Capítulo 27

KATIE CONSEGUIU SUA CARTEIRA de motorista na segunda semana de julho. Nos dias que precederam o teste, Alex a levava para dirigir regularmente. Apesar de alguns deslizes, ela passou com uma pontuação quase perfeita. O documento chegou pelo correio após alguns dias e, quando Katie abriu o envelope, sentiu uma forte tontura. Havia uma fotografia sua ao lado de um nome que ela nunca imaginou que teria, mas que, de acordo com o estado da Carolina do Norte, era tão real como qualquer outra pessoa que residia no estado.
Naquela noite, Alex a levou para jantar em Wilmington. Depois, os dois caminharam pelas ruas do centro da cidade de mãos dadas, olhando as vitrines das lojas. De vez em quando, ela percebia que Alex a olhava com admiração.
— O que foi? — perguntou ela, finalmente.
— Eu estava pensando que o nome Erin não combina com você. Katie se encaixa muito melhor.
— É melhor que seja assim. Esse é o meu nome e eu tenho uma carteira de motorista para provar.
— Eu sei que você tem. Agora, tudo o que você precisa é de um carro.
— Por que eu precisaria de um carro? — disse ela, dando de ombros. — A cidade é pequena e eu tenho uma bicicleta. E, quando chove, há um homem que está disposto a me levar para qualquer lugar que eu precise ir. É quase como ter meu próprio motorista particular.
— É mesmo?
— É, sim. E eu tenho certeza de que, se eu pedisse, ele até me emprestaria seu carro. Ele está praticamente comendo na minha mão.
Alex levantou uma sobrancelha. — Não me parece uma atitude muito masculina da parte dele.
— Ah, ele é ótimo — disse ela, provocando. — Parecia um pouco desesperado no começo, com todas aquelas mercadorias que me deu de graça. Mas, depois de um tempo, me acostumei com isso.
— Você tem um coração de ouro.
— É óbvio que tenho — disse ela. — A chance de encontrar alguém como eu é de uma em um milhão.
Alex riu. 
— Estou começando a achar que você finalmente está saindo da concha onde se escondia e estou começando a perceber quem é a verdadeira Katie.
Ela deu alguns passos em silêncio. 
— Você conhece a pessoa que sou verdadeiramente — disse ela, parando para olhar nos olhos dele.
— Mais do que qualquer outra pessoa.
— Eu sei — disse ele, puxando-a para um abraço. — E é por isso que, de alguma forma, acho que o destino nos unirá algum dia.

