Capítulo 25

A TERCEIRA SEMANA DE JUNHO foi composta por uma série de dias gloriosos, típicos do verão. A temperatura subia durante a tarde, trazendo consigo uma umidade densa o bastante para deixar o ar mais carregado e embaçar os contornos do horizonte. Logo depois, várias nuvens escuras se formavam, como num passe de mágica, e tempestades violentas traziam chuvas torrenciais. Mesmo assim, estas nunca demoravam muito, deixando para trás apenas folhas encharcadas nas árvores e uma camada de névoa perto do chão.
Katie continuava com suas longas jornadas de trabalho no restaurante. Sentia-se cansada ao pedalar de volta para casa e, pela manhã, frequentemente sentia que suas pernas e pés estavam doloridos. Guardava metade do dinheiro que recebia com as gorjetas na lata de café, notando que ela estava quase cheia, perto de transbordar. Tinha mais dinheiro do que imaginara ser capaz de guardar, mais do que o bastante para fugir se precisasse. Pela primeira vez, perguntou a si mesma se teria necessidade de guardar mais.
Ao comer lentamente as últimas porções do seu café da manhã, olhou para a casa de Jo através da janela da cozinha. Não conversava com Jo desde que ela a encontrara na saída do restaurante e, ontem à noite, quando voltara para casa, Katie vira as luzes da sala e da cozinha de Jo acesas. No começo da manhã, ouviu o barulho do motor do carro dela e ouviu o veículo passando por cima da terra e dos cascalhos da viela quando saiu de casa. Não sabia o que dizer à amiga, ou mesmo se queria dizer algo a ela. Não conseguia decidir nem mesmo se estava brava ou irritada com o que ela fizera. Jo se importava com Alex e as crianças; preocupava-se com eles e havia expressado suas preocupações à Katie. Era difícil encontrar qualquer malícia nas coisas que ela havia feito.
Katie sabia, também, que Alex viria até sua casa mais tarde. Suas visitas haviam se transformado em um tipo de rotina e, quando estavam juntos, ela se lembrava constantemente de todas as razões pelas quais havia se apaixonado por ele. Alex aceitava seus silêncios ocasionais e variações de humor e a tratava com uma gentileza que a surpreendia e emocionava. Entretanto, desde a noite em que conversara com Jo, imaginava, constantemente, que poderia estar sendo injusta com ele. O que aconteceria, por exemplo, se Kevin aparecesse? Como Alex e as crianças reagiriam se ela desaparecesse para nunca mais retornar? Estaria disposta a deixar todos para trás e nunca mais voltar a conversar com eles?
Katie detestava as questões que Jo havia levantado porque não se sentia pronta para enfrentá-las. “Você não faz ideia das coisas pelas quais passei”, foi o que teve vontade de dizer quando teve tempo para pensar a respeito. “Você não faz ideia de quem meu marido realmente é”. Mesmo assim, sabia que nenhum daqueles argumentos resolveria o problema.
Deixando a louça do seu café da manhã na pia, andou pela casa, pensando no quanto as coisas haviam mudado durante os últimos meses. Não possuía quase nada, mas sentia como se tivesse mais do que nunca tivera. Sentiu-se amada pela primeira vez em anos. Nunca teve filhos, mas se apanhava pensando e se preocupando com Kristen e Josh em momentos inesperados. Sabia que não poderia prever o futuro, mas, mesmo assim, se deu conta de forma repentina e incontestável que deixar essa nova existência para trás era algo inconcebível.
O que foi que Jo havia lhe dito certa vez? “Eu simplesmente digo às pessoas aquilo que elas já sabem, mas têm medo de admitir para si mesmas”.
Refletindo sobre aquelas palavras, Katie soube exatamente o que tinha que fazer.

