Capítulo 24

KEVIN TIERNEY NÃO FOI até Provincetown naquele final de semana como havia dito a Coffey e Ramirez. Em vez disso, ele ficou em casa com as cortinas fechadas, pensando no quanto esteve perto de encontrá-la na Filadélfia.
Ele não teria conseguido rastreá-la até tão longe se não fosse por um erro que cometera durante a fuga, ao ir até a rodoviária. Ele sabia que aquele era o único meio de transporte que ela poderia usar. As passagens eram baratas e não era necessário se identificar e, embora não tivesse certeza de quanto dinheiro ela havia lhe roubado, ele sabia que a quantidade não poderia ter sido tão grande. Desde o dia em que se casaram, ele controlava o dinheiro. Ele sempre a obrigava a guardar todos os recibos e lhe devolver o troco de qualquer coisa que comprasse. Entretanto, depois que ela fugiu pela segunda vez, ele também começou a trancar sua carteira no estojo onde guardava suas armas antes de dormir. Mesmo assim, às vezes ele dormia no sofá e imaginou que, nessas ocasiões, ela tirasse a carteira do seu bolso e lhe roubasse o dinheiro. Ele a imaginou rindo em silêncio quando fazia aquilo e como, pela manhã, lhe preparava o café e fingia que não ter feito nada de errado. Ela sorria e o beijava, mas, por dentro, estava rindo. Rindo dele. Ela havia lhe roubado e ele sabia que aquilo era errado, pois a Bíblia diz: Não roubarás.
No escuro, ele mordia os lábios, lembrando-se da esperança que tivera nos primeiros dias, imaginando que ela fosse voltar. Estava nevando e ela não poderia ter ido para longe. Na primeira vez que Erin fugira a noite também estava impiedosamente fria e ela lhe telefonara depois de algumas horas, pedindo-lhe que fosse buscá-la, pois não tinha nenhum lugar para onde pudesse ir. Quando chegou em casa, ela se desculpou pelo que havia feito e Kevin lhe preparou uma xícara de chocolate quente enquanto ela estava sentada no sofá, tremendo de frio. Trouxe-lhe um cobertor e a observou enquanto ela se cobria, tentando se aquecer. Ela sorriu para ele e ele retribuiu o sorriso. Quando ela parou de tremer, ele atravessou a sala e lhe estapeou até ouvi-la chorar. Ao acordar para trabalhar de manhã, Erin já havia limpado o chocolate quente que havia derramado no piso, embora ainda houvesse uma mancha no carpete, que ela nunca conseguiu remover completamente. E, vez por outra, enxergar aquela mancha o irritava.
Na noite em que ele percebera que ela havia desaparecido, em janeiro passado, Kevin bebera dois copos de vodca enquanto esperava que ela voltasse, mas o telefone não tocou e a porta da frente continuou fechada. Ele sabia que ela não havia desaparecido há muito tempo. Eles haviam conversado há menos de uma hora e ela lhe disse que estava preparando o jantar. Mas não havia nenhum jantar no fogão. Nenhum sinal dela na casa, no porão ou na garagem. Ele foi até a varanda e procurou por pegadas na neve, mas era óbvio que Erin não havia saído pela porta da frente. A neve no quintal também não tinha qualquer pegada ou sinal suspeito, então ela não havia saído por aquela porta também. Era como se ela tivesse simplesmente flutuado para longe, ou desaparecido no ar. E aquilo significava que ela devia estar em casa... exceto pelo fato de que não estava.
Dois copos de vodca e meia hora depois Kevin já estava tomado pela fúria. Foi quando abriu um buraco na porta do quarto com um soco. Saiu da casa e bateu com força na porta dos vizinhos, perguntando se eles tinham percebido quando ela saíra, mas nenhum deles tinha a resposta. Ele entrou no carro e dirigiu freneticamente pelas ruas do bairro, buscando por rastros que ela pudesse ter deixado, tentando entender como ela havia conseguido sair da casa sem deixar qualquer pista. Imaginou que ela talvez tivesse duas horas de vantagem, mas, como estaria a pé, e com a neve caindo, não poderia ter ido tão longe. A menos que alguém tivesse vindo buscá-la. Alguém com quem ela se importasse. Um homem.
Ele socou o volante, seu rosto contorcido pela fúria. O distrito comercial ficava a seis quarteirões de distância. Ele foi até as lojas, mostrando uma foto de Erin que tinha na carteira e perguntando às pessoas se a haviam visto. Ninguém respondeu afirmativamente. Ele disse que ela poderia estar acompanhada por um homem, mas, mesmo assim, as respostas negativas continuaram. Os homens que ele abordou foram incisivos. “Uma loira bonita desse jeito? Eu a teria percebido. Especialmente em uma noite como esta”, diziam.