***

EMBORA A LOJA ESTIVESSE tão movimentada quanto sempre estivera, Alex resolveu tirar férias. Era a primeira vez em alguns anos que fazia isso e ele passou a maioria das tardes com Katie e seus filhos, aproveitando os dias preguiçosos do verão de uma maneira que não fazia desde que era criança. Ele pescou com Josh, construiu casas de boneca com Kristen e levou Katie para um festival de jazz em Myrtle Beach. Durante as noites em que os vaga-lumes enchiam os jardins das casas, eles saíam para caçá-los com redes e os colocavam em um pote de vidro. Depois observavam o luzir dos insetos com uma mistura de espanto e fascinação, até que Alex finalmente abria a tampa e os soltava.
Passeavam de bicicleta e iam ao cinema e, nas noites em que Katie não trabalhava, Alex gostava de acender a churrasqueira. As crianças almoçavam e depois nadavam no riacho até a hora em que o sol se punha. Depois que tomavam banho e iam dormir, Alex e Katie se sentavam no pequeno ancoradouro atrás da casa, com as pernas balançando sobre a água, enquanto a lua cruzava lentamente o céu. Bebiam vinho e conversavam sobre trivialidades, e Alex começou a apreciar bastante aqueles momentos tranquilos a dois.
Kristen, especialmente, adorava ter Katie por perto. Quando os quatro estavam andando juntos, não era raro que Kristen buscasse pela mão de Katie; quando caía no chão do playground, ela corria em direção à moça. Embora seu coração se alegrasse ao ver aquilo, Alex sempre sentia uma pontada de tristeza, também, ao se lembrar de que ele nunca poderia ser tudo que sua filha precisava, independente do quanto se esforçasse. Mesmo assim, quando Kristen vinha
correndo até ele e perguntava se a senhorita Katie poderia levá-la para fazer compras, Alex era incapaz de dizer não. Embora fizesse questão de levá-la para comprar o que fosse necessário uma ou duas vezes por ano, ele geralmente via aqueles passeios mais como uma obrigação de pai do que uma oportunidade para se divertir. Em contrapartida, Katie se deliciava com a ideia. Depois de dar algum dinheiro à Katie, Alex lhe entregou as chaves do jipe e acenou do estacionamento quando elas saíram.
Por mais que a presença de Katie alegrasse Kristen, os sentimentos de Josh não eram tão óbvios. No dia anterior, Alex fora buscá-lo em uma festa oferecida na casa de um amigo, e o filho não trocou qualquer palavra com o pai ou com Katie pelo resto da noite. Naquele dia, ainda pela manhã, ele também estava mais reservado do que de costume. Alex sabia que alguma coisa o incomodava e sugeriu que os dois pegassem suas varas de pescar logo depois que o sol se pôs. As sombras começaram a se estender por sobre a água escura e o riacho estava tranquilo, um espelho enegrecido refletindo as nuvens que cruzavam lentamente o céu.
Eles pescaram por cerca de uma hora, enquanto o céu se tingia de violeta para depois adquirir um tom de índigo. As iscas e os anzóis criavam ondulações em forma de anéis quando se mexiam na superfície da água. Josh continuava estranhamente quieto. Em outras ocasiões, aquele teria sido um momento tranquilo, mas Alex tinha a sensação incômoda de que alguma coisa estava errada. Quando estava prestes a perguntar a Josh sobre aquilo, seu filho se virou em sua direção.
— Pai?
— Sim?
— Você ainda pensa na mamãe?
— O tempo todo — disse ele.
Josh assentiu. 
— Eu também penso nela.
— É bom que o faça. Ela o amava muito. Sobre o que você pensa?
— Eu me lembro de quando ela fez biscoitos para nós. Ela me deixou colocar o glacê neles.
— Eu me lembro disso. Você ficou com o rosto todo coberto de glacê rosa. Ela tirou uma foto sua. Ainda está pregada na porta da geladeira.
— Acho que é por isso que eu me lembro — disse ele, apoiando a vara de pescar sobre o colo. — Você sente saudades dela?
— É claro que sinto. Eu a amava muito — disse Alex, olhando nos olhos de Josh. — O que está havendo, Josh?
— Ontem, na festa... — Josh esfregou o nariz, hesitando.
— O que aconteceu?
— A maioria das mães ficou lá o tempo todo. Conversando e coisa e tal.
— Eu teria ficado se você quisesse.
Josh baixou os olhos e, em meio ao silêncio, ele percebeu o que seu filho quis dizer. 
— Eu devia ter ficado por ali também, não é? Uma reunião entre pais e filhos — disse ele, mais em tom de afirmação do que de pergunta. — Mas você não quis me pedir isso porque eu seria o único pai ali, no meio de várias mães, não é?
Josh assentiu novamente, com um olhar de culpa. 
— Não quero que você fique bravo comigo.
Alex colocou o braço ao redor de seu filho. 
— Não estou bravo.
— Tem certeza?
— Absoluta. Nunca ficaria bravo com você por causa disso.
— Você acha que a mamãe teria ido? Se ela ainda estivesse aqui?
— É claro que teria. Ela não perderia essa festa por nada.
Do outro lado do riacho, uma tainha pulou e as pequenas ondulações começaram a vir na direção de Josh e Alex.
— O que você faz quando sai com a senhorita Katie? — perguntou
Alex mudou de posição levemente. 
— Mais ou menos as coisas que fizemos na praia hoje. Nós comemos, conversamos e, às vezes, saímos para dar um passeio.
— Você tem passado bastante tempo com ela ultimamente.
— É verdade.
Josh pensou naquilo. 
— E sobre o que vocês conversam?
— Sobre coisas comuns — disse Alex, inclinando a cabeça. 
— E falamos sobre você e sua irmã também.
— E o que vocês dizem?
— Falamos sobre o quanto gostamos de passar o tempo com vocês dois e sobre as boas notas que você está tirando na escola, ou sobre como você mantém seu quarto limpo e organizado.
— Você vai contar a ela sobre eu não ter lhe dito que você deveria ter ficado na festa?
— Você quer que eu conte a ela?
— Não — disse ele.
— Então não vou dizer nada.
— Você promete? Porque não quero que ela fique brava comigo. 
Alex levantou os dedos. 
— Palavra de escoteiro. Mas, para que você fique mais tranquilo, ela não ficaria brava com você, mesmo se eu contasse a ela. Ela acha que você é um ótimo garoto.
Josh se sentou com as costas eretas e começou a recolher sua linha. 
— Que bom. Eu também gosto muito dela.

