Capítulo 2
Quando você viaja de ônibus, é sempre difícil decidir se é melhor
sentar no assento perto da janela, no assento da passagem ou no assento do
meio. Se você escolhe um assento da passagem, tem a vantagem de poder esticar
as pernas sempre que tiver vontade, mas tem a desvantagem de ter pessoas
passando ao seu lado, as quais podem acidentalmente pisar no seu pé ou derramar
alguma coisa na sua roupa. Se você escolhe um assento na janela, tem a vantagem
de ter uma visão clara do panorama, mas tem a desvantagem de ficar vendo
insetos morrerem ao bater no vidro. Se você escolhe um assento do meio, não tem
nenhuma dessas vantagens e ainda tem a desvantagem adicional de ter pessoas se
encostando em você de todos os lados quando adormecem. Você vê logo de cara por
que deve sempre contratar os serviços de uma limusine, ou então alugar uma
mula, em vez de pegar o ônibus para o seu destino.
Os órfãos Baudelaire, no entanto, não tinham dinheiro para
contratar os serviços de uma limusine, e levariam várias semanas para chegar a
C.S.C. em lombo de mula, portanto eles estavam viajando para o seu novo lar de
ônibus. As crianças tinham pensado que precisariam se esforçar muito para
convencer o Sr. Poe a escolher C.S.C. como a sua nova cidade-tutora, porém, bem
no momento em que viram as três iniciais no folheto, tocou um dos telefones do Sr.
Poe, e quando ele terminou de falar estava ocupado demais para discutir. Ele só
teve tempo de fazer os arranjos com a Prefeitura e levá-los para a estação
rodoviária. No bota-fora deles — uma expressão que aqui significa ‘’pôr os
Baudelaire no ônibus em vez de fazer a coisa bem-educada que seria levá-los
pessoalmente ao novo lar’’ — ele os instruiu a se apresentarem na Prefeitura de
C.S.C., e os fez prometer que não fariam nada que pudesse arruinar a reputação
do seu banco. Antes que eles se dessem conta, Violet estava aboletada em um
assento da passagem tirando o pó do casaco e massageando os pés doloridos, e
Klaus estava sentado em um assento da janela olhando para o panorama através de
uma camada de insetos mortos. Sunny sentou-se entre eles, mascando o descanso
de braço.
— Noencosta! — disse ela
severamente, e o irmão sorriu.
— Não se preocupe, Sunny —
disse ele. — Vamos tomar cuidado para
não encostar em você se adormecermos. De qualquer jeito, não temos muito tempo
para cochilos. Devemos chegar a C.S.C. a qualquer minuto agora.
— O que você acha que
significa? — perguntou Violet. — Nem o
folheto, nem o mapa da rodoviária mostravam nada além das três iniciais.
— Não sei — disse Klaus. — Você acha que devíamos ter contado ao Sr.
Poe sobre o segredo de C.S.C.? Talvez ele pudesse ter nos ajudado.
— Duvido — disse Violet. — Ele não foi de grande ajuda antes. Gostaria
que os Quagmire estivessem aqui. Aposto que poderiam nos ajudar.
— Eu gostaria que os
Quagmire estivessem aqui mesmo se não pudessem nos ajudar — disse Klaus, e as
suas irmãs balançaram a cabeça concordando. Nenhum Baudelaire tinha mais nada a
dizer sobre o quão preocupados estavam com os trigêmeos, e eles ficaram sentados
em silêncio durante o resto do percurso, esperando que a chegada a C.S.C. os
trouxesse mais para perto da salvação dos seus amigos.
— C.S.C.! — gritou afinal o
motorista do ônibus. — Próxima parada,
C.S.C.! Se olharem pela janela, poderão ver a cidade se aproximando, pessoal!
— Que cara tem? — perguntou
Violet a Klaus.
Klaus olhou pela janela através da camada de insetos mortos.
— Achatada — disse ele.
