Capítulo 22

A NEVE COBRIA OS JARDINS de Dorchester, formando uma camada cintilante sobre o mundo do lado de fora da janela da casa onde ela morava. O céu de janeiro, cinza no dia anterior, havia se transformado em um azul gelado e a temperatura estava abaixo de zero.
Era a manhã de um domingo, o dia seguinte à sua ida ao salão de beleza. Ela olhou no vaso sanitário para ver se havia algum sinal de sangue, certa de que havia visto alguma coisa depois de urinar. Seu rim ainda latejava e a dor se irradiava dos ombros até as canelas. A dor a manteve acordada por várias horas enquanto Kevin roncava ao seu lado, mas, felizmente, não era tão sério quanto podia ter sido. Depois de fechar a porta do quarto por trás de si, Erin mancou até a cozinha, lembrando a si mesma de que, dentro de um ou dois dias, tudo aquilo estaria terminado. Mas ela precisava ter cuidado para não levantar as suspeitas de Kevin, tinha que fazer as coisas exatamente da maneira certa. Se ignorasse a surra que levara na noite anterior, ele ficaria desconfiado. Se ela se afastasse demais, ele também ficaria desconfiado. Depois de quatro anos naquele inferno, Erin havia aprendido as regras do jogo.
Kevin teria que ir para o trabalho ao meio-dia, independentemente de ser domingo, e ela sabia que ele não tardaria a acordar. A casa estava fria e ela vestiu uma blusa grossa de lã sobre seu pijama. Pela manhã, Kevin geralmente não se importava com aquilo, porque a ressaca o deixava letárgico demais para tomar qualquer atitude. Ela começou a fazer o café da manhã e colocou o leite e o açúcar na mesa, com a manteiga e a geleia. Colocou os talheres para ele na mesa e deixou um copo de água gelada ao lado do garfo. Depois, colocou duas fatias de pão de forma na torradeira, embora ainda não tivesse ligado o aparelho. Deixou três ovos sobre o balcão, onde poderia alcançá-los rapidamente. Em seguida, colocou seis fatias de bacon na frigideira. Elas já estavam crepitando e chiando em meio à fritura quando Kevin chegou à cozinha. Ele se sentou à mesa e bebeu água enquanto ela lhe trazia sua xícara de café.
— Eu dormi feito uma pedra na noite passada. A que horas fomos para a cama?
— Por volta das 10, eu acho — respondeu ela. Erin colocou o café ao lado do seu copo vazio. — Não estava tarde. Você tem trabalhado demais e eu sei que está cansado.
Os olhos de Kevin estavam vermelhos. 
— Desculpe pelo que fiz ontem à noite. Não queria ter feito aquilo. Estou trabalhando sob uma pressão muito forte ultimamente. Desde que Terry sofreu o ataque cardíaco estou tendo trabalhos em dobro, e o caso Preston começa esta semana.
— Está tudo bem — disse ela, ainda sentindo o cheiro do álcool no hálito de Kevin. — Seu café da manhã vai ficar pronto logo.
No fogão, ela virou as fatias de bacon com um garfo e a gordura quente respingou no seu braço, fazendo com que ela esquecesse temporariamente da dor que sentia nas costas.
Quando o bacon estava crocante, ela colocou quatro fatias no prato de Kevin e duas no seu próprio. Ela escorreu a gordura e a guardou em uma lata de sopa, enxugou a frigideira com uma toalha de papel e voltou a untá-la com óleo. Tinha que trabalhar rápido para que o bacon não esfriasse. Ligou a torradeira e quebrou os ovos. Kevin gostava que seus ovos estivessem fritos no ponto médio, com a gema intacta, e Erin havia aprendido a fazer aquilo com perfeição. A frigideira ainda estava quente e os ovos não demoraram a estar prontos. Ela os virou na frigideira uma vez antes de colocar dois no prato dele e um no prato onde iria comer.
Erin se sentou à frente de Kevin, pois ele gostava de tomar o café da manhã acompanhado. Ele passou manteiga em sua torrada e acrescentou a geleia de uva antes de usar seu garfo para partir os ovos. A gema escorreu pelo prato como sangue amarelado e ele esfregou a torrada nos ovos antes de comê-los.
— O que você vai fazer hoje? — perguntou ele. Kevin usou seu garfo para cortar mais um pedaço do ovo. Mastigando.
— Estava pensando em lavar as janelas e colocar as roupas na máquina de lavar — disse ela.
— Acho que os lençóis também precisam de uma boa lavagem, não é? Depois de termos nos divertido neles a noite passada — disse ele, agitando as sobrancelhas. Seu cabelo estava desalinhado, com fios apontando para todas as direções, e ele tinha um pedaço de ovo grudado no canto da boca.
Ela tentou não demonstrar o asco que sentia. Em vez disso, ela mudou o rumo da conversa.
— Você acha que vai conseguir prender os culpados no caso Preston?
Ele se inclinou para trás e agitou os ombros em um movimento circular antes de voltar a se curvar sobre seu prato.
— Vai depender da promotoria. Higgins é bom nisso, mas nunca se sabe. Preston tem um advogado malandro e ele vai tentar distorcer todos os fatos a seu favor.
— Tenho certeza de que tudo vai dar certo. Você é mais inteligente do que ele.
— Veremos. Eu detesto o fato de que o julgamento vai acontecer em Marlborough. Higgins quer me preparar para o testemunho na noite de terça-feira, depois que o tribunal encerrar as atividades do dia.