***

A CONVERSA COM JOSH tirou o sono de Alex naquela noite. Ele se apanhou estudando o retrato de Carly em seu quarto, enquanto tomava sua terceira cerveja naquela noite.
Kristen e Katie haviam voltado para casa animadas e cheias de energia e mostravam a Alex as roupas que tinham comprado. De maneira surpreendente, Katie devolveu quase metade do dinheiro que ele havia lhe dado dizendo apenas que tinha um talento para achar peças em promoção. Alex se sentou no sofá e sua pequena filha vestiu e desfilou um modelo que havia comprado para logo em seguida desaparecer em seu quarto e voltar com um conjunto
totalmente diferente. Até mesmo Josh, que geralmente não se importaria nem um pouco com aquilo, deixou seu Nintendo de lado. Quando Kristen saiu da sala, ele se aproximou de Katie.
— Você pode me levar para fazer compras também? — pediu ele, quase sussurrando. — Preciso de umas camisas novas e outras coisas também.
Depois, Alex ligou para um restaurante chinês e pediu que entregassem comida em sua casa. Eles se sentaram ao redor da mesa, comeram e riram. Em um certo momento do jantar, Katie tirou uma pulseira de couro de sua bolsa e olhou para Josh.
— Achei essa pulseira muito bonita — disse ela, entregando-a a Josh. A surpresa dele se transformou em satisfação quando ele a colocou no pulso; e Alex percebeu como os olhos de Josh se fixaram continuamente em Katie durante o resto da noite.
Durante momentos como aquele era que Alex, ironicamente, sentia mais saudade de Carly. Embora ela nunca tivesse vivenciado noites em família como esta — as crianças eram muito novas quando ela morreu —, ele conseguia imaginá-la à mesa com muita facilidade.
Talvez aquele fosse o motivo que o deixara com insônia, mesmo depois de Katie ter voltado para casa e Kristen e Josh terem se recolhido aos seus quartos para dormir. Afastando os lençóis, ele foi até o armário e abriu o cofre que havia instalado há alguns anos. Ali ficavam documentos importantes sobre finanças e seguros, empilhados ao lado de tesouros do seu casamento. Eram objetos que Carly havia juntado: fotos de sua lua de mel, um trevo de quatro folhas que haviam encontrado durante as férias que passaram em Vancouver, o buquê de begônias e lírios que ela havia usado no dia de seu casamento, imagens de ultrassom de Josh e Kristen quando eles ainda estavam em seu ventre, com as roupas que cada um vestia no dia em que saíram da maternidade. Negativos fotográficos e discos com fotos digitais que registravam os anos que passaram juntos. Aqueles objetos estavam carregados de significado e lembranças e, desde a morte de Carly, Alex não havia acrescentado nada ao cofre, exceto as cartas que sua esposa havia escrito. Uma delas estava endereçada a ele. A outra, como não tinha qualquer nome no envelope, permanecia fechada e ele não se atrevera a abri-la, afinal de contas, uma promessa devia ser honrada.
Ele pegou a carta que já havia lido uma centena de vezes e deixou a outra dentro do cofre. Desconhecia completamente a existência daquelas cartas até que ela lhe entregou os envelopes pouco menos de uma semana antes de morrer. Àquela altura, Carly passava os dias acamada e só conseguia engolir líquidos. Quando ele a levava ao banheiro, parecia muito leve, como se, de algum modo, tivesse sido esvaziada. Nas poucas horas em que a esposa conseguia ficar acordada, Alex estava ao seu lado. Geralmente, voltava a dormir depois de alguns minutos e ele a olhava por longos momentos, temendo se afastar caso ela precisasse de alguma coisa, ao mesmo tempo receoso de permanecer por perto, sem querer interromper seu repouso. No dia em que ela lhe deu os envelopes, ele viu que eles haviam sido colocados sob os cobertores, aparecendo como que por mágica. Mais tarde, Alex soube que Carly havia escrito as cartas dois meses antes e que sua sogra as estava guardando.
Agora, ele abriu o envelope e tirou a carta que já havia sido bastante manipulada. Estava escrita em papel amarelo pautado. Trazendo-a para perto do nariz, ainda conseguiu identificar a loção que Carly sempre usava. Lembrou-se da surpresa que sentiu na ocasião e a maneira como os olhos da esposa imploravam para que ele entendesse.
— Você quer que eu leia esta aqui primeiro? — lembrou-se de haver perguntado. Apontou para o envelope que tinha seu nome inscrito e ela assentiu levemente. Carly relaxou e sua cabeça afundou nos travesseiros, enquanto ele tirou a carta de dentro do envelope.