Violet e Sunny se debruçaram para olhar e viram que o seu irmão
havia dito a verdade. A paisagem era como se alguém tivesse traçado a linha do
horizonte — a palavra ‘’horizonte’’ aqui significa ‘’a fronteira onde o céu
termina e o mundo começa’’ — e depois esquecido de desenhar qualquer outra
coisa. A terra se estendia até onde o olho podia alcançar, mas não havia nada
para o olho ver além de terra plana e seca e uma ocasional folha de jornal
estremecendo com a passagem do ônibus.
— Não estou vendo nenhuma
cidade — disse Klaus. — Vocês acham que
fica debaixo da terra?
— Novedri! — disse Sunny, o
que queria dizer ‘’Viver debaixo da terra não deve ser nada divertido!’’.
— Talvez aquilo lá adiante
seja a cidade — disse Violet, apertando os olhos para ver o mais longe
possível. — Lá longe, perto da linha do
horizonte, tem um borrão preto meio indistinto. Parece fumaça, mas talvez seja
apenas alguns edifícios vistos de longe.
— Não consigo ver — disse
Klaus. — Acho que aquela mariposa
esmagada está bloqueando a visão. Mas um borrão indistinto poderia ser apenas
fata-morgana.
— Fata? — perguntou Sunny.
— Fata-morgana é quando os
seus olhos pregam peças em você, especialmente quando faz muito calor —
explicou Klaus. — É causada pela
distorção da luz através de camadas alternadas de ar quente e frio. Normalmente
o fenômeno é chamado de miragem, mas eu gosto mais do nome 'fata-morgana'.
— Eu também — concordou
Violet, — mas esperemos que não seja uma miragem ou fata-morgana. Esperemos que
seja C.S.C.
— C.S.C.! — gritou o
motorista, e o ônibus parou. — C.S.C.!
Passageiros para C. S. C. queiram desembarcar!
Os Baudelaire se levantaram, recolheram seus pertences e seguiram
pela passagem, mas quando chegaram à porta aberta do ônibus eles pararam e
perscrutaram, hesitantes, a paisagem achatada e vazia.
— Esta é realmente a parada
de C.S.C.? — perguntou Violet ao motorista. — Eu pensei que C.S.C. fosse uma cidadezinha.
— E é — retrucou o
motorista. — Apenas siga na direção
daquele borrão preto indistinto lá no horizonte. Sei que parece uma... bem, não
me lembro da expressão para quando os seus olhos pregam peças em você. Mas é
realmente a cidade.
— Não daria para nos deixar
um pouco mais perto? — perguntou Violet timidamente. — Temos um bebê conosco, e
a distância parece ser muito grande para ir andando.
— Gostaria de poder
ajudá-los — disse o motorista gentilmente, baixando os olhos para Sunny, — mas
o Conselho dos Anciãos tem regras muito estritas. Tenho de desembarcar os
passageiros bem aqui; caso contrário, poderia ser severamente punido.
— O que é o Conselho dos
Anciãos? — perguntou Klaus.
— Ei! — gritou uma voz do
fundo do ônibus. — Diga a essas crianças
para andarem logo e saírem do ônibus! A porta aberta está deixando os insetos
entrarem!
— É melhor saírem, crianças
— disse o motorista do ônibus, e os Baudelaire desceram do ônibus para as
terras achatadas de C.S.C. As portas se fecharam e, com um pequeno aceno, o
motorista arrancou, deixando as crianças sozinhas na paisagem desolada. Os
irmãos ficaram olhando enquanto o ônibus ia ficando cada vez menor na distância
e então se voltaram na direção do borrão preto indistinto do seu novo lar.
— Bem, agora posso ver —
disse Klaus, apertando os olhos atrás dos óculos, — mas não posso acreditar.
Vai levar o resto da tarde para caminharmos toda essa distância.
— Então é melhor ir andando
— disse Violet, içando Sunny para cima da sua mala.
— Esta mala tem rodinhas —
disse ela para a irmã, — portanto você pode ficar sentada em cima enquanto eu
vou puxando.