Kevin voltou para o carro e andou por cada uma das ruas e estradas num raio de oito quilômetros de sua casa, duas ou três vezes, antes de finalmente desistir. Eram 3 horas da manhã e a casa estava vazia. Depois de mais uma vodca, ele começou a chorar e não parou até adormecer.
Pela manhã, quando acordou, ele teve um novo acesso de fúria. Com um martelo destruiu os vasos de flores que Erin tinha no quintal. Bufando, ligou para a delegacia e disse que não poderia ir trabalhar, pois estava doente. Depois, sentou-se no sofá e tentou desvendar de que maneira ela havia fugido. Era certo que ela tivera ajuda. Alguém devia tê-la levado para algum lugar. Alguém que ela conhecia. Algum amigo de Atlantic City? Altoona? Era possível, supôs ele, embora verificasse cuidadosamente as contas de telefone todos os meses. Ela nunca fizera nenhuma ligação interurbana. Alguém que morava em Dorchester, então. Mas quem? Ela nunca ia a lugar nenhum e nunca conversava com ninguém. Ele nunca permitiu.
Ele foi para a cozinha e estava se servindo de mais um copo de vodca quando ouviu o telefone tocar. Saiu em disparada para atendê-lo, esperando que fosse Erin. Entretanto, estranhamente, o telefone tocou somente uma vez e, quando ele pegou o fone, ouviu um tom de discagem. Ele olhou para o aparelho, tentando entender o que estava acontecendo antes de desligar.
Como ela conseguira escapar? Havia alguma coisa que ele não tinha percebido. Mesmo se alguém que morasse na cidade a tivesse ajudado, como ela teria chegado até a estrada sem deixar pegadas na neve? Ele olhou pela janela, tentando reconstruir a sequência de eventos. Havia algo que não se encaixava ali, embora não conseguisse identificar o que era. Deu as costas para a janela e percebeu que estava se concentrando no telefone. Foi então que as peças finalmente se encaixaram e ele pegou seu celular. Ligou para o telefone fixo e o ouviu tocar uma vez. O telefone celular continuou chamando. Quando pegou o fone do aparelho fixo, ouviu um tom de discagem e percebeu que ela havia transferido as chamadas para outro aparelho celular. E aquilo significava que ela não estava em casa quando ele lhe telefonara na noite anterior, além de explicar por que a ligação estava ruim nos dois dias anteriores. E, é claro, a falta de pegadas na neve. Kevin agora sabia que ela não estava em casa desde a manhã de terça-feira.

***

NA RODOVIÁRIA, ela cometeu um erro, mesmo que não tivesse como evitar. Ela devia ter comprado sua passagem com uma balconista do sexo feminino, em vez de tê-lo feito com um homem. Erin era bonita e homens sempre se lembram de mulheres bonitas. Não importava se tinham o cabelo longo e loiro ou curto e castanho. Também não importava se ela fingisse estar grávida ou não.
Ele foi até a rodoviária. Mostrou seu distintivo e uma foto maior da esposa. Nas primeiras duas vezes em que ele estivera lá, nenhum dos vendedores de passagens a reconhecera. Na terceira vez, entretanto, um deles hesitou e disse que poderia ter sido ela, exceto pelo fato de que seu cabelo estava curto e castanho e também por estar grávida. Voltando para casa, Kevin encontrou uma fotografia de Erin no computador e usou o Photoshop para alterar a cor do seu cabelo, de loiro para castanho. Depois, ele o encurtou. Ele telefonou novamente para a delegacia na sexta e disse que estava doente.
“É ela”, confirmou o vendedor de passagens, e Kevin sentiu uma onda de energia tomar conta de si. Erin pensou que era mais esperta que ele, mas, na verdade, era imbecil e descuidada, e havia cometido um erro. Ele tirou alguns dias de folga na semana seguinte e continuou a rondar a rodoviária, mostrando a nova fotografia para os motoristas de ônibus. Ele chegava pela manhã e saía bem tarde, pois os motoristas chegavam e saíam a toda hora. Havia duas garrafas de vodca no carro. Ele se servia em um copo de isopor e bebia com um canudinho.
No sábado, onze dias depois de Erin sair de casa, ele encontrou o motorista. Ele a levara até a Filadélfia e disse que se lembrava dela porque a mulher era bonita e estava grávida e também porque não levava nenhuma bagagem.
FILADÉLFIA. Ela já podia ter saído de lá e ido para outro lugar, mas era a única pista que Kevin tinha. Além disso, ele sabia que ela não tinha muito dinheiro.