Meu querido Alex,
Há sonhos que nos visitam e que nos deixam com uma sensação de plenitude quando acordamos e há sonhos que fazem com que valha a pena viver a vida. Você, meu querido e doce marido, é esse sonho e eu fico triste por ter que colocar em palavras o que sinto por você.
Estou escrevendo esta carta agora, enquanto ainda tenho forças e, mesmo assim, não tenho certeza sobre como dizer o que pretendo. Não sou escritora e as palavras me parecem muito inadequadas neste momento. Como posso descrever o quanto o amo? Será mesmo possível descrever um amor assim? Não sei, mas, enquanto estou aqui, sentada, com a caneta na mão, sei que tenho que tentar.
Eu sei que você gosta de contar a história sobre como me fiz de difícil quando nos conhecemos, mas, quando penso na ocasião em que nos conhecemos, acho que percebi naquela noite que era nosso destino ficarmos juntos. Eu me lembro claramente daquela noite, assim como me lembro da sensação exata de sentir sua mão tocando a minha e de cada detalhe daquela tarde nublada na praia, quando você se ajoelhou e me pediu em casamento. Até você entrar na minha vida, eu nunca percebera o quanto algumas coisas me faziam falta. Eu nunca soubera que um toque poderia ter tanto significado, ou que uma expressão facial pudesse ser tão eloquente; nunca me dera conta de que um beijo poderia literalmente me tirar o fôlego. Você é, e sempre foi, tudo o que eu sempre quis em um marido. Você é gentil, forte, carinhoso e inteligente; você me alegra,
e, como pai, é melhor do que imagina ser. Tem talento para lidar com crianças, um modo de fazer com que elas confiem em você e eu não sou capaz de expressar a alegria que sinto quando o vejo com nossos filhos nos braços quando eles adormecem com a cabeça apoiada no seu ombro.
Minha vida é infinitamente melhor com você ao meu lado. E é isso que torna tudo isso tão difícil; é por isso que não consigo encontrar as palavras de que preciso. Eu sinto medo quando penso que tudo vai acabar em breve. Não estou com medo apenas por mim — sinto medo também por você e pelos nossos filhos. Sinto meu coração se despedaçar por saber que vou causar tanta dor a vocês. Eu não sei o que fazer para melhorar isso. Posso apenas lembrá-lo das razões pelas quais me apaixonei por você desde o começo. Também quero expressar minha tristeza por magoá-lo, assim como aos nossos lindos filhos. Dói muito pensar que seu amor por mim também será a fonte de tanta angústia.
Mas eu realmente acredito que, embora o amor possa ferir, ele também seja capaz de curar... E é por isso que eu escrevi uma outra carta.
Por favor, não a leia. Eu não a escrevi para você, para nossas famílias ou mesmo para nossos amigos. Duvido muito que eu ou você já conheçamos a mulher que deverá receber a outra carta. Perceba: aquela carta deve ser entregue para a mulher que irá lhe curar, aquela que fará com que você volte a se sentir inteiro.
Eu sei que, neste momento, você não consegue imaginar algo assim. Pode levar meses, pode levar anos, mas, depois de algum tempo, você entregará essa carta para outra mulher. Confie nos seus instintos, assim como eu fiz na noite em que se aproximou de mim pela primeira vez. Você saberá o momento e o local para fazer o que lhe peço, assim como saberá quem é a mulher que merece lê- la. E, quando souber quem é essa pessoa, confie nestas palavras: Em algum lugar, de algum modo, estarei sorrindo e feliz por vocês dois.
Com amor, Carly

***

DEPOIS DE RELER A CARTA, Alex a colocou de volta em seu envelope e guardou-a no cofre. Do lado de fora da janela, o céu estava cheio de nuvens iluminadas pelo luar, brilhando com uma incandescência quase sobrenatural. Ele olhou para cima, pensando em Carly e em Katie. Carly lhe disse para confiar em seus instintos; disse-lhe que saberia o que fazer com a carta. E, repentinamente, percebeu que Carly tinha razão. Pelo menos, em metade de suas afirmações. Ele sabia que queria entregar a carta a Katie. Mas ainda não tinha cer- teza se ela estava preparada para recebê-la.

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