Erin já sabia de tudo aquilo e acenou afirmativamente com a cabeça. O caso Preston teve uma ampla repercussão na mídia e o julgamento começaria na segunda-feira, em Marlborough, não em Boston. Lorraine Preston havia supostamente contratado um homem para matar seu marido. Além de Douglas Preston ser um bilionário que gerenciava fundos de investimentos, sua esposa também era uma celebridade social, envolvida no apoio a instituições filantrópicas que iam desde museus de arte até a organização de orquestras sinfônicas em escolas de bairros carentes. A exposição do caso antes do julgamento havia sido impressionante. Todos os dias, sem exceção, um ou dois artigos eram publicados na primeira página dos jornais e longas reportagens eram exibidas nos noticiários da TV. Quantias imensas
de dinheiro, práticas sexuais estranhas, drogas, traição, infidelidade, assassinatos e um filho ilegítimo. Por causa de toda a comoção ao redor do caso, o julgamento havia sido transferido para Marlborough. Kevin foi um dentre vários policiais destacados para a investigação e todos deveriam dar seu testemunho na quarta-feira. Como todas as pessoas, Erin estava acompanhando as notícias, mas, ocasionalmente, ela perguntava alguns detalhes a Kevin sobre o desenrolar do caso.
— Sabe do que você vai precisar quando sair do tribunal? — perguntou ela. — De um passeio à noite para relaxar. Nós poderíamos sair para jantar. Você estará de folga na sexta-feira, não é?
— Nós fizemos isso no ano-novo — resmungou Kevin, esfregando novamente uma fatia de torrada na gema que estava espalhada em seu prato. Havia restos de geleia em seus dedos.
— Se você não quiser sair, eu posso preparar algo especial aqui em casa mesmo. Qualquer coisa que você queira. Podemos tomar um vinho e talvez acender a lareira, e eu posso vestir algo bem sensual para você. Podemos fazer algo bem romântico.
Ele levantou os olhos do seu prato enquanto ela falava. 
— A questão é a seguinte: estou aberta a tudo o que você quiser — disse ela, com uma voz doce. — Você precisa de uma folga. Não gosto quando você trabalha tanto assim. É como se eles esperassem que você solucionasse todos os casos que existem na cidade.
Ele tamborilou com seu garfo no prato, estudando-a. 
— Por que você está agindo assim, toda meiga e carinhosa? O que está acontecendo?
Dizendo a si mesma para continuar com a encenação, ela se levantou da mesa.
— Ah, quer saber? Esqueça.
Ela pegou seu prato e o garfo bateu contra ele, caindo sobre a mesa e depois no chão. — Estava tentando demonstrar meu apoio porque você vai ter que sair da cidade, mas, se você não gostou das minhas ideias, está tudo bem. Decida o que você quer fazer e depois me fale quando tiver tempo.
Erin andou rapidamente até a pia, pisando no chão com força, e abriu a torneira com força. Ela sabia que o havia surpreendido e podia senti-lo vacilando entre a raiva e a confusão. Esfregou as mãos sob o jato d’água e depois as levou ao rosto. Em seguida, inspirou o ar em golfadas rápidas, escondendo seu rosto e fazendo um som estrangulado. E levantou seus ombros com um pouco de esforço.
— Você está chorando? — perguntou ele. Ela o ouviu arrastar a cadeira para trás para se levantar. — Por que diabos você está chorando?
Ela falou com a voz propositalmente embargada, esforçando-se ao máximo para fazer pronunciá-las entre seus soluços.
— Eu não sei mais o que fazer. Não sei o que você quer. Eu sei o quanto este caso é grande e importante e toda a pressão que você está sentindo...
Erin estrangulou as últimas palavras, sentindo que ele se aproximava. Quando sentiu que ele a tocava, ela tremeu.
— Ei, está tudo bem — disse ele, a contragosto. — Não precisa chorar.
Ela se virou em direção a ele com os olhos fechados, encostando o rosto contra o peito de Kevin. 
— Eu só quero fazer você feliz — disse ela com a voz trêmula, antes de enxugar o rosto úmido na camisa dele.
— Vamos pensar em alguma coisa, certo? Teremos um ótimo fim de semana, eu lhe prometo. Para apagar o que aconteceu ontem à noite.
Erin colocou seus braços ao redor dele, abraçando-o e soluçando. Ela tomou fôlego mais uma vez, inalando profundamente. — Lamento muito por tudo isso. Sei que você não precisava ouvir isso logo hoje. Esse ataque de nervos que eu tive por causa de algo que não tem a menor importância. Você já tem muito com o que se preocupar.
— Vou conseguir dar conta de tudo — disse ele. Kevin inclinou a cabeça e Erin se ergueu para beijá-lo, ainda com os olhos fechados. Quando se afastou, ela enxugou o rosto com os dedos e o abraçou novamente. Quando ele a puxou para si, Erin sentiu que Kevin estava ficando excitado. Ela sabia que sua vulnerabilidade o excitava.
— Ainda temos algum tempo antes que eu tenha que sair para o trabalho — disse ele.
— Preciso limpar a cozinha antes.
— Você pode fazer isso depois — disse ele.

***

ALGUNS MINUTOS DEPOIS, com Kevin se movimentando em cima dela, Erin fez os sons que ele queria enquanto olhava pela janela do quarto e pensava em outras coisas.