***

— É CLARO — disse Alex à Katie, depois que ela fez seu pedido. Ela percebeu que ele ficou surpreso, mas também parecia sentir-se estimulado.
— Quando você quer começar?
— Que tal hoje mesmo? Se você tiver tempo — sugeriu ela.
Alex deu uma olhada no interior da loja. Havia apenas uma pessoa comendo na área da churrasqueira e Roger estava apoiado no balcão, conversando com o cliente.
— Ei, Roger. Você se importa de cuidar da caixa registradora por uma hora?
— Sem problemas, chefe — disse Roger. E ficou onde estava. Alex sabia que ele não viria até a frente da loja a menos que fosse necessário. Em uma manhã comum de um dia de semana, depois da correria inicial do café da manhã, não esperava ter muitas pessoas no estabelecimento. Alex não se importava. Saiu de trás da caixa registradora.
— Está pronta?
— Acho que não — disse ela, com os braços ao redor do corpo, nervosamente. — Mas é algo que tenho que saber como se faz.
Eles saíram da loja e foram até o jipe de Alex. Ao entrar no carro, sentiu que Alex a observava.
— Por que essa vontade repentina de aprender a dirigir? — perguntou ele. — Já cansou da bicicleta? — disse ele, provocando-a.
— A bicicleta está ótima para as coisas de que preciso. Mas quero tirar uma carteira de motorista.
Antes de hesitar, pegou as chaves do carro. Voltou-se para ela e, à medida que a observava, ela percebeu um relance da personalidade de investigador que Alex tinha. Ele estava alerta e Katie percebeu sua cautela.
— Aprender a dirigir é apenas uma parte do processo. Para conseguir a habilitação, o estado exige identificação. Uma certidão de nascimento, cartão de seguro social, coisas como essas.
— Eu sei — disse ela.
Alex escolheu suas palavras com cuidado. — Esse tipo de informação pode ser rastreada. Se você conseguir uma habilitação, as pessoas podem conseguir te encontrar.
— Já estou usando um outro número de seguro social, um que não está ligado à minha identidade real — disse ela. — Se Kevin soubesse, ele já saberia onde estou. E se vou ficar em Southport, isso é algo que preciso fazer.
Alex balançou a cabeça negativamente. 
— Katie...
Ela se inclinou e o beijou no rosto. 
— Está tudo bem. Meu nome não é Katie, lembra?
Alex percorreu a curva do rosto dela com o dedo. 
— Para mim, você sempre será Katie.
Ela sorriu. 
— Tenho um segredo. Meu cabelo não é naturalmente castanho. Na verdade, sou loira.
Alex se recostou no assento, processando aquela nova informação. 
— Tem certeza de que você realmente quer me contar isso?
— Imagino que, algum dia, você ia acabar descobrindo. Quem sabe? Talvez eu volte a ser loira algum dia.
— Por que está fazendo tudo isso? Querendo aprender a dirigir, me dando todas essas informações?
— Você me disse que podia confiar em você — disse ela, dando de ombros. — E eu acredito no que você disse.
— Só isso?
— Sim. Sinto-me como se pudesse lhe dizer qualquer coisa.
Alex olhou para sua mão e a dela, que estavam entrelaçadas sobre o apoio para o braço do assento, antes de olhar nos olhos de Katie.
— Então vou direto ao ponto. Você tem certeza de que seus documentos serão aceitos? Não podem ser cópias. Precisam ser os originais.
— Eu sei — disse ela.
Alex percebeu que não seria adequado perguntar mais nada. Colocou a chave na ignição, mas não deu a partida no motor.
— O que foi? — perguntou ela.
— Já que você quer aprender a dirigir, talvez seja melhor começarmos agora.
Ele abriu a porta e saiu do carro. 
— Vamos ver como você se sai ao volante.
Os dois trocaram de lugar. Assim que Katie sentou-se no lado do motorista, Alex lhe mostrou os aspectos básicos: os pedais do acelerador e do freio, como engatar e trocar as marchas, luzes de seta, faróis, além dos limpadores de para-brisa e os indicadores do painel. Era sempre melhor começar pelo começo.
— Está pronta?
— Acho que sim — disse ela, concentrando-se.
— Como este carro tem câmbio automático, você usa somente um pé. Ele vai estar no acelerador ou no freio. Entendeu?
— Sim — disse ela, deixando o pé esquerdo mais perto da porta.
— Agora, pise no freio enquanto engata a marcha à ré. Não use o acelerador. Em vez disso, vá soltando o freio com cuidado. Depois, vire o volante para sair da vaga do estacionamento, sempre mantendo o pé sobre o freio, com uma pressão leve.
Ela fez exatamente como Alex lhe disse e tirou o carro da vaga cautelosamente antes que ele a instruísse sobre como tirar o carro do estacionamento. Pela primeira vez, ela hesitou.
— Você tem certeza de que quer que eu dirija na estrada?
— Se houvesse muito trânsito, eu diria não. Se você tivesse 16 anos, eu também diria não. Mas acho que você tem condições de fazer isso e estou aqui para ajudar. Está pronta? Você vai virar à direita e nós vamos seguir essa via até a próxima curva. Depois viraremos novamente à direita. Quero que você sinta o carro.
Eles passaram quase uma hora dirigindo por estradas rurais. Como a maioria dos iniciantes, ela teve problemas ao esterçar o carro um pouco demais nas curvas e, por vezes, acabou entrando na área do acostamento. Também levou algum tempo para se acostumar a estacionar o carro, mas, com exceção dessas dificuldades, ela se saiu melhor do que qualquer um deles esperava. Quando estavam perto de terminar, Alex fez com que ela estacionasse em uma das ruas do centro da cidade.
Ele apontou para uma pequena cafeteria. 
— Pensei que você gostaria de celebrar. Você se saiu muito bem.
— Não sei. Não me senti como se realmente soubesse o que estava fazendo.
— Isso vem com o tempo. Quanto mais você dirigir, mais natural isso vai lhe parecer.
— Posso dirigir amanhã também? — perguntou ela.
— É claro que pode. Mas será que podemos fazer isso durante a manhã? Agora que Josh terminou as aulas, ele e Kristen estão passando as manhãs em um clube que tem atividades para crianças. Eles voltam para casa por volta do meio-dia.
— As manhãs são ótimas — disse ela. — Você acha que eu realmente dirigi bem?
— Você provavelmente conseguiria passar na parte do teste que envolve dirigir pelas ruas com mais alguns dias de prática. Claro, você precisa passar na prova escrita também, mas basta estudar um pouco.
Katie estendeu os braços e lhe deu um abraço espontâneo. 
— Obrigada por fazer tudo isso por mim.
Ele correspondeu ao abraço. 
— Fico feliz por ajudar. Mesmo que você não tenha um carro, é algo que você provavelmente deveria saber. Por que você não...
— Aprendi a dirigir quando era mais nova? — disse ela, dando de ombros. — Quando era adolescente nossa família tinha somente um carro e geralmente meu pai ficava o dia inteiro com ele. Mesmo que eu tivesse uma carteira de motorista, não poderia dirigir, e, assim, nunca me pareceu algo muito importante. Depois que saí de casa, não tive condições de comprar um carro e, novamente, não me importei muito com isso. Mais tarde, quando me casei, Kevin não queria que eu tivesse meu próprio carro.
Ela se virou. 
— E aqui estou eu. Uma ciclista de 27 anos.
— Você tem 27 anos?
— Você já sabia.
— Na verdade, eu não sabia.
— E daí?
— Achei que já estivesse com 30.
Ela lhe deu um leve tapa no braço. 
— Por causa disso, vou fazer você me comprar um croissant também.
— Nada mais justo. E, como você está a fim de contar seus segredos, gostaria de ouvir a história sobre como você finalmente conseguiu escapar.
Ela hesitou por um breve momento. 
— Tudo bem.