Ele colocou algumas roupas em uma mala e viajou de carro até a Filadélfia. Estacionou na rodoviária e tentou pensar como Erin. Ele era um bom investigador e sabia que, se conseguisse pensar como ela, conseguiria encontrá-la. Kevin havia aprendido que as pessoas são previsíveis.
O ônibus havia chegado alguns minutos antes das quatro da tarde e ele estava na rodoviária, olhando de um lado para o outro. Ela havia estado naquele mesmo lugar há alguns dias, pensou ele, e imaginou o que ela faria em uma cidade estranha, sem qualquer dinheiro, sem amigos e sem ter para onde ir. Moedas e notas de um dólar não a levariam longe, especialmente depois de comprar uma passagem de ônibus.
Ele se lembrou de que o tempo estava frio e que logo escureceria. Ela não ia querer andar até muito longe e precisaria de um lugar para ficar. Um lugar que aceitasse pagamento em dinheiro. Mas onde? Não aqui, neste bairro. Era caro demais. Para onde ela iria? Ela não se arriscaria se perder ou andar na direção errada. Aquilo significava que ela provavelmente teria consultado uma lista telefônica. Ele voltou para o terminal e pesquisou os hotéis que apareciam na lista telefônica. Páginas e mais páginas, ele percebeu. Ela devia ter escolhido um, mas e depois? Teria que andar até lá. E, para fazer aquilo, precisaria de um mapa.
Ele foi até a loja de conveniência da rodoviária e comprou um mapa também. Ele mostrou a fotografia para o balconista, mas ele acenou negativamente com a cabeça. Disse que não estava trabalhando naquela terça. Mas Kevin sentia que estava na pista certa. Ele sabia que Erin havia feito o mesmo. Desdobrou o mapa e localizou a rodoviária. Ficava bem próximo a Chinatown e ele imaginou que ela teria andado naquela direção.
Kevin voltou para o carro e dirigiu pelas ruas de Chinatown e, novamente, seus instintos lhe disseram que ele estava certo. Bebeu sua vodca e caminhou pelas ruas, começando pelas lojas mais próximas da rodoviária, e mostrou a foto dela para várias pessoas. Ninguém sabia de nada, mas ele percebia que algumas delas estavam mentindo. Ele encontrou quartos baratos, lugares onde ele nunca a levaria, lugares sujos com lençóis sujos, gerenciados por homens que não falavam inglês muito bem e que aceitavam apenas dinheiro como meio de pagamento. Kevin deixava implícito que Erin correria perigo caso ele não conseguisse encontrá-la. Ele achou o primeiro lugar em que ela se hospedou, mas o proprietário não sabia para onde ela havia ido depois. Kevin encostou o cano de sua arma na cabeça do proprietário, mas, mesmo chorando, o homem não conseguiu lhe dar nenhuma outra informação.
Tendo que voltar ao trabalho na segunda-feira seguinte, ficou furioso por Erin haver conseguido ludibriá-lo. Mas, no outro fim de semana, ele estava de volta na Filadélfia. E no próximo. Ele expandiu sua busca, mas esbarrava no problema de que havia muitos lugares onde procurar e ele era apenas uma pessoa. Nem todo mundo confiava em um policial de fora da cidade.
Mas ele era paciente e metódico e continuou fazendo as viagens até a Filadélfia e tirando dias de folga. Outro fim de semana passou. Ele ampliou sua busca, sabendo que ela precisaria de dinheiro vivo. Procurou em bares, restaurantes e lanchonetes. Investigaria cada um daqueles estabelecimentos, na cidade inteira, se fosse preciso. Finalmente, uma semana depois do dia dos namorados, conversou com uma garçonete chamada Tracy, que lhe disse que Erin estava trabalhando naquele restaurante, mas que disse se chamar Érica. O nome dela constava na escala do dia seguinte. A garçonete confiou nele porque Kevin era um investigador e chegou até mesmo a flertar um pouco, dando-lhe seu número de telefone antes que ele saísse.
Kevin alugou um carro e esperou a um quarteirão do restaurante na manhã seguinte, antes do nascer do sol. Os funcionários entravam no restaurante por uma porta lateral, que dava para um beco. Ele bebeu a vodca que estava no seu copo de isopor e ficou sentado no carro, vigiando a rua enquanto esperava por ela. Após algum tempo, ele viu o dono do restaurante, Tracy e outra mulher entrarem no beco. Entretanto, Erin não apareceu naquele dia e também não foi trabalhar no dia seguinte. Ninguém sabia onde ela morava. Ela não chegou nem mesmo a voltar para pegar seu salário.
