Capítulo 1
O livro que você
está segurando nas duas mãos neste momento — presumindo que esteja, de fato,
segurando este livro, e que você só tem duas mãos — é um dos dois livros no
mundo que mostram a diferença entre a palavra ‘’nervoso’’ e a palavra ‘’ansioso’’.
O outro livro, é claro, é o dicionário, e eu, se fosse você, preferiria ler o
outro. Como este livro, o dicionário mostra que a palavra ‘’nervoso’’ significa
‘’preocupado com alguma coisa’’ — você poderia ficar nervoso, por exemplo, se lhe
servissem sorvete de ameixa seca de sobremesa, porque ficaria preocupado com a
possibilidade de o gosto ser horrível — ao passo que a palavra ‘’ansioso’’ significa
‘’atormentado por um suspense perturbador’’, que é como você poderia se sentir se
lhe servissem um jacaré vivo de sobremesa, pois seria atormentado pelo silêncio
perturbador contido na dúvida sobre se você vai comer a sobremesa ou se é a
sobremesa que vai comer você. Porém, diferentemente deste livro, o dicionário
também trata de palavras muito mais agradáveis de contemplar. A palavra ‘’bolha’’
está no dicionário, por exemplo, bem como a palavra ‘’pavão’’, a palavra ‘’férias’’
e as palavras ‘’a’’ , ‘’execução’’, ‘’do’’, ‘’autor’’, ‘’foi’’, ‘’suspensa’’,
as quais formam uma sentença que é sempre agradável de ouvir. Portanto, se você
fosse ler o dicionário em vez deste livro, poderia pular as partes sobre ‘’nervoso’’
e ‘’ansioso’’ e ler a respeito de coisas que não o deixem sem dormir a noite
toda, chorando e arrancando os cabelos.
Mas este livro
não é o dicionário, e se nele você pulasse as partes sobre ‘’nervoso’’ e ‘’ansioso’’,
estaria pulando os trechos mais agradáveis da história toda.
Em nenhum lugar
deste livro você encontrará as palavras ‘’bolha’’, ‘’pavão’’, ‘’férias’’, nem, infelizmente para mim, coisa
alguma sobre uma execução sendo suspensa. Em vez disso, lamento dizer, você
encontrará as palavras ‘’pesar’’, ‘’desespero’’
e ‘’deplorável’’, bem como as expressões ‘’passagem escura’’, ‘’o conde Olaf
disfarçado’’ e ‘’os órfãos Baudelaire caíram numa armadilha’’ , mais uma
variedade de palavras e expressões lamentáveis que não tenho coragem de escrever
aqui. Em suma, ler um dicionário poderá deixá-lo nervoso, pois você se
preocuparia por achá-lo muito maçante, mas ler este livro o deixará ansioso,
pois será atormentado pelo suspense perturbador em que os órfãos Baudelaire se
encontram, e eu, se fosse você, deixaria cair este livro das suas duas ou mais
mãos e, em vez dele, me enrascaria confortavelmente para ler um dicionário,
porque todas aquelas palavras lamentáveis que preciso usar para descrever
aqueles infelizes acontecimentos estão prestes a chegar aos seus olhos.
— Imagino que vocês devem estar nervosos — disse
o Sr. Poe. O Sr. Poe era um executivo de banco que ficara encarregado dos
órfãos Baudelaire logo em seguida à morte dos pais deles em um horrível
incêndio. Lamento dizer que o Sr. Poe não tinha feito um bom trabalho até
então, e que os Baudelaire aprenderam que a única coisa com que podiam contar
no que dizia respeito ao Sr. Poe era o fato de que ele estava sempre com tosse.
Na verdade, toda vez que terminava de falar uma frase, pegava o seu lenço
branco e tossia nele.
Um vislumbre do
algodão branco era praticamente a única coisa que os órfãos Baudelaire puderam
ver. Violet, Klaus e Sunny estavam com o Sr. Poe na frente de um enorme
edifício de apartamentos na Avenida Sombria, que ficava em um dos bairros mais
sofisticados da cidade. Embora a Avenida Sombria ficasse a apenas alguns
quarteirões de distância do lugar onde antes se erguera a mansão Baudelaire, as
três crianças nunca tinham estado antes naquelas vizinhanças e presumiram que a
palavra ‘’sombria’’ na Avenida Sombria era simplesmente um nome e nada mais,
assim como Bulevar George Washington não indica necessariamente que ali mora
George Washington, ou Sexta Avenida não indica que as lojas ali só abrem às
sextas-feiras. Mas naquela tarde os Baudelaire perceberam que Avenida Sombria
era mais que um nome. Era uma descrição apropriada. Em vez de postes de luz,
havia árvores enormes a intervalos regulares ao longo da calçada, de um tipo
que as crianças nunca tinham visto antes — e que mal podiam ver agora. No alto
de um tronco grosso e espinhento, os galhos pendiam como roupa pendurada para
secar, espalhando suas folhas largas e chatas em todas as direções, como um
teto baixo e folhudo por cima das cabeças dos Baudelaire. Esse teto bloqueava
toda a luz que vinha de cima e com isso, muito embora fosse o meio da tarde, a
rua parecia escura como se já fosse noite — se bem que um tanto esverdeada. Não
se diria que era um bom jeito de fazer com que os órfãos se sentissem
bem-vindos ao se aproximar do seu novo lar.
