passaram. Uma dúzia deles.
Katie tentou não olhar fixamente para o relógio. Finalmente, a hora chegou e
Rachel removeu a touca metálica antes de levar Katie até o lavatório. Katie se
sentou e se recostou contra a pia, sentindo a toalha ao redor da pele do
pescoço. Rachel ligou a torneira e Katie sentiu um jato de água fria bater em
seu rosto. A jovem cabeleireira massageou seu cabelo com o xampu e o
enxaguou; posteriormente, aplicou o condicionador e voltou a enxaguar.
— Vamos dar um belo corte agora.
Voltando para a cadeira, Katie pensou que seu cabelo
estava bom, mas era difícil saber com certeza porque estava molhado. Tinha que
estar exatamente como ela queria, ou Kevin perceberia. Rachel penteou o cabelo
de Katie, desembaraçando os fios. Ainda faltavam quarenta minutos.
— Quanto você quer que eu corte?
— Cuidado para não cortar
demais — disse Katie. — Só tire as pontas. Meu marido gosta dele longo.
— Você vai querer algum penteado diferente? Tenho uma
revista de penteados se você quiser tentar algo novo.
— Eu gostaria do mesmo penteado que eu estava usando
quando cheguei.
— Sem problemas.
Katie observou enquanto Rachel lhe penteava o cabelo,
fazendo suas mechas lhe correrem por entre os dedos para depois os cortar com a
tesoura. Primeiro atrás, depois nas laterais. E, finalmente, na parte de cima
da cabeça. Rachel pegou um chiclete em algum lugar e começou a mascá-lo, com
seu queixo se movendo para cima e para baixo enquanto trabalhava.
— Está bom assim?
— Sim, acho que já é o bastante.
Rachel pegou o secador de cabelos e uma escova
cilíndrica. Ela deslizou a escova pelos cabelos de Katie, que ouvia o ruído do
secador alto em seus ouvidos.
— De quanto em quanto tempo você trata o cabelo? —
perguntou Rachel, tentando puxar assunto.
— Uma vez por mês — respondeu Katie. — Mas às vezes eu
só peço um corte.
— Seu cabelo é muito bonito.
— Obrigada — disse Katie.
Rachel continuou a trabalhar. Katie pediu que ela lhe
fizesse alguns cachos e Rachel pegou a escova modeladora. Levou alguns
minutos até que o aparelho esquentasse. Ainda havia cerca de vinte minutos.
Rachel cacheou e escovou os cabelos de Katie até que
estivesse satisfeita e estudou sua cliente no espelho.
— Está bom assim?
Katie examinou a cor e o penteado.
— Está perfeito.
— Dê uma olhada na parte de trás — disse Rachel. Ela
girou a cadeira de Katie e lhe entregou um espelho. Katie olhou para o
reflexo duplo e acenou afirmativamente com a cabeça.
— Acho que está feito, então — disse Rachel.
— Quanto lhe devo?
Rachel lhe disse o valor e Katie tirou o dinheiro de
sua bolsa, incluindo a gorjeta. — Pode me dar um recibo?
— É claro. Venha comigo até o caixa.
A garota preparou o recibo e o entregou a Katie. Kevin
iria verificá-lo e pediria o troco quando ela voltasse para o carro, e Katie
pediu a Rachel que incluísse a gorjeta no recibo. Ela olhou para o relógio.
Doze minutos.
Kevin ainda não havia retornado e o coração de Katie
estava batendo rapidamente enquanto vestia sua jaqueta e calçava as luvas.
Ela saiu do salão enquanto
Rachel ainda conversava com ela. Na loja ao lado, a Radio Shack, ela pediu que
o balconista lhe mostrasse um telefone celular descartável e um cartão que lhe
desse vinte horas de serviço. Ela sentiu uma forte vertigem ao dizer aquelas palavras,
sabendo que, depois daquilo, não seria possível voltar atrás.
O balconista lhe mostrou um que estava debaixo do
balcão e começou a lhe dar os detalhes do aparelho à medida que explicava seu
funcionamento. Ela tinha mais dinheiro em sua bolsa, escondido em um pacote de
absorventes, pois sabia que Kevin nunca iria procurar nada ali. Katie pegou o
dinheiro e colocou as notas amarrotadas sobre o balcão. O relógio continuava
a contar os segundos e novamente ela olhou para o estacionamento. Ela estava começando
a sentir um pouco de tontura e sua boca estava seca.
O rapaz da loja demorou uma eternidade para conseguir
ligar para o celular novo de Katie. Embora fosse pagar o aparelho em dinheiro
vivo, o balconista pediu que ela lhe desse seu nome, endereço e código postal.
Não havia qualquer motivo para aquilo. Era ridículo. Ela queria pagar e sair
logo dali. Contou até dez e o rapaz ainda estava digitando seus dados. Na
rua, o semáforo acendeu a luz vermelha. Havia carros esperando. Imaginou que
Kevin poderia estar ali, pronto para passar em frente à loja. Ela não sabia se
ele conseguiria vê-la saindo da loja de produtos eletrônicos. Sentia dificuldade até para respirar.
Ela tentou abrir a embalagem plástica, mas foi
impossível. Grande demais para caber na bolsa que trazia, grande demais para
caber no bolso de sua jaqueta. Pediu ao balconista que lhe emprestasse uma
tesoura e ele gastou um minuto precioso procurando por uma. Ela queria gritar,
mandar que ele se apressasse, porque Kevin chegaria a qualquer
momento. Em vez disso, ela se virou para olhar pela janela.
Quando conseguiu tirar o celular da embalagem, o
enfiou no bolso da jaqueta, com o cartão pré-pago. O rapaz perguntou se ela
queria uma sacola, mas Katie já havia saído pela porta sem responder. O
telefone parecia pesar como um bloco de chumbo dentro do bolso de sua jaqueta,
e a neve e o gelo na calçada faziam com que fosse difícil manter o equilíbrio.
Katie abriu a porta do salão de beleza e entrou. Ela
tirou a jaqueta e as luvas e esperou ao lado do caixa. Trinta segundos depois,
viu o carro de Kevin se aproximar pela rua, até chegar perto do salão.
Removeu rapidamente a neve que havia se acumulado em
sua jaqueta, enquanto Rachel vinha em sua direção. Ela sentiu uma onda de
pânico ao imaginar que Kevin poderia ter percebido. Concentrou- se, tentando
manter o controle, agir naturalmente.
— Você esqueceu alguma coisa? — perguntou Rachel.
Katie soltou a respiração.
— Eu ia esperar do lado de
fora, mas está muito frio. E percebi também que não peguei seu cartão.
O rosto de Rachel pareceu se iluminar.
— Oh, é claro.
Espere um pouco — disse ela, indo até sua cadeira e tirando um cartão de uma
das gavetas do balcão. Katie sabia que Kevin a observava do carro, mas fingiu
não notá-lo.
Rachel voltou e entregou seu cartão para Katie.
—
Geralmente não trabalho aos domingos e às segundas-feiras — disse ela.
Katie assentiu.
— Ligo quando precisar dos seus
serviços.
Por
trás dela, ouviu a porta do salão se abrir e Kevin estava espiando por ela sob
o batente. Ele geralmente não entrava nestes lugares e ela sentiu seu coração
acelerar. Ela voltou a vestir a jaqueta, tentando controlar o tremor nas mãos.
Ate que, finalmente, se virou e sorriu.
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