Capítulo 2
É muito, mas muito pior receber más notícias por escrito do que
quando alguém chega e nos dá de cara a má notícia. Estou certo de que vocês
entendem perfeitamente por quê. Quando alguém nos fala uma má notícia, ouvimos
aquela única vez e acabou-se. Porém quando a má notícia vem por escrito, seja
numa carta ou num jornal, ou traçada com uma caneta de ponta de feltro em nosso
braço, temos a sensação de estar recebendo a notícia continuamente, sem parar. Por
exemplo, há muito tempo gostei de uma mulher que por diversos motivos não pôde
se casar comigo. Se ela tivesse se limitado a me dizer isso pessoalmente, eu
teria ficado triste, não resta dúvida, mas depois de um tempo acabaria
superando. Só que ela preferiu escrever um livro, de duzentas páginas, dando a
má notícia com os mínimos detalhes e estendendo-se ao máximo sobre o assunto; a
tristeza provocada não podia ser maior. Quando o livro me chegou às mãos
trazido por uma revoada de pombos-correio, passei a noite toda lendo-o, e leio-o
até hoje, estou sempre voltando a ele, como se minha querida Beatrice me desse
a má notícia todos os dias e todas as noites de minha vida.
Os órfãos Baudelaire bateram e tornaram a bater no portão de
madeira, tendo o cuidado de não encostar os nós de seus dedos nas letras feitas
de chiclete mascado, mas ninguém atendeu; então experimentaram empurrar o
portão e verificaram que ele não estava trancado. lá dentro havia um pátio
amplo com chão de terra, sobre o qual encontraram um envelope com a palavra ‘’Baudelaire’’ datilografada. Klaus apanhou o
envelope e o abriu. Havia um bilhete:
Memorando
Para: órfãos Baudelaire
De: Serraria Alto-Astral
Assunto: Chegada à
empresa
Vocês encontrarão anexo um mapa da Serraria Alto-Astral, com
indicação do dormitório onde os três ficarão instalados de graça. Favor
apresentem-se para trabalhar amanhã junto com os demais empregados. O
proprietário da Serraria Alto-Astral espera que vocês sejam assíduos e
diligentes.
— O que querem dizer essas
palavras: 'assíduos' e 'diligentes'? — perguntou Violet, espiando por cima do
ombro de Klaus.
— Neste caso, 'assíduos' e
'diligentes' querem dizer a mesma coisa: 'que dão duro no trabalho' — respondeu
Klaus, que conhecia uma porção de palavras difíceis dos vários livros que havia
lido.
— Mas o Sr. Poe não falou
nada sobre trabalhar na serraria — disse Violet. — Pensei que viéssemos apenas morar aqui.
Klaus franziu a testa, concentrando-se na leitura do mapa que
estava grudado ao bilhete por uma bolota de chiclete mascado.
— Este mapa é bem fácil de entender
— disse.
— Chega-se ao dormitório
seguindo direto em frente. Ele está localizado entre o galpão de depósito e a
própria serraria.
Violet olhou para a frente e viu uma construção cinzenta sem
janelas, do outro lado do pátio.
— Não quero morar — disse ela,
— entre o galpão de depósito e a própria serraria.
— Não promete ser muito
divertido — reconheceu Klaus, — mas
nunca se sabe. A serraria pode ter máquinas complicadas, e talvez você se
interesse em estudá-las.
— Isso é verdade — disse
Violet. — Nunca se sabe. Pode ter
madeira dura que Sunny se interesse em roer.
— Snevi! — gritou Sunny .
— E pode ser que haja
manuais de serraria interessantes para eu ler — disse Klaus.
— Nunca se sabe.
— Pois é — disse Violet. — Nunca se sabe. Este pode ser um lugar
maravilhoso para morar.
Os três irmãos se entreolharam e sentiram-se um pouco melhor. A
verdade, sem dúvida alguma, é que nunca se sabe. Uma nova experiência tanto
pode ser extremamente agradável como extremamente irritante, ou qualquer coisa
entre um ou outro extremo, e nunca se sabe até passar por ela. À medida que
foram caminhando rumo à construção cinzenta sem janelas, as crianças começaram
a se sentir dispostas a passar pela experiência de um novo lar na Serraria
Alto- Astral, porque nunca se sabe. Porém — e dói-me o coração ao dizer isto
para vocês — eu sei. Sei porque estive na Serraria Alto-Astral e me informei
sobre todos os acontecimentos atrozes que esses pobres órfãos viveram durante o
curto período em que moraram lá. Sei porque conversei com algumas pessoas que
os conheceram naquela época, e ouvi com meus próprios ouvidos a história
aflitiva da permanência desses meninos em Paltry ville. E sei porque pus no
papel todos os detalhes para mostrar a vocês, leitores, quão terrível foi a
experiência dos Baudelaire. Eu sei, e é um conhecimento que oprime meu coração
como se houvesse um pesa-papéis sobre ele. Gostaria de haver estado na serraria
quando os três irmãos passaram por lá, porque eles não sabiam. Gostaria de ter
tido a oportunidade de contar-lhes o que sei enquanto eles atravessavam o
pátio, levantando pequenas nuvens de poeira a cada passo. Eles não sabiam, mas
eu sei e gostaria que eles soubessem, se é que vocês sabem o que quero dizer.
