Capítulo 18

A NEVE CAÍA MAIS FORTE quando Kevin Tierney estacionou o carro em frente à sua casa. Havia sacolas de compras no banco de trás e Kevin pegou três delas antes de caminhar até a porta. Ele não havia dito nada no percurso do salão até o supermercado e falou pouco com Katie durante as compras. Em vez disso, ele andou ao lado dela conforme a esposa examinava as prateleiras em busca de promoções e tentava esquecer o telefone que trazia no bolso. Eles não tinham muito dinheiro e Kevin ficaria irritado se ela gastasse demais. As prestações da hipoteca da casa custavam quase metade do seu salário e as despesas do cartão de crédito lhe tiravam mais uma boa porção. Na maioria das vezes eles precisavam comer em casa, mas Kevin gostava de refeições como as que eram servidas em restaurantes, com um prato principal e duas guarnições, ocasionalmente acompanhados por uma salada. Ele se recusava a comer sobras de refeições anteriores e era difícil adequar a renda às suas exigências. Ela tinha que planejar os cardápios diários com cuidado, além de recortar cupons promocionais que apareciam no jornal. Quando Kevin pagou pelas compras, ela lhe entregou o troco do salão de cabeleireiros e também o recibo. Ele contou o dinheiro para se certificar de que tudo estava em ordem.
Em casa, ela esfregou os braços para se manter aquecida. A casa era velha e o ar frio entrava pelas frestas das janelas e pelo vão embaixo da porta da frente. O piso do banheiro era tão frio que fazia seus pés doerem, mas Kevin reclamava do custo do óleo usado para aquecer a casa e nunca deixava que Katie ajustasse o termostato para uma temperatura mais agradável. Quando ele estava trabalhando, ela usava uma blusa de moletom e chinelos; entretanto, quando Kevin estava em casa, ele queria que ela se vestisse de forma sensual.
Kevin deixou as sacolas de compras sobre a mesa da cozinha. Katie deixou suas sacolas ao lado das que ele havia colocado ali e Kevin foi até a geladeira. Abrindo o congelador, ele tirou uma garrafa de vodca e alguns cubos de gelo. Colocou o gelo em um copo e despejou a vodca. Ele só parou de derramar a bebida quando seu copo estava quase cheio. Deixando-a sozinha, ele foi até a sala de estar e Katie ouviu os sons da televisão, ligada no canal ESPN. O comentarista esportivo estava falando sobre o time dos Patriots e as finais do campeonato de futebol americano e as chances que a equipe tinha de conquistar mais um título do Super Bowl. No ano passado, Kevin fora até o estádio assistir a um jogo dos Patriots. Ele era fã do time desde criança.
Katie tirou sua jaqueta e enfiou a mão no bolso. Ela imaginava que teria alguns minutos e esperava que fossem suficientes. Depois de espiar a sala para ver o que Kevin estava fazendo, ela se apressou a voltar para a cozinha. No armário debaixo da pia havia uma caixa de esponjas para lavar louça. Ela escondeu o telefone no fundo da caixa e o cobriu com as esponjas. Katie fechou cuidadosamente a porta do armário antes de pegar sua jaqueta, esperando que seu rosto não estivesse pálido, rezando para que ele não a tivesse visto. Respirando fundo para se fortalecer, colocou o casaco sobre o braço e atravessou a sala de estar para colocá-lo no armário que havia ali. A sala pareceu se esticar conforme ela andava, como um quarto visto pelos reflexos de uma casa de espelhos em um parque de diversões, mas ela tentou ignorar aquela sensação. Katie sabia que Kevin era capaz de olhar através dela, de ler sua mente e perceber o que ela havia feito, mas ele não desviou sua atenção da televisão. Ela só sen- tiu a respiração voltar ao normal quando retornou à cozinha.
Ela começou a guardar as compras, ainda sentindo-se um pouco zonza, mas sabendo que tinha que agir normalmente. Kevin gostava que sua casa estivesse limpa e arrumada, especialmente a cozinha e os banheiros. Katie guardou o queijo e os ovos em seus respectivos compartimentos na geladeira. Tirou os legumes velhos da gaveta e a limpou com um pano antes de colocar os novos. Depois, pegou algumas vagens e uma dúzia de batatas de casca vermelha de uma cesta no chão da despensa. Deixou um pepino no balcão, com um pé de alface americana e um tomate para fazer uma salada. Para o prato principal do jantar daquela noite, prepararia filés marinados.
Katie havia deixado os filés marinando no molho no dia anterior: vinho tinto, suco de laranja, suco de grapefruit, sal e pimenta. A acidez dos sucos servia para amaciar a carne e lhe dava mais sabor. Estava em uma caçarola na parte de baixo da geladeira.