— Vocês não têm por que ficar nervosos — disse
o Sr. Poe, guardando o lenço de volta no bolso. — Entendo que alguns dos seus antigos tutores
lhes causaram alguns probleminhas, mas acho que o Sr. e a Sra. Squalor vão lhes
proporcionar um lar apropriado.
— Não estamos nervosos — disse Violet. — Estamos ansiosos demais para estar nervosos.
— 'Ansioso' e 'nervoso' significam a mesma
coisa — disse o Sr. Poe. — E de qualquer
modo, que razão vocês têm para estar nervosos?
— O conde Olaf, é claro — respondeu Violet.
Violet tinha catorze anos, o que fazia dela a mais velha das crianças
Baudelaire e a que mais provavelmente se animaria a falar abertamente com
adultos. Era uma excelente inventora e tenho certeza de que, se não estivesse
tão ansiosa, teria prendido o cabelo com uma fita para não cair nos olhos
enquanto pensava em alguma invenção que trouxesse claridade aos seus arredores.
— O conde Olaf? — disse o Sr. Poe com
indiferença. — Não se preocupem com ele.
Nunca encontrará vocês aqui.
As três crianças
se entreolharam e suspiraram. O conde Olaf tinha sido o primeiro tutor que o Sr.
Poe encontrara para os órfãos, e era uma pessoa tão tenebrosa quanto a Avenida
Sombria. Tinha uma única e longa sobrancelha, um olho tatuado no tornozelo e
duas mãos imundas que ele esperava usar para arrebatar a fortuna dos
Baudelaire, a ser herdada pelos órfãos assim que Violet chegasse à maioridade.
As crianças tinham convencido o Sr. Poe a tirá-los dos cuidados de Olaf, mas
desde então o conde as perseguia com uma determinação obstinada, uma frase que
aqui significa ‘’arquitetando planos traiçoeiros e usando disfarces para tentar
enganar as três crianças, onde quer que elas estivessem’’.
— É difícil não se preocupar com Olaf — disse
Klaus, tirando os óculos para ver se ficava mais fácil olhar em volta na
escuridão sem eles, — porque ele tem os
nossos confrades em suas garras. — Embora Klaus, o Baudelaire do meio, tivesse
apenas doze anos, já havia lido tantos livros que freqüentemente usava palavras
como ‘’confrades’’, que é uma palavra sofisticada para ‘’amigos’’. Klaus estava
se referindo aos trigêmeos Quagmire, que os Baudelaire conheceram quando estavam
no colégio interno.
Duncan Quagmire
era um repórter, e estava sempre anotando informações úteis no seu caderno.
Isadora Quagmire era uma poeta, e usava o seu caderno para escrever poesia. O
terceiro gêmeo, Quigley, morrera em um incêndio antes que os órfãos Baudelaire
tivessem a oportunidade de conhecê-lo, mas os Baudelaire tinham certeza de que
ele teria sido tão bom amigo quanto os seus irmãos. Como os Baudelaire, os
Quagmire eram órfãos e perderam os pais no mesmo incêndio que custara a vida ao
irmão e, também como os Baudelaire, tinham herdado uma enorme fortuna na forma
das famosas safiras Quagmire, que eram gemas muito raras e valiosas. Mas
diferentemente dos Baudelaire, não conseguiram escapar das garras do conde
Olaf. Justo quando os Quagmire ficaram sabendo de um terrível segredo a
respeito de Olaf, ele os sequestrou e os Baudelaire, desde então, ficaram tão
preocupados que mal conseguiam dormir por um instante que fosse. Sempre que
fechavam os olhos, viam apenas o longo carro preto que levara embora os Quagmire,
e ouviam apenas o som dos seus amigos gritando um fragmento do terrível segredo
que acabavam de conhecer.
— C.S.C.! — gritara Duncan, logo antes de o
carro sair na disparada, e os Baudelaire rolavam na cama de um lado para outro,
preocupados com os seus amigos, e se perguntavam que diabo queria dizer C.S.C.
— Vocês também não precisam se preocupar com
os Quagmire — disse o Sr. Poe, confiante. — Pelo menos, não por muito tempo. Não sei se
vocês chegaram a ler o boletim da Administração de Multas, mas tenho algumas
boas novas sobre os seus amigos.