— Bigada! — disse Sunny, o
que queria dizer ‘’É muito gentil da sua parte!’’ e os Baudelaire começaram a
sua longa caminhada rumo ao borrão preto e indistinto no horizonte. Mal tinham
dado os primeiros passos, as desvantagens da viagem de ônibus ficaram parecendo
batatinhas. ‘’Batatinhas ‘’ é uma expressão que não tem nada a ver com tubérculos
que são muito pequenos em tamanho. Em vez disso, refere-se à mudança dos sentimentos
de uma pessoa em relação a alguma coisa, quando comparada com outra coisa. Há
quem prefira dizer ‘’café pequeno’’. Se você estivesse caminhando na chuva, por
exemplo, poderia ficar preocupado com a possibilidade de se molhar, mas se dobrasse
uma esquina e visse uma matilha de cães ferozes, a possibilidade de se molhar se
transformaria repentinamente em batatinhas ou café pequeno, se comparada com a possibilidade
de ser perseguido numa rua sem saída por cães ferozes que vão latir para você
e, possivelmente, devorá-lo.
Quando os Baudelaire começaram a sua longa jornada rumo a C.S.C.,
os insetos mortos, os pés pisados e a possibilidade de alguém se encostar neles
para dormir se transformaram em batatinhas em comparação com as coisas muito mais
desagradáveis que estavam encontrando. Sem ter mais nada naquela terra plana contra
o que soprar, o vento concentrou seus esforços em Violet, uma expressão que
aqui significa que em pouco tempo os cabelos dela ficaram tão desvairadamente
emaranhados que até parecia que nunca tinham visto um pente na vida. Como Klaus
estava atrás de Violet, o vento não soprou muito nele, mas sem ter mais nada
naquela paisagem vazia a que se pegar, a poeira da terra concentrou seus
esforços no Baudelaire do meio, e logo ele estava empoeirado dos pés à cabeça,
como se anos se tivessem passado desde a última vez em que tomara uma ducha.
Empoleirada em cima da bagagem de Violet, Sunny estava fora do caminho da
poeira, mas sem ter mais nada naquelas terras desoladas sobre o que brilhar, o
sol concentrou seus esforços nela, o que significava que logo ela ficou tão
queimada de sol quanto um bebê que passara seis meses na praia, em vez de umas
poucas horas em cima de uma mala.
Porém, até mesmo enquanto eles se aproximavam cada vez mais da
cidade, C.S.C. continuava parecendo um borrão tão indistinto quando parecera de
longe. À medida que as crianças iam chegando cada vez mais perto do seu novo
lar, começaram a ver alguns edifícios de diferentes alturas e larguras,
separados por ruas estreitas e largas, e os Baudelaire puderam ver até as
formas altas e magricelas dos postes de luz e mastros de bandeira se estendendo
na direção do céu. Mas tudo o que eles viam — da ponta do edifício mais alto
até a curva da rua mais estreita — era preto como azeviche, e parecia estar
tremendo ligeiramente, como se a cidade inteira tivesse sido pintada em um pedaço
de pano que tremulava ao vento. Os edifícios tremulavam, e os postes tremulavam,
e até mesmo as ruas tremiam muito de leve; aquilo não se parecia com nenhuma
cidade que os Baudelaire já tivessem conhecido. Era um mistério, mas, diferentemente
de todos os mistérios, depois que as crianças chegaram aos arredores de C.S.C.
e ficaram sabendo o que causava o efeito tremulante, não se sentiram nem um pouco
melhor por ver o mistério esclarecido.
A cidade estava coberta de corvos. Praticamente cada centímetro de
praticamente cada objeto tinha um grande pássaro preto empoleirado, lançando
olhares desconfiados para as crianças ali paradas bem no limite da cidade.
