Capítulo 19

KATIE ESTAVA SENTADA AO LADO de Alex na varanda e o céu acima dos dois era uma imensidão negra cravejada de pontos brilhantes. Durante meses ela vinha tentando bloquear as memórias mais específicas, tentando se concentrar apenas no medo que havia deixado para trás. Não queria se lembrar de Kevin, não queria pensar nele. Queria apagá-lo totalmente de sua vida, fingir que ele nunca existira. Mas ele sempre estaria lá.
Alex ficou em silêncio durante todo o relato, com sua cadeira formando um ângulo com a de Katie. Ela contou a história em meio às lágrimas, embora ele duvidasse que ela soubesse que estava chorando. Katie lhe contou tudo sem qualquer emoção, quase em um estado de transe, como se os eventos tivessem acontecido com outra pessoa. Ele sentiu seu estômago se revirar quando Katie parou de falar.
À medida que falava, não conseguia olhar nos olhos de Alex. Ele havia ouvido versões da mesma história antes, mas desta vez era diferente. Katie não era simplesmente uma vítima, era sua amiga, a mulher por quem ele havia se apaixonado. Alex afastou uma mecha do cabelo que caía por cima do rosto dela.
Quando a tocou, ela se moveu em um reflexo involuntário antes de relaxar. Ele a ouviu suspirar, cansada. Cansada de falar. Cansada do passado.
— Você fez a coisa certa ao sair de onde estava — disse ele. O tom de sua voz era suave e compreensivo.
Ela demorou um momento para responder. 
— Eu sei — disse ela.
— Você não tem culpa de nada.
Katie olhou em direção à escuridão. 
— Tenho, sim. Eu o escolhi, lembra-se? Eu me casei com ele. Deixei isso acontecer uma vez e outra vez depois disso. Ainda cozinhava para ele e limpava a casa. Dormia com ele sempre que ele queria e fazia tudo o que ele queria. Fiz com que ele pensasse que eu adorava aquela vida.
— Você fez o que tinha que fazer para sobreviver — disse ele, com a voz firme.
Ela voltou a ficar em silêncio. Os grilos estavam cantando e os gafanhotos zuniam entre as árvores. 
— Nunca pensei que uma coisa dessas pudesse acontecer. Meu pai era um alcoólatra, mas não era violento. Eu era tão... fraca. Não sei por que deixei isso acontecer.
Alex falou com voz suave. 
— Porque houve um tempo em que você o amava. Porque você acreditou no seu marido quando ele prometeu que aquilo não voltaria a acontecer. Porque ele ficou cada vez mais violento e controlador, de uma maneira muito lenta, fazendo-a pensar que mudaria, até que você finalmente percebeu que isso nunca aconteceria.
Com aquelas palavras, ela respirou fundo e baixou a cabeça, com os ombros se movendo para cima e para baixo. O som daquela
angústia fazia a garganta de Alex se apertar pela raiva em relação à vida que ela havia vivido e pela tristeza ao saber que ela ainda vivia com aquilo dentro de si. Ele sentiu vontade de abraçá-la, mas sabia que, neste momento, estava fazendo tudo o que ela queria. Ela estava frágil e vulnerável. Havia chegado ao seu limite.
Demorou alguns minutos até que Katie finalmente conseguisse parar de chorar. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. — Desculpe-me por ter lhe contado tudo isso. Eu não deveria — disse, com a voz ainda embargada.
— Fico feliz por ter contado.
— A única razão para eu ter feito isso é porque você já sabia.
— Eu entendo.
— Mas você não precisava saber dos detalhes sobre as coisas que tive que fazer.
— Não se preocupe com isso.
— Eu o odeio — disse ela. — Mas eu odeio a mim mesma também. Tentei lhe dizer que é melhor eu ficar sozinha. Não sou a pessoa que você pensa que sou. Não sou a mulher que você acha que conhece.
Ela estava a ponto de começar a chorar de novo, até que ele finalmente se levantou. Puxando-lhe a mão, ele indicou que queria que ela se levantasse. Katie o fez, mas não conseguia olhá-lo no rosto. Alex se esforçou para suprimir a raiva que sentia do marido dela e manteve a voz num tom suave.
— Ouça o que tenho a dizer — sussurrou Alex. Ele colocou um dedo sob o queixo de Katie para levantá-lo. Ela resistiu, a princípio, até que finalmente cedeu e o olhou nos olhos. Ele prosseguiu. — Não há nada que você possa me dizer que vá mudar o que sinto por você. Nada. Porque você não é assim. Você nunca foi assim. Você é a mulher que eu conheço. É a mulher que eu amo.
Katie o estudou, querendo acreditar nele, sabendo que, de algum modo, ele estava dizendo a verdade. E sentiu algo ceder dentro de si. Mesmo assim...
— Mas...
— Nada de “mas”, porque nada disso é importante. Você se enxerga como alguém que não conseguiu fugir do que o destino lhe reservou. Eu vejo uma mulher corajosa que escapou. Você se enxerga como alguém que deveria se sentir envergonhada ou culpada por ter permitido que aquilo lhe acontecesse. Eu vejo uma mulher bonita e gentil, que deveria sentir orgulho por ter impedido que aquilo voltasse a acontecer. Nem todas as mulheres têm a força para fazer o que você fez. É isso o que eu vejo agora e é isso que eu sempre vi quando olhava para você.
Ela sorriu. 
— Acho que você precisa usar óculos.
— Não deixe que os cabelos grisalhos a enganem. Meus olhos ainda estão perfeitos.
Ele se inclinou em direção a ela, cautelosamente, certificando-se de que tudo estava bem antes de beijá-la. Foi um beijo curto e suave. Carinhoso. 
— Apenas me sinto triste por você ter enfrentado tudo isso.
— Eu ainda estou enfrentando.
— Você acha que ele está procurando por você?
— Eu sei que ele está procurando por mim. E ele nunca vai parar — disse ela, antes de fazer uma pausa. — Tem algo errado com ele. Ele é... insano.
Alex pensou naquele comentário. 
— Eu sei que não deveria fazer essa pergunta, mas você já pensou em avisar a polícia?
Ela baixou os ombros. 
— Sim. Eu liguei uma vez.
— E eles não fizeram nada a respeito?
— Eles vieram até minha casa e conversaram comigo. E me convenceram de que seria melhor não prestar queixa.
Alex considerou aquilo. 
— Isso não faz sentido.
— Fazia bastante sentido para mim — disse ela, dando de ombros. — Kevin me avisou que não seria bom chamar a polícia.
— Como ele sabia?
Ela suspirou, pensando que era melhor contar tudo de uma vez.
— Porque ele é a polícia — disse ela, finalmente. Ela o olhou nos olhos. — Ele é um investigador no departamento de polícia de Boston. E ele não me chamava de Katie.
Seus olhos demonstravam seu desespero. 
— Ele me chamava de Erin.

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