Quando os Baudelaire chegaram à porta da construção cinzenta,
Klaus olhou novamente o mapa, assentiu com um movimento de cabeça, e bateu.
Depois de uma longa pausa, a porta se abriu com um rangido e revelou um homem
com ar desconcertado, as roupas cobertas de serragem. Ele ficou encarando as
três crianças por um bom tempo antes de falar.
— Faz catorze anos — disse
enfim, — que ninguém bate nesta porta. — Quando alguém diz algo tão estranho
que não sabemos nem o que responder, às vezes o melhor é recorrer a uma fórmula
de boa educação e dizer apenas: ‘’Como
vai?’’.
— Como vai? — disse
educadamente Violet. — Eu me chamo
Violet Baudelaire e esses são meus irmãos, Klaus e Sunny .
O homem com ar desconcertado pareceu ainda mais desconcertado e
pôs as mãos nos quadris, depois de um gesto para tirar um pouco da serragem que
tinha sobre a camisa.
— Vocês têm certeza de que vieram parar no lugar certo? — perguntou.
— Acho que sim — disse
Klaus. — Não é aqui o dormitório da
Serrana Alto-Astral?
— Sim — disse o homem, — mas
não são permitidas visitas.
— Não viemos como
visitantes — respondeu Violet. — Viemos
morar aqui. — O homem coçou a cabeça e
os Baudelaire ficaram olhando para a serragem que caía de seus cabelos
grisalhos em desordem. — Vocês estão
vindo morar aqui, na Serraria Alto-Astral?
— Cigam! — gritou Sunny , o
que significava: ‘’Veja este bilhete!’’.
Klaus entregou o bilhete ao homem, que teve o cuidado de não tocar
no chiclete mascado enquanto lia o texto. Em seguida encarou os órfãos com seus
olhos cansados e salpicados de serragem.
— Vocês vêm trabalhar aqui,
também? Garotos, escutem uma coisa: trabalhar numa serraria é muito difícil. É
preciso retirar a casca das árvores e serrá-las em tiras estreitas para fazer
tábuas. As tábuas têm que ser amarradas em pilhas e embarcadas em caminhões.
Devo lhes dizer que a maioria das pessoas que trabalha em serranas é adulta.
Mas se o proprietário está dizendo que vocês vão trabalhar aqui, não duvido:
vocês vão trabalhar aqui, e pronto. É melhor entrarem. — O homem abriu toda a
porta e os Baudelaire entraram no dormitório. — Meu nome é Phil, diga-se de passagem — disse
Phil.
— Vocês podem jantar
conosco daqui a pouco, mas antes vou mostrar-lhes o dormitório. — Phil conduziu
os garotos para um grande cômodo pouco iluminado, repleto de beliches dispostos
em fileiras sobre um piso de cimento. Sentados ou deitados nos beliches havia
um monte de gente, homens e mulheres, todos com ar cansado e todos cobertos de
serragem. Reuniam-se em grupos de quatro ou cinco, jogando cartas, conversando
em voz baixa, ou simplesmente com o olhar perdido; e foram raros os que
ergueram os olhos demonstrando um mínimo de interesse pela presença dos meninos
no aposento. O lugar todo tinha um cheiro de mofo, aquele tipo de cheiro que
fica nos cômodos quando as janelas não são abertas durante um bom tempo. É
evidente que no dormitório de que estamos falando as janelas nunca foram
abertas, porque não havia janelas; embora os garotos pudessem ver que alguém
desenhara com caneta esferográfica umas janelas de mentira sobre as paredes de
cimento. De certo modo, os desenhos tornavam o dormitório ainda mais patético —
palavra que aqui significa ‘’deprimente e privado de janelas’’ —, fazendo os órfãos
Baudelaire sentirem um bolo na garganta só de olhar para eles.