Ela guardou o restante das compras, trazendo os produtos mais antigos para a frente e dobrou as sacolas plásticas, colocando-as sob a pia. Retirou uma faca de uma gaveta. A tábua de cortar carnes estava debaixo da torradeira e Katie a colocou ao lado do fogão. Cortou as batatas ao meio, apenas o bastante para o jantar dos dois. A seguir, untou uma assadeira com óleo, ligou o forno e temperou as batatas com salsa, sal, pimenta e alho. Aqueles ingredientes iriam ao forno antes dos filés e Katie teria que requentá-los mais tarde. A carne tinha que ser grelhada.
Kevin gostava que os ingredientes da sua salada fossem cortados em pedaços bem pequenos, com pedaços de queijo gorgonzola, croutons e molho italiano. Ela cortou o tomate ao meio e um quarto do pepino antes de envolver o resto em filme plástico e guardá-los novamente na geladeira. Ao abrir a porta, ela percebeu que Kevin estava na cozinha por trás dela, apoiado contra o batente da porta que levava à sala de jantar. Ele tomou um longo gole, terminando sua vodca e continuando a observá-la, quase onipresente.
Ele não sabia que ela havia saído do salão, Katie fez questão de se lembrar. Não sabia que ela havia comprado um telefone celular. Ele teria dito alguma coisa. Teria feito alguma coisa.
— Vamos ter filé para o jantar?
Katie fechou a porta da geladeira e continuou a se mover pela cozinha, tentando parecer ocupada e tentando ficar à frente de seus medos.
— Sim. Acabei de ligar o forno, então ainda vai demorar alguns minutos. Preciso colocar as batatas para assar antes.
Kevin a olhava fixamente. 
— Seu cabelo está bonito.
— Obrigada. A cabeleireira trabalhou bem.
Katie voltou para a tábua de corte. Começou a cortar o tomate, tirando uma longa fatia.
— Nada de pedaços grandes — disse ele, meneando a cabeça na direção dela.
— Eu sei — respondeu Katie. Ela sorriu quando ele foi até o congelador novamente. Katie ouviu o tinir dos cubos de gelo em seu copo.
— Sobre o que você conversou enquanto estava no salão de beleza?
— Nada de mais. As coisas de sempre. Você sabe como as cabeleireiras são. Elas sempre tentam puxar assunto.
Ele balançou o copo. Ela podia ouvir os cubos de gelo batendo contra o vidro. 
— Você falou a meu respeito?
— Não — disse ela.
Ela sabia que Kevin não gostaria daquilo e ele fez que sim com a cabeça. Ele tirou a garrafa de vodca do congelador outra vez e a deixou ao lado do seu copo, sobre a mesa antes de ir atrás dela. Em pé, ele observou por cima do ombro de Katie enquanto ela picava os tomates. Pedaços pequenos, nada que fosse maior do que uma ervilha. Ela sentia a respiração de Kevin em sua nuca e tentou não gemer quando ele colocou as mãos nos seus quadris. Sabendo o que deveria fazer, ela pousou a faca sobre o balcão e se virou na direção dele, colocando seus braços ao redor do pescoço do marido. Ela o beijou, colocando sua língua na boca dele, sabendo que era isso o que ele queria, e não percebeu o tapa até que sentiu o ardor no seu rosto. Queimava. Quente e vermelho. Estalado. Como ferroadas de abelha.
— Você me fez desperdiçar a tarde inteira! — gritou ele, agarrando-lhe os braços com força, apertando-os. Sua boca estava contorcida e os olhos estavam vermelhos, injetados. Ela sentia o cheiro da bebida em seu hálito e algumas gotas de saliva lhe atingiram o rosto. — Era meu único dia de folga e você escolheu logo hoje para ir cortar o cabelo bem no meio da cidade! E depois quis ir ao supermercado!
Ela tentou se desvencilhar, tentou se afastar dele, até que Kevin finalmente a largou. Ele balançou a cabeça. O músculo do seu queixo pulsava. — Você, por acaso, chegou a pensar que a única coisa que eu queria fazer hoje seria relaxar um pouco? Aproveitar para descansar no meu único dia de folga?
— Me desculpe — disse ela, com a mão no rosto. Ela não disse que havia lhe perguntado duas vezes antes, naquela mesma semana, se haveria algum problema com aqueles planos. Ou que fora Kevin que a obrigara a ir para outro salão de beleza porque não queria que ela fizesse amizade com alguém. Não queria que ninguém soubesse da vida que eles tinham.
— Me desculpe — disse ele, no mesmo tom de voz de Katie. Ele olhou para ela antes de balançar a cabeça novamente. — Por Deus, Todo Poderoso. Será que é tão difícil pensar em alguma outra pessoa que não seja em você mesma?