Ele descobriu onde ela estava morando algumas horas depois. Ficava perto do restaurante, um hotel vagabundo. O proprietário, que só aceitava pagamento em dinheiro, não sabia de nada, exceto que Erin havia saído no dia anterior e que depois havia voltado e saído mais uma vez, apressadamente. Kevin revistou o quarto dela, mas não encontrou nada e, quando finalmente correu para a rodoviária, havia apenas mulheres trabalhando nos balcões de venda de passagem. Nenhuma delas se lembrava de Erin. Os ônibus que partiram nas duas últimas horas saíram em direção ao norte, sul, leste e oeste, indo para todos os cantos do país.
Ela havia desaparecido de novo. Dentro do carro, Kevin gritou e bateu os punhos contra o volante até que eles estivessem inchados e roxos com hematomas.

***

NOS MESES SEGUINTES ao desaparecimento de Erin, a dor que ele sentia cresceu e ficou mais insidiosa e devastadora, espalhando-se como um câncer a cada dia. Ele havia voltado à Filadélfia e interrogado os motoristas de ônibus no decorrer das semanas seguintes, mas não conseguira muito mais informações. Chegou a descobrir que ela havia partido para Nova York, mas, depois daquilo, o rastro dela desaparecera. Muitos ônibus, muitos motoristas, muitos passageiros; muitos dias já haviam passado. Muitas opções. Erin poderia estar em qualquer lugar e a ideia de que ela poderia ter desaparecido o atormentava. Ele tinha acessos de fúria e quebrava coisas. Chorava antes de dormir. Estava tomado pelo desespero e às vezes achava que es- tava enlouquecendo.
Não era justo. Ele a amara desde quando conversaram pela primeira vez em Atlantic City. E eles eram felizes, não é mesmo? Logo depois de se casarem, ela cantarolava sozinha enquanto aplicava sua maquiagem. Ele costumava levá-la até a biblioteca e ela saía de lá com oito ou dez livros. Às vezes, Erin lia alguns trechos em voz alta para ele, e ele ouvia aquela voz e observava a maneira como ela se apoiava no balcão e pensava consigo mesmo que era a mulher mais bonita do mundo.
Ele era um bom marido. Comprara a casa que ela escolhera, as cortinas e a mobília que ela quisera, mesmo que mal tivesse condições de pagar por tudo aquilo. Depois que se casaram, ele frequentemente comprava flores na rua quando voltava para casa e Erin as colocava em um vaso sobre a mesa com algumas velas e eles jantavam em clima de romance. Às vezes, eles chegavam até mesmo a fazer amor na cozinha, com as costas dela pressionadas contra o balcão.
Ele nunca a obrigou a trabalhar e ela nunca percebeu a vida confortável que tinha. Ela não entendia os sacrifícios que ele fazia pelo casal. Erin era uma mulher mimada e egoísta e aquilo o deixava muito irritado, pois ela não compreendia o quanto sua vida era fácil. Apenas limpar a casa e preparar uma refeição e depois ela podia passar o resto do dia lendo os livros idiotas que pegava na biblioteca, assistindo à televisão ou dormindo, sem nunca ter que se preocupar com uma conta, com as prestações da hipoteca ou com pessoas que falavam mal pelas costas. Nunca teve sequer que ver os rostos de pessoas que foram assassinadas. Ele não lhe falava nada daquilo porque a amava, mas nada daquilo fez a menor diferença. Nunca lhe falou sobre as crianças que eram queimadas com ferros de passar roupa ou jogadas de algum telhado; nunca falou sobre as mulheres esfaqueadas em becos e jogadas em alguma caçamba de lixo. Nunca disse a ela sobre as ocasiões em que teve que raspar o sangue dos sapatos antes de entrar no carro e que, quando olhava nos olhos dos assassinos, ele sabia que estava frente a frente com o mal, porque a Bíblia diz que Matar uma pessoa é matar um ser vivo feito à imagem e semelhança de Deus.
Ele a amava e ela o amava. Ela tinha que voltar para casa, porque ele não conseguia encontrá-la. Ela poderia viver sua vida feliz e despreocupada novamente e ele não iria lhe bater, socar, estapear ou chutar se ela entrasse pela porta da frente, porque sempre fora um bom marido. Ele a amava e ela o amava. Ele se lembrava de que, no dia em que a pedira em casamento, ela se lembrara da noite em que se encontraram do lado de fora do cassino, quando os homens a seguiram. Homens perigosos. Ele impediu que eles a machucassem naquela noite, e na manha seguinte eles caminharam pela orla da praia. Ele a levou para uma cafeteria. Erin aceitou o pedido de casamento. Ela o amava, foi o que disse. Ele fazia com que ela se sentisse segura.
Segura. Aquela foi a palavra que ela usou. Segura.

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