Ela havia aprendido a odiar o inverno, com aquele frio insuportável e um jardim que ficava coberto por uma grossa camada de neve, porque não podia sair de casa. Kevin não gostava de deixá-la andar pelo bairro, mas deixava que ela cuidasse de seus canteiros de flores no quintal, pois havia uma cerca ao redor do terreno que lhe dava privacidade. Na primavera, Erin sempre plantava flores em vasos e legumes em um pequeno canteiro ao lado da garagem, onde o sol brilhava com força, longe da sombra das árvores. No outono, vestia um suéter e lia livros que pegava emprestado na biblioteca enquanto as folhas secas e quebradiças cobriam o quintal.
Entretanto, o inverno fazia com que sua vida se transformasse em uma prisão — fria, cinzenta e triste. Um tormento. Ela passava vários dias sem colocar os pés para fora de casa, porque nunca sabia quando Kevin apareceria de surpresa. Erin sabia o sobrenome de um único casal de vizinhos, os Feldmans, que viviam do outro lado da rua. Em seu primeiro ano de casamento, Kevin raramente a agredira e, algumas vezes, ela saíra para fazer caminhadas sem que ele a acompanhasse. Os Feldmans, um casal mais velho, gostavam de cuidar do jardim e, no primeiro ano em que ela morara ali, ela frequentemente parava para conversar com eles. Kevin tentou gradualmente acabar com aquelas visitas amigáveis. Agora, só visitava os Feldmans quando sabia que Kevin estava ocupado com o trabalho e quando sabia que não poderia lhe telefonar. Ela se certificava de que nenhum outro vizinho a estava observando antes de atravessar a rua correndo para bater na porta deles. Sentia-se como uma espiã quando os visitava. Eles lhe mostravam várias fotos de suas filhas, tiradas em diferentes épocas da vida. Uma havia morrido e a outra havia se mudado para longe, e Erin achava que eles eram tão solitários quanto ela. No verão, ela preparava tortas de mirtilos para os Feldmans e depois passava o resto da tarde limpando a farinha espalhada pela cozinha para que Kevin não desconfiasse.
Depois que Kevin saiu para o trabalho, ela limpou as janelas e colocou lençóis limpos na cama. Ela passou o aspirador de pó e limpou a cozinha. Enquanto trabalhava, aproveitou para experimentar disfarçar a voz, praticando para falar com um tom mais grave, de modo que pudesse soar como se fosse a voz de um homem. Tentou não pensar no telefone celular que havia deixado para carregar durante a noite e escondido debaixo da pia. Mesmo sabendo que poderia nunca mais ter uma chance tão boa, ainda estava aterrorizada, pois havia muitas coisas que podiam dar errado.
Ela preparou o café da manhã de Kevin na manhã de segunda-feira como sempre fizera. Quatro fatias de bacon, ovos fritos no ponto médio e duas fatias de torrada. Ele estava mal-humorado e distraído e leu o jornal sem conversar muito. Antes de sair de casa, vestiu um sobretudo por cima do paletó e ela lhe disse que tomaria um banho.
— Deve ser ótimo acordar todos os dias sabendo que você pode fazer tudo o que quiser, na hora que quiser.
— O que vai querer para o jantar? — perguntou ela, fingindo não ter ouvido o que ele disse.
Ele pensou na pergunta. 
— Lasanha e pão de alho. E uma salada para acompanhar — disse ele.
Quando Kevin saiu, ela ficou em frente à janela, observando o carro dele se afastar até chegar à esquina. Assim que ele virou, ela foi até o telefone, sentindo-se até mesmo um pouco tonta ao pensar no que iria acontecer a seguir.
Quando ligou para a companhia telefônica, ela foi transferida para o departamento de atendimento ao cliente. Cinco, seis minutos
se passaram. Kevin demoraria vinte minutos para chegar ao trabalho e, sem dúvida, ligaria para casa assim que chegasse. Ela ainda tinha tempo. Finalmente, um atendente começou a falar com ela e lhe perguntou seus dados. Nome, endereço e o nome de solteira da mãe de Kevin. A conta do telefone estava em nome de Kevin e ela recitou as informações na voz grave que havia praticado anteriormente. Aquela voz não era parecida com a de Kevin, talvez nem mesmo soasse masculina, mas o atendente estava com pressa e não percebeu.
— Eu gostaria de contratar um serviço de transferência de chamadas nesta linha telefônica. Seria possível? — perguntou ela.
— Existe uma taxa extra para a contratação do serviço, mas o serviço inclui chamadas em espera e correio de voz. Custa apenas...
— Está ótimo — disse ela, interrompendo o atendente. — Mas seria possível ativar o serviço hoje?
— Sim — disse o homem. Ela o ouviu digitar algo no computador. Demorou um bom tempo até que ele voltasse a falar. Ele lhe disse que a taxa extra apareceria na próxima fatura, que seria enviada na semana seguinte, mas que o valor mensal total seria cobrado, embora ela estivesse contratando o serviço hoje. Erin lhe disse que não haveria problemas. Ele pediu mais algumas informações e disse que ela poderia começar a usar o serviço imediatamente. Toda a transação havia levado dezoito minutos para ser concluída.
Kevin lhe telefonou da delegacia três minutos depois.