Kevin estendeu o braço, tentando agarrá-la, e ela se virou, tentando correr. Ele estava preparado para aquela reação e não havia para onde ir. O golpe foi rápido e com força, o punho se movendo como um pistão, atacando a região lombar das costas de Katie. Ela arfou, sentindo sua visão escurecer, sentindo-se como se tivesse sido esfaqueada. Desabando no chão, sentiu seus rins arderem, a dor se irradiando pelas pernas e pela coluna. O mundo estava girando e quando ela tentou se levantar, seu movimento piorou a sensação.
— Você é egoísta demais, o tempo todo! — disse ele, curvando-se por cima dela.
Ela não disse nada. Não conseguia dizer nada. Não conseguia nem respirar. Ela mordeu seu lábio para não gritar e imaginou se iria urinar sangue no dia seguinte. A dor era como uma lâmina, dilacerando seus nervos, mas ela não iria chorar. Aquilo só serviria para deixar Kevin ainda mais furioso.
Ele continuou em pé ao lado dela e depois suspirou, com uma expressão de puro desprezo. Foi até a mesa, pegou seu copo vazio e a garrafa de vodca antes de sair da cozinha.
Katie levou quase um minuto para reunir a força necessária para se levantar. Quando começou a cortar os legumes novamente, suas mãos estavam tremendo. A cozinha estava gelada e a dor em suas costas era muito intensa, latejando com cada batida do seu coração. Na semana anterior, ele a havia golpeado com tanta força no estômago que ela tinha passado o resto da noite vomitando. Katie caiu no chão e Kevin a agarrou pelo pulso para fazer com que se levantasse novamente. Os hematomas em seu pulso tinham o formato dos dedos dele. Vestígios do inferno.
Lágrimas lhe escorriam pelo rosto e ela tinha dificuldade para se manter em pé, apoiando seu peso ora em uma perna, ora em outra, para tentar afastar a dor enquanto terminava de picar o tomate. Ela fez o mesmo com o pepino. Pedaços pequenos. O alface, também, cortado e picado. Do jeito que ele queria. Katie enxugou as lágrimas com as costas da mão e foi lentamente até a geladeira. De lá, tirou uma embalagem de queijo gorgonzola e depois pegou os croutons em outro armário.
Na sala de estar, ele havia aumentado o volume da televisão outra vez.
O forno estava na temperatura certa. Katie colocou a assadeira dentro do forno e ajustou o cronômetro. Quando o calor lhe atingiu o rosto, ela percebeu que sua pele ainda ardia, mas duvidava que o tapa houvesse deixado qualquer marca. Ele sabia exatamente a força que precisava usar. Ela se perguntava onde ele havia aprendido aquilo, se era algo que todos os homens sabiam, ou mesmo se havia aulas secretas, com instrutores especializados em ensinar essas coisas. Ou, ainda, se aquilo era apenas uma característica de Kevin.
A dor em suas costas havia finalmente começado a diminuir de intensidade. Ela já conseguia respirar normalmente. O vento soprava pelas frestas da janela e o céu havia assumido uma cor cinzenta e escura. A neve batia suavemente no vidro. Katie olhou discretamente em direção à sala, viu Kevin sentado no sofá e se apoiou no balcão. Tirou um dos sapatos de salto e esfregou os dedos dos pés, tentando fazer o sangue fluir, tentando aquecê-los. Fez o mesmo com o outro pé antes de voltar a calçar os sapatos.
Ela lavou e cortou as vagens e colocou um pouco de azeite de oliva na frigideira. Começaria a refogar as vagens quando os filés estivessem na grelha. E tentou não pensar no telefone que estava sob a pia.
Estava tirando a assadeira do forno quando Kevin voltou para a cozinha. Ele estava com o copo na mão e já havia bebido metade do conteúdo. Seus olhos estavam desfocados. Havia bebido quatro ou cinco doses. Ela não sabia ao certo. Katie colocou a assadeira sobre o fogão.
— Só mais um pouco — disse ela, falando num tom neutro, fingindo que nada havia acontecido. Ela havia aprendido que, se demonstrasse irritação ou mágoa, aquilo serviria apenas para enfurecê-lo. — Tenho que terminar de preparar os filés e o jantar logo vai ficar pronto.
— Olhe, me desculpe — disse ele. Ele cambaleava um pouco.
Ela sorriu. 
— Está tudo bem. Sei que as últimas semanas foram difíceis. Você tem trabalhado demais.
— Seu jeans é novo? — as palavras saíram arrastadas pela boca dele.
— Não. Faz algum tempo que não uso esta calça.
— É bonita.
— Obrigada — respondeu ela.