— Gavu? — perguntou Sunny. Sunny era a mais
jovem dos órfãos Baudelaire, e também a menor. Era pouco maior que um salame.
Este era um tamanho comum para a sua idade, mas ela tinha quatro dentes que
eram maiores e mais afiados que os de qualquer outro bebê que eu tenha visto.
Entretanto, apesar da maturidade da sua boca, Sunny em geral falava de um modo
que a maioria das pessoas achava difícil de entender. Com ‘’Gavu’’, por
exemplo, ela queria dizer ‘’Os Quagmire foram encontrados e resgatados?’’, ou
algo do gênero, e Violet foi logo traduzindo para que o Sr. Poe entendesse.
— Melhor que isso — disse o Sr. Poe. — Eu fui promovido. Agora sou Vice-Presidente Encarregado
dos Assuntos de Órfãos. Isto significa que estou encarregado não só da situação
de vocês, como também da dos órfãos Quagmire. Prometo a vocês que vou
concentrar grande parte da minha energia em encontrar os Quagmire e trazê-los
de volta à segurança, ou meu nome não é... — aqui o Sr. Poe se interrompeu para
tossir mais uma vez no seu lenço, e os Baudelaire aguardaram pacientemente até
ele terminar — ... Poe. Então, assim que eu deixar vocês aqui vou fazer uma
viagem de helicóptero por três dias ao pico de uma montanha onde os Quagmire podem
ter sido vistos. Será muito difícil falar comigo durante esse tempo, pois o
helicóptero não tem telefone, mas ligarei para vocês assim que retornar com os
seus jovens companheiros. Agora, dá para vocês enxergarem o número deste
prédio? Para mim, está difícil ver se estamos no lugar certo.
— Acho que é 667 — disse Klaus, apertando os
olhos na tênue luz verde.
— Então, aqui estamos — disse o Sr. Poe. — O Sr. e a Sra. Squalor moram no apartamento
de cobertura da Avenida Sombria 667. Acho que a porta é aqui.
— Não, é lá adiante — disse uma voz aguda e
rascante na escuridão. Os Baudelaire, surpresos, se sobressaltaram um pouco, se
voltaram e viram um homem que usava um chapéu de aba larga e um casaco grande
demais para ele. As mangas do casaco cobriam-lhe as mãos completamente, e a aba
do chapéu cobria a maior parte do seu rosto. Era tão difícil de enxergar que
não foi à toa que as crianças não notaram a presença dele antes. — A maioria dos nossos visitantes acha a porta
difícil de encontrar — disse o homem. — É
por isso que contrataram um porteiro.
— Bem, fico feliz por terem feito isso — disse
o Sr. Poe. — Meu nome é Poe, e tenho uma
hora marcada com o Sr. e a Sra. Squalor para deixar os novos filhos deles.
— Ah, sim — disse o porteiro. — Eles me disseram que vocês vinham. Entrem. —
O porteiro abriu a porta do edifício e
os fez entrar em uma sala tão escura quanto a rua. No lugar de lâmpadas, tudo o
que havia era umas poucas velas no chão, e as crianças mal podiam distinguir se
estavam em uma sala grande ou em uma sala pequena.
— Nossa! Está escuro aqui — disse o Sr. Poe. — Por que você não pede aos seus patrões que
instalem aqui uma boa e forte lâmpada halógena?
— Não podemos — respondeu o porteiro. — Neste momento, o escuro está in.
— In? — perguntou Violet. — In como?
— Apenas in — explicou o porteiro. — Por aqui, as pessoas decidem se alguma coisa
é in, o que quer dizer que está ‘’por dentro’’, tem estilo e é atraente, ou
out, o que quer dizer o contrário, que está ‘’por fora’’. E fica mudando o
tempo todo. Faz só um par de semanas, o escuro estava out e a luz estava in, e
vocês deviam ter visto estas vizinhanças. Era preciso usar óculos escuros o tempo
todo, para não ferir a vista.
— Com que então, escuro é in — disse o Sr.
Poe. — Espere só até eu contar para a minha
mulher. Nesse meio-tempo, pode nos mostrar onde fica o elevador? O Sr. e a Sra.
Squalor moram no apartamento de cobertura, e não quero subir a pé até o último
andar.
— Bem, receio que vocês tenham de fazer isso —
disse o porteiro. — Logo ali há um par
de portas de elevador, mas não terão nenhuma utilidade para vocês.
— O elevador está quebrado? — perguntou
Violet. — Eu sou muito boa com dispositivos
mecânicos, e ficaria feliz em dar uma olhada.
— É uma oferta muito gentil e inusitada — disse
o porteiro. — Mas o elevador não está quebrado.
Simplesmente está out. A vizinhança decidiu que os elevadores estavam out e
então eles desligaram o elevador. As escadas estão in, portanto ainda resta um
jeito de chegar à cobertura. Vou mostrar a vocês.