***

LOGO DEPOIS DO TELEFONEMA de Kevin, ela ligou para o Super Shuttle, um serviço de vans especializado em levar pessoas para o aeroporto e para a rodoviária. Fez uma reserva para o dia seguinte. Depois, com o telefone celular nas mãos, finalmente o ativou. Ela ligou para um cinema da cidade que repetia uma mensagem gravada com a programação dos filmes, para ter certeza de que o aparelho estava funcionando. A seguir, ativou o serviço de transferência de chamadas no telefone fixo, programando-o para que quaisquer chamadas fossem transferidas para o número do cinema. Para testar o esquema, usou o celular para ligar para o telefone fixo. Seu coração estava aos pulos quando o aparelho tocou. No segundo toque, a chamada foi transferida e ela ouviu a gravação com a programação do cinema. Ela sentiu algo se libertar dentro do peito e suas mãos estavam tremendo enquanto desligava o aparelho celular e o recolocava na caixa de esponjas para a pia. Ela desprogramou o serviço de transferência de chamadas e o telefone fixo voltou a funcionar como antes.
Quarenta minutos depois, Kevin voltou a ligar.
Erin passou o restante da tarde em um estado de torpor, trabalhando sem parar para que sua cabeça não tivesse tempo de se preocupar. Ela passou duas das camisas de Kevin e trouxe a bolsa para proteger o paletó e a mala que estavam guardados na garagem. A seguir, escolheu um par de meias limpas e engraxou um par de sapatos pretos dele. Passou a escova para tirar fiapos de seu paletó e das calças pretas, o terno que sempre usava quando tinha que comparecer ao tribunal, e pegou três gravatas para que ele escolhesse qual iria querer usar. Ela esfregou o chão do banheiro e os rodapés com vinagre até que eles estivessem brilhando. Depois, tirou com cuidado a poeira de cada peça de louça no armário onde guardava suas porcelanas e começou a preparar a lasanha. Ferveu a massa e fez um molho à bolonhesa, alternando as camadas com fatias de queijo. Pincelou quatro fatias de pão italiano com manteiga, alho e orégano e picou todos os ingredientes de que precisava para a salada. Por fim, ela tomou um banho e se vestiu de maneira sensual. Às 5 horas, Erin colocou a lasanha no forno.
Quando Kevin chegou em casa, o jantar estava pronto. Ele comeu a lasanha e falou sobre como tinha sido seu dia. Quando ele pediu para repetir o prato, ela se levantou da mesa e lhe trouxe uma segunda porção. Depois do jantar, ele bebeu vodca enquanto assistia a reprises de Seinfeld e O rei do bairro. Depois, assistiu ao jogo de basquete entre o Boston Celtics e o Minesotta Timberwolves e ela se sentou ao seu lado. Ele adormeceu em frente à televisão e ela caminhou até o quarto. Erin se deitou na cama, olhando para o teto, até que Kevin acordou e veio cambaleando para o quarto, desabando sobre o colchão. Ele adormeceu imediatamente, com um braço por cima dela, e o barulho dos seus roncos soava como um aviso.
Como de costume, Erin preparou o café da manhã de Kevin na manhã de terça-feira. Ele guardou suas roupas e artigos de higiene pessoal na mala e estava pronto para ir para Marlborough. Depois, levou suas coisas para o carro e voltou para a porta da frente, onde ela estava. E a beijou.
— Estarei de volta amanhã à noite — disse ele.
— Vou sentir saudades — disse ela, encostando a cabeça em seu ombro e colocando os braços ao redor do pescoço dele.
— Acho que devo chegar por volta das 8.
— Vou fazer algo que eu possa requentar quando você chegar em casa. Que tal um chili?
— Acho que vou comer antes de voltar para casa.
— Tem certeza? Você vai mesmo querer comer em alguma lanchonete? Faz muito mal para você.
— Veremos — disse ele.
— Eu vou preparar o chili mesmo assim. Caso você mude de ideia.
Kevin a beijou enquanto ela o abraçava. — Eu lhe telefono mais tarde — disse ele, deslizando as mãos pelas costas dela. Acariciando- a.
— Eu sei — respondeu Erin.

***

NO BANHEIRO, Erin se despiu e colocou suas roupas sobre o vaso sanitário e depois enrolou o tapete. Ela havia forrado a pia com um saco de lixo e, nua, se olhou no espelho. Deslizou os dedos pelos hematomas que tinha nas costelas e no pulso. Suas costelas estavam marcadas contra a pele e as olheiras davam ao seu rosto uma compleição quase cadavérica. Foi tomada por uma onda de fúria mis- turada com tristeza, à medida que imaginava como Kevin chamaria seu nome quando entrasse pela porta da frente, ao voltar da viagem. Ele a chamaria pelo nome e iria até a cozinha. Ele procuraria por ela no quarto. Verificaria também a garagem, a varanda dos fundos e o porão. “Onde você está?”, perguntaria ele. “O que temos para o jantar?”
Com a tesoura, ela começou a cortar seu próprio cabelo com selvageria. Dez centímetros de cabelo loiro caíram no saco de lixo. Ela pegou outra mecha, usando os dedos para puxar os fios, dizendo a si mesma para medir o comprimento, e cortou novamente. Sentiu um forte aperto no peito.
— Eu odeio você! — sibilou ela, com a voz trêmula. — O tempo todo me agredindo e humilhando!
Cortou mais mechas do cabelo, seus olhos se enchendo com as lágrimas da fúria. 
— Me bateu porque eu tive que fazer compras!
Mais cabelos caíram na pia. Tentou se conter para igualar as pontas. 
— Fez com que eu roubasse dinheiro de sua carteira e me chutou porque estava bêbado!
Estava tremendo agora. Suas mãos não conseguiam se firmar no trabalho. Mechas de tamanhos diferentes se acumulavam a seus pés.
— Fez com que eu tivesse que me esconder! Bateu em mim com tanta força que eu vomitei!
Cortou novamente com a tesoura. 