***

EM UMA MESA PEQUENA do lado de fora da cafeteria, Katie relatou a história de sua fuga — as ligações telefônicas redirecionadas, a viagem para a Filadélfia, as trocas constantes de emprego e os hotéis vagabundos em que morou, até a viagem para Southport. Diferente da primeira vez, agora ela foi capaz de descrever suas experiências tranquilamente, como se estivesse falando sobre outra pessoa. Quando terminou, Alex balançou a cabeça.
— O que foi?
— Estava só tentando imaginar como você deve ter se sentido depois de desligar quando Kevin fez sua última ligação. Quando ele ainda pensava que você estava em casa. Aposto que você se sentiu aliviada.
— Me senti, sim. Mas também estava aterrorizada. E, naquele ponto, ainda não havia encontrado um emprego e não sabia o que ia fazer.
— Mas você conseguiu.
— Sim... consegui — disse ela, com o olhar fixo em algum ponto distante. — Mas não era o tipo de vida que tinha imaginado para mim.
O tom de voz de Alex era gentil. 
— Não tenho certeza de que a vida de qualquer pessoa no mundo aconteça exatamente do jeito que se imagina. O que podemos fazer é tentar sempre agir para que tudo aconteça da melhor maneira possível. Mesmo quando tudo parece impossível.
Katie sabia que ele estava falando por si mesmo, tanto quanto estava falando por ela, e, durante um longo momento, nenhum deles disse nada.
— Eu amo você — sussurrou ele, finalmente.
Ela se inclinou para a frente e lhe tocou o rosto. 
— Eu sei. E eu amo você também.

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