Kevin deu um passo em direção a ela. 
— Você é linda. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Sei, sim.
— Eu não gosto de bater em você. Mas, às vezes, você não pensa nas coisas que faz.
Ela assentiu, desviando o olhar, tentando pensar em algo para fazer, precisando se ocupar com algo, até se lembrar que precisava colocar os pratos e os talheres na mesa. Aproveitou e foi até o armário que ficava ao lado da pia.
Kevin se aproximou por trás dela enquanto Katie buscava os pratos e fez com que ela se virasse em sua direção, puxando-a para perto de si. Ela inalou antes de dar um suspiro de felicidade, porque
sabia que Kevin queria que ela respondesse aos seus carinhos com aqueles sons.
— Você tem que dizer que me ama também — sussurrou ele. Kevin beijou-lhe o rosto e ela colocou seus braços ao redor dele. Katie sentia-o pressionar contra seu corpo, sabia o que ele queria.
— Eu amo você — disse ela.
A mão de Kevin deslizou-se até o seio. Ela esperou que ele o apertasse, mas aquilo não aconteceu. Em vez disso, ele a acariciou suavemente. Apesar de tudo o que havia acontecido, seu mamilo começou a ficar intumescido e ela detestava quando aquilo acontecia. Mas não conseguia evitar. O hálito de Kevin estava quente. E com cheiro de bebida.
— Meu Deus, você é linda. Você sempre foi linda, desde a primeira vez que eu a vi — disse ele, pressionando seu corpo contra o dela, e ela conseguia sentir sua excitação. — Vamos deixar os filés para depois. O jantar pode esperar um pouco.
— Achei que você estivesse com fome — disse Katie, tentando fazer com que aquilo parecesse uma leve provocação.
— Estou com fome de outra coisa agora — sussurrou Kevin. Ele desabotoou a blusa que ela usava e a abriu, antes de levar as mãos para o botão do jeans.
— Aqui não — disse ela, afastando o rosto do dele, mas deixando que ele continuasse a beijá-la. — Vamos para o quarto.
— Que tal fazermos na mesa? Ou no balcão?
— Por favor, meu bem — murmurou ela, com a cabeça arqueada para trás enquanto ele a beijava no pescoço. — Não é nada romântico.
— Mas é gostoso — disse ele.
— E se alguém nos vir pela janela?
— Você não sabe se divertir — disse ele.
— Por favor, vamos — disse ela, novamente. — Não quer fazer isso por mim? Você sabe que me excita muito mais fazer na cama.
Ele a beijou mais uma vez, com as mãos indo até seu sutiã. Ele abriu o botão que prendia a peça na parte da frente. Kevin não gostava de sutiãs com o fecho na parte de trás. Ela sentiu o ar frio da cozinha em seus seios; viu o desejo no rosto de Kevin enquanto ele os olhava. Ele lambeu os lábios antes de levá-la até o quarto.
Ele foi tomado por uma energia animalesca logo que chegaram lá, puxando o jeans de Katie até os seus quadris e depois até os tornozelos. Ele lhe apertou os seios com força e ela mordeu o lábio para não gritar antes que eles estivessem na cama. Ela gemeu e arfou, gritando o nome de Kevin, sabendo que era isso o que ele queria, porque não queria que ele ficasse irritado, não queria ser estapeada, socada ou chutada, porque não queria que Kevin descobrisse o telefone celular. Katie ainda sentia a dor lancinante em seus rins e transformou seus gritos em gemidos, dizendo as coisas que ele queria que ela dissesse, excitando-o até que seu corpo começasse a se mover em espasmos. Quando tudo terminou, ela se levantou da cama, vestiu-se e o beijou antes de voltar à cozinha para terminar de preparar o jantar.
Kevin voltou para a sala de estar e bebeu mais vodca antes de vir até a mesa. Ele lhe falou sobre seu trabalho e depois foi até a sala para ver um pouco mais de televisão enquanto ela limpava a cozinha. Depois, ele quis que ela se sentasse ao seu lado para assistir à televisão, até que finalmente chegou a hora de ir dormir.
No quarto, depois de poucos minutos, ele já estava roncando, sem perceber as lágrimas silenciosas de Katie, sem perceber o ódio que ela sentia por ele, ou o ódio que sentia de si mesma. Sem saber sobre o dinheiro que ela vinha guardando há quase um ano, ou sobre a tintura de cabelo que ela havia colocado discretamente no carrinho de supermercado há um mês e que havia escondido atrás do armário, sem fazer a menor ideia sobre o telefone celular escondido no armário sob a pia da cozinha. Sem imaginar que, dentro de alguns dias, se tudo acontecesse como ela esperava, ele nunca mais voltaria a vê-la ou agredi-la.

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