O porteiro
mostrou o caminho através do saguão e os órfãos Baudelaire olharam para cima,
perscrutando uma longa escadaria curva, feita de madeira, com um corrimão de
metal que acompanhava as suas curvas. Podiam ver que alguém colocara mais velas
a cada poucos degraus, de modo que a escadaria parecia ser formada por nada
mais que curvas de luzes bruxuleantes que iam ficando cada vez mais pálidas à
medida que a escada ia subindo, até não dar para ver mais nada.
— Nunca vi nada assim — disse Klaus.
— Parece mais uma caverna que uma escada — disse
Violet.
— Pinse! — disse Sunny, o que queria dizer
algo como ‘’Ou o espaço cósmico!’’.
— Me parece ser uma longa escalada — disse o Sr.
Poe franzindo as sobrancelhas. Ele voltou-se para o porteiro. — Quantos andares tem essa escadaria? — Os
ombros do porteiro se encolheram embaixo do seu casaco grande demais.
— Não me lembro — disse ele. — Acho que são quarenta e oito, mas podem ser oitenta
e quatro.
— Eu não sabia que os edifícios podiam ser tão
altos — disse Klaus.
— Bem, sejam quarenta e oito ou oitenta e
quatro — disse o Sr. Poe, — eu não tenho
tempo para subir tudo isso com vocês, crianças. Vou perder o meu helicóptero. Vocês
terão de subir sozinhos, e transmitir as minhas saudações ao Sr. e à Sra. Squalor.
— Teremos de subir sozinhos? — disse Violet.
— Dêem-se por felizes de não ter trazido as
suas coisas com vocês — disse o Sr. Poe. — A Sra. Squalor disse que não havia
razão para trazer nenhuma das roupas de vocês, e eu acho que isto é porque ela
queria poupá-los do esforço de arrastar malas por todas essas escadas acima.
— O senhor não vem conosco? — perguntou Klaus.
— Eu simplesmente não tenho tempo para
acompanhá-los — disse o Sr. Poe, — e é isso.
Os Baudelaire se
entreolharam. As crianças sabiam, como estou certo de que vocês sabem, que
normalmente não há motivo para ter medo do escuro, porém mesmo que a gente não
sinta realmente medo de alguma coisa, pode não querer chegar perto dela, e os
órfãos estavam um pouquinho nervosos com a idéia de ter de escalar tudo aquilo
até o fim sem um adulto do lado.
— Se vocês estão com medo do escuro — disse o Sr.
Poe, — imagino que posso adiar a minha
busca pelos Quagmire e levá-los aos seus novos tutores.
— Não, não — Klaus apressou-se a dizer. — Não estamos com medo do escuro, e encontrar
os Quagmire é muito mais importante.
— Obog — disse Sunny meio em dúvida.
— Apenas tente engatinhar enquanto aguentar — disse
Violet à irmã, — e então Klaus e eu nos revezaremos carregando você. Até logo, Sr.
Poe.
— Até logo, crianças — disse o Sr. Poe. — Se houver qualquer problema, lembrem-se de
que sempre poderão contatar a mim ou qualquer dos meus colegas na Administração
de Multas — pelo menos, assim que eu descer do helicóptero.
— Tem uma coisa de bom com essa escadaria — brincou
o porteiro, começando a acompanhar o Sr. Poe de volta à porta da frente. — A partir deste ponto, é tudo 'pra cima'. — Os órfãos Baudelaire ouviram as risadinhas do
porteiro enquanto ele desaparecia nas trevas e subiram os primeiros degraus.
Como vocês com
certeza já sabem, a expressão ‘’A partir deste ponto, é tudo 'pra cima' ‘’ não
tem nada a ver com subir as escadas. Significa simplesmente que as coisas vão
melhorar no futuro. As crianças tinham entendido a piada, mas estavam ansiosas
demais para rir. Estavam ansiosas em relação ao conde Olaf, que poderia
encontrá-los a qualquer minuto. Estavam ansiosas em relação aos trigêmeos
Quagmire, que poderiam jamais voltar a ver. E agora, começando a subir a
escadaria à luz de velas, estavam ansiosas em relação aos seus novos tutores.
Tentavam imaginar que espécie de gente viveria em uma rua tão escura, em um
prédio tão escuro, e no alto de quarenta e oito ou oitenta e quatro lances de
escada muito escuros. Acharam difícil de acreditar que as coisas fossem
melhorar no futuro vivendo em um ambiente tão deprimente e mal iluminado. Muito
embora os aguardasse uma longa escalada, quando os órfãos Baudelaire começaram
a subir na escuridão estavam ansiosos demais para acreditar que tudo seria ‘’pra cima’’ a partir daquele ponto.
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