— Eu amava você! — disse ela, entre soluços. — Você prometeu que nunca mais me bateria e eu acreditei em você! Eu quis acreditar em você!
Erin cortava os cabelos e chorava. Quando seu cabelo já estava com um comprimento uniforme, ela tirou a tintura que havia escondido atrás da pia. Castanho-escuro. Em seguida, entrou no box e molhou os cabelos. Virou o frasco e começou a aplicar a tintura no couro cabeludo. Ficou em pé em frente ao espelho e chorou incontrolavelmente enquanto a nova cor se fixava nos cabelos. Ao final do processo, entrou novamente no box e enxaguou os cabelos. Ela os lavou com xampu e condicionador, e postou-se novamente em frente ao espelho. Cuidadosamente, aplicou o delineador nas sobrancelhas, escurecendo-as. Aplicou também creme bronzeador em sua pele, escurecendo-a. Vestiu-se com uma calça jeans e um suéter e olhou para si mesma no espelho.
Uma mulher estranha, morena e de cabelos curtos olhou de volta para Erin.
Ela limpou o banheiro com bastante cuidado, certificando-se de que nenhum fio de cabelo ficasse no piso do box ou no chão do banheiro. Outras mechas foram parar no saco de lixo, com a embalagem da tintura para cabelos. Esfregou a pia e o balcão do banheiro e amarrou a boca do saco de lixo. Finalmente, pingou colírio nos olhos, tentando apagar a evidência de suas lágrimas.
Erin tinha que correr agora. Guardou suas coisas em uma bolsa de viagem. Três calças jeans, dois suéteres, camisas. Calcinhas e sutiãs. Meias. Escova e pasta de dentes. Uma escova para o cabelo. Delineador para suas sobrancelhas. As poucas joias que possuía. Queijo, biscoitos, nozes e uvas-passas. Um garfo e uma faca. Ela foi para a varanda dos fundos e pegou o dinheiro que deixara escondido debaixo do vaso de flores. Pegou também o telefone celular que estava na cozinha. E, finalmente, a identificação que precisava para começar uma nova vida — documentos que havia roubado de pessoas que confiavam nela. Sentiu ódio de si mesma por haver roubado e sabia que aquilo era errado, mas não teve outra escolha. Rezou e pediu a Deus que a perdoasse, pois já era tarde demais para voltar atrás.
Ela havia ensaiado a situação em sua cabeça milhares de vezes e andou rapidamente. A maioria dos vizinhos já havia saído para o trabalho. Não queria que ninguém a visse saindo de casa, não queria que ninguém a reconhecesse.
Erin colocou um chapéu e vestiu sua jaqueta, com um cachecol e luvas. Depois, enfiou sua bolsa de viagem embaixo da blusa que vestia, apertando-a e enrolando-a até que assumisse um formato arredondado. Até que ela parecesse estar grávida. Vestiu também seu sobretudo por cima das roupas. A peça era grande o bastante para cobrir a barriga falsa.
Olhou-se mais uma vez no espelho. Cabelo curto e escuro. Pele cor de cobre. Grávida. Ela colocou um par de óculos escuros e, ao sair pela porta, ligou seu telefone celular e programou o telefone fixo da casa para transferir as chamadas. Erin saiu de casa pelo portão lateral, andando por entre sua casa e a do vizinho, seguindo a cerca, e colocou o saco de lixo na lixeira da casa ao lado. Sabia que o casal que morava ali havia saído para trabalhar e que não havia ninguém em casa. Com os vizinhos de trás a rotina era a mesma. Então atravessou o quintal de seus vizinhos e saiu pela lateral, finalmente chegando à calçada da rua, que estava coberta por uma fina camada de gelo.
A neve havia voltado a cair. Sabia que, no dia seguinte suas pegadas já teriam desaparecido.
Precisaria caminhar por seis quarteirões, mas sabia que conseguiria fazê-lo. Manteve a cabeça baixa enquanto andava, tentando ignorar o vento cortante, sentindo-se estonteada, livre e aterrorizada, tudo ao mesmo tempo. Sabia que, amanhã à noite, Kevin andaria pela casa, chamando seu nome, e não a encontraria porque ela não estaria mais lá. E, amanhã à noite mesmo, ele já começaria sua caçada.

***

FLOCOS DE NEVE riscavam o ar enquanto Katie esperava no cruza- mento, em frente à porta de um restaurante. Ao longe, ela viu a van azul do Super Shuttle dobrar a esquina e seu coração bateu mais forte no peito. Bem naquele momento, ela ouviu o telefone celular tocar.
Erin empalideceu. Os carros passavam em alta velocidade à sua frente, com os pneus fazendo barulho enquanto esmagavam a neve acumulada na rua. Ao longe, a van mudou de faixa, se aproximando do lado da rua onde ela estava. Ela tinha que atender; não havia outra escolha além de atender o telefone. Mas a van estava se aproximando e havia muito ruído na rua. Se atendesse agora, Kevin saberia que ela estava fora de casa. Ele perceberia que ela o havia abandonado.
O telefone tocou pela terceira vez. A van azul parou em um sinal vermelho. A um quarteirão de distância.
Ela se virou, entrando no restaurante. Os sons estavam abafados, mas ainda eram perceptíveis — uma sinfonia de pratos batendo uns contra os outros e pessoas conversando. Logo à frente estava o púlpito da recepcionista, onde um homem pedia que ela o levasse a uma mesa. Erin sentiu seu estômago embrulhar. Ela cobriu o bocal do telefone com uma das mãos e olhou pela janela, rezando silenciosamente para que ele não conseguisse ouvir a comoção que havia à sua volta. Sentiu suas pernas tremerem enquanto pressionava o botão e atendia à ligação.