— Este é o quarto em que
dormimos — disse Phil. — Há um beliche
lá adiante, no final da parede, que pode ficar para vocês três. Deixem a
bagagem debaixo da cama. Aquela porta dá para o banheiro e no final daquele
corredor que se vê lá longe fica a cozinha. E não há muito mais que isso para
mostrar. Ei, pessoal, estes são Violet, Klaus e Sunny . Eles vieram trabalhar
aqui.
— Mas são crianças — disse
uma das mulheres.
— Eu sei — falou Phil. — Mas o proprietário disse que eles vão
trabalhar aqui, então eles vão trabalhar aqui.
— Aliás — falou Klaus, — como é o nome do proprietário? Ninguém nos
disse.
— Não sei — falou Phil,
passando a mão pelo queixo ossudo. — Ele
não aparece aqui no dormitório há uns seis anos ou por aí. Alguém se lembra de
como se chama o proprietário?
— Acho que é Senhor
qualquer coisa — disse um dos homens.
— Quer dizer que vocês
nunca falam com ele? — perguntou Violet.
— Nunca o vemos — disse
Phil. — O proprietário mora numa casa
que fica depois do galpão de depósito, e só vem à serraria em ocasiões
especiais. O capataz a gente vê o tempo todo, mas o proprietário nunca.
— Teruca? — perguntou Sunny
, provavelmente querendo dizer: ‘’O que é um capataz?’’ .
— Um capataz — explicou
Klaus, — é alguém que supervisiona os
operários. Ele é legal, Phil?
— Ele é horrível! — disse
um dos homens, e mais alguns juntaram-se ao coro de queixosos: — Ele é terrível.
— Ele é nojento.
— Ele é o pior capataz que
já houve no mundo!
— Ele é bem ruinzinho — disse
Phil para os Baudelaire. — O cara que
trabalhava antes dele, o capataz Firstein, até que era legal. Mas na semana
passada ele parou de vir trabalhar. O maior mistério. O homem que o substituiu,
o capataz Flacutono, é muito desagradável. Procurem lidar com o lado bom dele
para evitar amolações.
— Ele não tem um lado bom —
disse uma mulher.
— Bem, bem — disse Phil. — Todo mundo e todas as coisas têm um lado
bom. Vamos indo, pessoal, vamos jantar.
Os órfãos Baudelaire sorriram para Phil e foram para a cozinha com
os outros empregados da Serraria Alto-Astral, mas continuavam com bolos na
garganta tão massudos quanto os bifes que lhes serviram para comer. Ouvindo
Phil dizer que existe um lado bom em todo mundo e em todas as coisas, os
meninos perceberam logo que estavam diante de um otimista. ‘’Otimista’’ é uma palavra que aqui está sendo
usada para referir-se a uma pessoa, como Phil, que só pensa e espera coisas
boas de praticamente tudo. Por exemplo, se um otimista tivesse o braço esquerdo
arrancado por uma dentada de crocodilo, diria, num tom de voz simpático e
esperançoso:
— Bem, afinal não foi tão
ruim. Não tenho mais o meu braço esquerdo, mas em compensação ninguém nunca me
perguntará se sou destro ou canhoto —; ao passo que a maioria dentre nós
gritaria: — Aiiii! Meu braço! Meu braço!
— ou algo do gênero.
Os órfãos Baudelaire engoliram a comida e tentaram ser otimistas
como Phil, contudo, por mais que tentassem, nenhum de seus pensamentos
conseguiu ser agradável ou esperançoso. Pensaram no beliche que iriam repartir,
no quarto com cheiro de mofo e nas janelas desenhadas nas paredes. Pensaram no trabalho
pesado que enfrentariam na serraria, com serragem por todo o corpo e o capataz
Flacutono mandando fazer isto e aquilo. Pensaram na casa em forma de olho, do
lado de fora do portão de madeira. E pensaram sobretudo em seus pais, seus
pobres pais que lhes faziam tanta falta e que nunca mais tornariam a ver.
Pensaram em tudo isso durante o jantar inteiro, e depois enquanto vestiam os
pijamas, e ainda pensavam nisso quando Violet agitou-se e trocou de posição na
cama de cima do beliche e Klaus e Sunny se agitaram e trocaram de posição na
cama de baixo.
Pensaram, como já haviam feito no pátio, que nunca se sabe, e que
apesar de tudo o novo lar ainda poderia ser maravilhoso. Mas tinham suas
dúvidas. E, quando os empregados da Serraria Alto-Astral começaram a roncar, os
meninos pensaram em todas as circunstâncias infelizes que os cercavam, e
começaram a duvidar. Agitaram-se e trocaram de posição, as dúvidas crescendo em
novas dúvidas. E, quando finalmente adormeceram, não havia mais nenhum otimista
no beliche dos Baudelaire.
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