— Por que demorou tanto para responder? — perguntou Kevin.
— Eu estava no chuveiro. O que houve?
— Ainda faltam dez minutos para me chamarem no tribunal. E você, como está?
— Estou bem — respondeu ela.
Ele hesitou. 
— Sua voz está estranha. Tem alguma coisa errada com o telefone?
A um quarteirão de distância, o semáforo acendeu a luz verde. A van do Super Shuttle se aproximou da calçada, com a luz da seta acesa, indicando que iria estacionar. Atrás dela, as pessoas do restaurante haviam ficado surpreendentemente silenciosas.
— Não sei. Mas estou ouvindo você muito bem — disse ela. — Provavelmente o sinal de celular é ruim no lugar onde você está. Como foi a viagem?
— Não foi ruim depois que saí da cidade. Mas ainda há gelo cobrindo a pista em alguns lugares.
— Isso não parece ser muito bom. Tenha cuidado.
— Estou bem — disse ele.
— Eu sei — disse ela. A van estava estacionando ao lado da calçada e o motorista estava esticando o pescoço, procurando por ela.
— Detesto ter que fazer isso, mas você não quer me ligar daqui a alguns minutos? Ainda estou com o cabelo cheio de condicionador e preciso enxaguá-lo.
— Tudo bem. Ligo de volta em alguns minutos — resmungou ele.
— Amo você.
— Eu também amo você.
Ela deixou que ele desligasse antes de pressionar o botão para encerrar a ligação no celular. Em seguida, ela saiu do restaurante e correu para a van.
Ao chegar à rodoviária, comprou uma passagem para a Filadélfia, detestando a atitude do homem que lhe vendeu a passagem que insistia em puxar assunto para conversar.
Em vez de esperar no terminal, ela atravessou a rua para tomar café da manhã. O dinheiro para a van e para a passagem de ônibus haviam levado mais da metade do que ela guardara durante o ano, mas ela sentia fome. Pediu panquecas, salsicha e leite. Alguém havia esquecido um jornal sobre a mesa e ela se forçou a lê-lo. Kevin ligou para Erin enquanto ela comia. Quando ele mencionou outra vez que a voz dela estava estranha, ela disse que poderia ser por causa da nevasca.
Vinte minutos depois, ela embarcou no ônibus. Uma senhora idosa apontou para a barriga falsa enquanto ela passava pelo corredor.
— Quanto tempo até o parto?
— Mais um mês.
— É o primeiro?
— Sim — respondeu ela, mas sua boca estava tão seca que era difícil manter a conversa. Ela continuou andando pelo corredor do ônibus e sentou-se em uma das últimas poltronas. Havia pessoas sentadas à sua frente e também atrás. Do outro lado havia um jovem casal. Adolescentes, um deitado por cima do outro, escutando música. Suas cabeças balançavam para cima e para baixo.
Erin olhou pela janela enquanto o ônibus saía da rodoviária, sentindo-se como se estivesse sonhando. Na autoestrada, Boston começou a ficar cada vez menor na distância, cinzenta e fria. Suas costas doíam conforme o ônibus avançava, correndo por quilômetros e quilômetros. A neve continuou a cair e os pneus dos carros continuavam espalhando a neve suja conforme passavam pelo ônibus.
Ela desejou poder conversar com alguém. Queria contar a alguém que estava fugindo porque seu marido lhe batia e que não podia chamar a polícia porque seu marido era a polícia. Queria contar a alguém que não tinha muito dinheiro e que nunca mais poderia usar seu próprio nome. Se fizesse aquilo, ele a encontraria e a arrastaria de volta para casa. E voltaria a bater nela, mas desta vez ele provavelmente não pararia. Queria contar a alguém que estava aterrorizada porque não sabia onde dormir naquela noite ou o que faria para conseguir comer quando seu dinheiro acabasse.
Erin sentiu o ar frio contra a janela conforme o ônibus passava por outras cidades. O trânsito na estrada diminuiu, mas pouco tempo depois a estrada voltou a ficar cheia. Ela não sabia o que fazer. Seus planos terminavam no ônibus e não havia ninguém a quem ela pudesse ligar para pedir ajuda. Estava sozinha e não tinha nada além das coisas que trazia consigo.
Uma hora antes de chegar à Filadélfia, o telefone celular tocou novamente. Ela cobriu o bocal com a mão e conversou com Kevin. Antes de desligar, ele prometeu ligar novamente antes de ir para a cama.

***

ERIN CHEGOU À FILADÉLFIA no final da tarde. Fazia frio, mas não estava nevando. Os passageiros desembarcaram do ônibus e ela se deixou ficar para trás, esperando que todos saíssem. No banheiro, tirou a bolsa de debaixo das roupas, foi para a sala de espera e sentou-se em um dos bancos. Seu estômago estava roncando. Pegou um pedaço do queijo e o comeu com alguns biscoitos. Sabia que teria que fazer aquela comida durar e guardou o restante de volta na mala, mesmo que ainda estivesse com fome. Finalmente, depois de comprar um mapa da cidade, saiu da rodoviária.
O terminal rodoviário não ficava em uma parte ruim da Filadélfia. Ela avistou o centro de convenções e o Trocadero Theater. Aquilo a fez se sentir segura, mas também significava que nunca teria condições de pagar por um quarto de hotel naquela região. O mapa indicava que estava próxima do bairro de Chinatown e, sem um plano melhor, caminhou naquela direção.
Três horas mais tarde, finalmente encontrou um lugar para dormir. O lugar era sujo e cheirava a fumaça de cigarro, e seu quarto mal tinha espaço para a pequena cama que haviam enfiado ali dentro. Em vez de uma luminária havia apenas uma lâmpada incandescente pendurada no teto e todos os quartos compartilhavam o mesmo banheiro, no final do corredor. As paredes eram cinzentas e estavam manchadas pela umidade. Nos quartos vizinhos, dava para ouvir as pessoas conversando em um idioma que ela não conseguia entender. Mesmo assim, o dinheiro que ela tinha não lhe permitia ir para outro lugar. A quantia era suficiente para passar três noites ali, ou quatro, se ela conseguisse sobreviver com a pouca comida que havia trazido de casa.
Ela se sentou na beirada da cama, tremendo, com medo do lugar, com medo do futuro e com sua mente em um turbilhão. Tinha que ir ao banheiro, mas não queria sair do quarto. Tentou dizer a si mesma que seria uma aventura e que tudo ficaria bem. Por mais estranho que parecesse, Erin começou a se perguntar se sair de casa teria sido um erro. Tentou não pensar na sua cozinha, no seu quarto e em todas as coisas que havia deixado para trás. Sabia que podia comprar uma passagem de volta para Boston e chegar em casa antes que Kevin percebesse que fugira. Mas seu cabelo agora estava curto e castanho e isso ela não teria como explicar.
Do lado de fora, o sol já havia desaparecido, mas as luzes da rua iluminavam o quarto através da janela suja. Ela ouviu o som de buzinas e olhou para a rua. Na rua, todas as fachadas tinham nomes escritos com caracteres chineses e algumas das lojas ainda estavam abertas. Dava para ouvir algumas das conversas que vinham dos cantos mais escuros e havia sacos plásticos cheios de lixo empilhados nas calçadas. Estava em uma cidade que não conhecia, cercada por estranhos. Pensou que talvez não conseguisse se libertar, afinal. Que não era forte o bastante. Em três dias, ela não teria um lugar para dormir a menos que conseguisse encontrar um emprego. Se vendesse suas joias talvez pudesse pagar por mais uma noite no hotel, mas e depois? O que faria?
Ela se sentia muito cansada e suas costas ainda latejavam. Deitou-se e o sono veio quase imediatamente. Kevin telefonou mais tarde e o toque do telefone a despertou. Precisou de toda sua energia e concentração para falar com a voz firme, para evitar que ele descobrisse sua fuga. Mesmo assim, fez parecer como se estivesse tão cansada quanto realmente estava, fazendo com que Kevin acreditasse que ela estava na cama do casal. Depois que ele desligou, adormeceu em poucos minutos.
Pela manhã, ouviu pessoas andando pelo corredor, indo em direção ao banheiro. Duas mulheres chinesas estavam em frente às pias. O revestimento da parede estava coberto por um bolor verde e havia papel higiênico molhado no chão. A porta da cabine não tinha uma tranca e ela teve que segurá-la com a mão.
De volta ao quarto, Erin tomou um café da manhã composto por queijo e biscoitos. Ela pensou em tomar um banho, mas percebeu que havia se esquecido de trazer xampu e sabonete, então não haveria como fazer aquilo. Trocou de roupa e escovou seus dentes e cabelo. Em seguida, guardou suas roupas novamente na bolsa de viagem, pois não queria deixá-la no quarto, e passou a alça por sobre o ombro. Desceu pelas escadas e viu que o mesmo funcionário que havia lhe entregado a chave do quarto continuava atrás do balcão da recepção. Imaginou que ele nunca saía de trás do balcão. Pagou por mais uma noite e pediu-lhe que deixasse o quarto reservado.
Do lado de fora, o céu estava azul e as ruas, secas. Ela percebeu que a dor em suas costas havia quase desaparecido. Fazia frio, mas não tanto frio como em Boston e, apesar de seus medos, ela percebeu que estava sorrindo. Fez questão de lembrar a si mesma que havia conseguido. Kevin estava a centenas de quilômetros de distância e não sabia onde ela estava. Ele ligaria mais uma ou duas vezes. Depois, jogaria o telefone fora e nunca mais teria que voltar a conversar com ele.
Erin levantou a cabeça e respirou o ar gelado. Sentia que o dia era revigorante, cheio de possibilidades. Hoje, iria encontrar um emprego. Hoje, decidiu Erin, ela começaria a viver o resto de sua vida.

***

ELA HAVIA FUGIDO duas vezes antes e gostaria de ter aprendido com seus erros. A primeira vez aconteceu pouco antes de completar um ano de casamento, depois que Kevin lhe bateu enquanto ela se agachava em um canto do quarto. As contas da casa haviam chegado e Kevin ficou irritado porque ela ajustara o termostato para deixar a casa mais quente. Quando finalmente parou de agredi-la, ele pegou as chaves do carro e saiu de casa para comprar mais bebida. Sem pensar no que estava fazendo, ela pegou sua jaqueta e saiu de casa, mancando pelas ruas. Horas depois, com o granizo caindo e sem qualquer lugar para ir, ela lhe telefonou e ele foi buscá-la.
Na ocasião seguinte, Erin chegou a ir até Atlantic City antes que ele a encontrasse. Ela havia tirado dinheiro da carteira de Kevin e comprado uma passagem de ônibus, mas ele a encontrou menos de uma hora depois de Erin chegar ao seu destino. Kevin dirigiu em alta velocidade pela estrada, sabendo que ela correria para o único lugar onde ainda tinha amigos. Ele a algemou no banco de trás do carro antes de voltar para casa. No caminho, ele parou o carro ao lado de um prédio de escritórios abandonado e bateu nela novamente. Mais tarde, naquela noite, a arma surgiu.
Depois daquele episódio, ele criou mais obstáculos para ela. Deixava seu dinheiro guardado em uma caixa com um cadeado e começou a rastrear seu paradeiro de forma obsessiva. Ela sabia que ele tomaria atitudes extremas para encontrá-la. Por mais que fosse louco, Kevin era persistente e metódico e seus instintos raramente falhavam. Ele descobriria que ela estava na Filadélfia e iria encontrá- la. Erin estava em vantagem por enquanto, mas, sem dinheiro para recomeçar a vida em algum outro lugar, tudo o que podia fazer era olhar por cima dos ombros, mas apenas por um breve período. O tempo que passaria na Filadélfia seria curto.
Erin encontrou um emprego como garçonete para servir coquetéis no seu terceiro dia. Inventou um nome e um número de seguro social. Os dados seriam verificados depois de algum tempo, mas ela já teria ido embora quando aquilo acontecesse. Ela encontrou outro quarto para alugar na parte mais distante de Chinatown. Assim, trabalhou durante duas semanas, acumulando o dinheiro das gorjetas enquanto procurava por outro emprego. Quando encontrou, deixou o emprego de garçonete sem nem se incomodar em pegar seu salário. Não havia razão para aquilo. Sem uma identidade válida, não conseguiria descontar o cheque. Trabalhou por mais três semanas em um pequeno restaurante e se mudou para um outro hotel, que ela alugava por semana. Embora estivesse em uma parte mais perigosa da cidade, o quarto era mais caro, mas tinha um banheiro privativo com chuveiro quente. Valia a pena, mesmo que fosse apenas para ter um pouco de privacidade e um lugar onde pudesse deixar suas coisas. Erin havia juntado algumas centenas de dólares em gorjetas, mais do que tinha quando saiu de Dorchester, mas ainda não era o bastante para recomeçar sua vida. Novamente, ela saiu do emprego sem pegar seu salário, sem nem mesmo se incomodar em pedir demissão. Encontrou outro emprego alguns dias depois, novamente trabalhando em um restaurante. No novo emprego, disse ao gerente que seu nome era Érica.
As constantes mudanças de emprego e de hotel fizeram com que ela continuasse vigilante e foi lá, apenas quatro dias depois de começar, que ela virou uma esquina a caminho do trabalho e viu um carro que, de algum modo, lhe pareceu estranho. Ela parou.
Mesmo depois de muito tempo, ainda não sabia como pôde perceber alguma coisa só porque o carro estava limpo o bastante para refletir os raios do sol da manhã. Enquanto olhava para o carro, ela viu que havia movimento no banco do motorista. O motor não estava ligado e lhe pareceu estranho perceber que havia alguém dentro de um veículo sem o dispositivo de aquecimento em uma manhã fria. Ela sabia que as únicas pessoas que faziam aquilo eram aquelas que estavam esperando por alguém.
Ou que estavam à procura de alguém. Kevin.
Erin sabia que era ele. Sabia com uma certeza que a surpreendia. Deu meia-volta e virou a esquina de novo, voltando pelo mesmo caminho por onde viera, rezando para que ele não a tivesse visto pelo espelho retrovisor. Assim que o carro estava fora do seu campo de visão, ela começou a correr de volta para o hotel, com o coração aos pulos. Não corria tão rápido assim há anos, mas todas as caminhadas que vinha fazendo nas últimas semanas haviam fortalecido suas pernas e ela andou rapidamente. Um quarteirão. Dois. Três. Olhava constantemente por cima do ombro, mas Kevin não a seguia.
Aquilo não importava. Ele sabia que ela estava ali. Ele sabia onde ela trabalhava. Ele saberia de tudo se ela não aparecesse para trabalhar. Dentro de poucas horas, ele descobriria o lugar onde ela estava morando.
De volta ao quarto, jogou suas coisas na bolsa de viagem e saiu pela porta em poucos minutos. Começou a andar rumo à rodoviária. Mesmo assim, levaria um tempo enorme para chegar até lá. Uma hora de caminhada, talvez mais. E ela não tinha tempo. Aquele seria o primeiro lugar onde ele iria quando percebesse que ela não estava no restaurante. Dando meia-volta, voltou para o hotel e pediu ao recepcionista para lhe chamar um táxi. O veículo chegou dez minutos depois. Os dez minutos mais longos de sua vida.
Na rodoviária, examinou freneticamente os horários dos ônibus e escolheu um que iria para Nova York e que sairia dali a meia hora. Ela se escondeu no banheiro feminino até a hora de embarcar. Quando subiu no ônibus, se deixou afundar em sua poltrona. O ônibus não demorou a chegar em Nova York. Novamente, examinou os horários e comprou uma passagem que a levaria até Omaha.
No início da noite, ela desembarcou do ônibus em algum lugar do estado de Ohio. Ela dormiu na rodoviária e na manhã seguinte caminhou até um posto de gasolina à beira da estrada onde conheceu um homem que faria uma entrega em Wilmington, na Carolina do Norte.
Alguns dias mais tarde, depois de vender suas joias, ela chegou até Southport e encontrou a cabana. Depois de pagar o primeiro mês de aluguel, não tinha mais dinheiro para comprar comida.

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