Havia corvos encarapitados nos telhados de todos os edifícios, empoleirados nos
peitoris das janelas, e pousados nos degraus e nas calçadas. Corvos cobriam
todas as árvores, desde os galhos mais altos até as raízes que se sobressaíam
na terra atapetada de corvos, reunidos nas ruas em grandes números, entretidos
em conversas de corvo. Corvos recobriam os postes e mastros de bandeira, e
havia corvos deitados nos bueiros e descansando entre mourões de cercas. Havia
até seis corvos amontoados sobre a placa que dizia ‘’Prefeitura’’ com uma seta
indicando uma rua forrada de corvos. Os corvos não estavam crocitando ou
grasnando, que é o que os corvos costumam fazer com frequência, ou tocando
cometa, coisa que os corvos praticamente nunca fazem, mas a cidade estava longe
de estar em silêncio. O ar estava repleto de sons que os corvos faziam ao se
mover de um lado para outro. Às vezes um corvo voava de um poleiro para outro,
como se de repente tivesse se entediado de ficar pousado na caixa de correio e
achasse que seria mais divertido se empoleirar na maçaneta da porta de um
edifício. De vez em quando, vários corvos começavam a agitar as asas, como se
tivessem ficado enrijecidos de tanto permanecer parados em cima de um banco e
quisessem se espreguiçar um pouco. E quase constantemente os corvos mudavam de
posição sem sair do lugar, tentando se acomodar o melhor possível em um espaço
tão apertado. Todo esse movimento explicava por que a cidade parecera tão
tremulante à distância, mas isto certamente não fez com que os Baudelaire se
sentissem melhor, e eles ficaram parados em silêncio por um bom tempo, tentando
encontrar coragem para avançar por entre todos aqueles pássaros negros e
palpitantes.
— Já li três livros sobre
corvos — disse Klaus. — Eles são
totalmente inofensivos.
— Sim, eu sei — disse
Violet. — Não é comum ver tantos corvos
em um só lugar, mas eles não são motivo de preocupação. São batatinhas.
— Zimuster — concordou
Sunny, mas as três crianças ainda assim não deram nenhum passo mais para perto
da cidade coberta de corvos. A despeito do que haviam dito uns para os outros —
que os corvos eram aves inofensivas, que não tinham nada com que se preocupar,
e ‘’Zimuster’’ que significava algo como ‘’Seria tolice ter medo de um bando de
pássaros’’ ou coisa do gênero —, os Baudelaire sentiram que estavam encontrando
algumas batatas grandes para valer.
Se eu mesmo fosse um dos Baudelaire, teria ficado parado no limite
da cidade pelo resto da minha vida, choramingando de medo, em vez de dar um
passo que fosse para dentro das ruas cobertas de corvos, mas os Baudelaire só
precisaram de uns poucos minutos para reunir coragem e avançar por entre todos
aqueles pássaros crocitantes e semoventes até a Prefeitura.
— Isto não é tão difícil
quanto eu imaginei que fosse — disse Violet em voz baixa para não perturbar os
corvos mais próximos. — Não são
exatamente batatinhas, mas há espaço suficiente para andar entre os grupos de
corvos.
— É verdade — disse Klaus,
de olho na calçada para não pisar em nenhum rabo de corvo. — E eles tendem a se afastar para o lado, um
pouquinho de nada, quando passamos.
— Racá — disse Sunny,
engatinhando o mais cautelosamente que podia. Ela queria dizer alguma coisa na
linha de ‘’É quase como andar no meio de uma silenciosa, porém educada,
multidão de pessoas muito baixinhas’’ e os irmãos dela sorriram concordando.
Em pouco tempo, já tinham andado um quarteirão inteiro da rua
forrada de corvos, e lá na outra esquina havia um edifício alto e imponente que
parecia ser feito de mármore branco — pelo menos, até onde os Baudelaire podiam
ver, pois estava coberto de corvos como o resto das vizinhanças. Até na placa
que dizia ‘’Prefeitura’’ parecia estar escrito ‘’ef tur’’porque três corvos
enormes estavam empoleirados ali, fitando os Baudelaire com os seus olhinhos de
contas. Violet ergueu a mão como quem vai bater à porta, mas parou.
— O que foi? — disse Klaus.
— Nada — replicou Violet,
ainda com a mão suspensa no ar. — Acho
que estou só um pouquinho desassossegada. Afinal, esta é a Prefeitura de C.S.C. Até onde
sabemos, atrás desta porta pode estar o segredo que estamos procurando
desvendar desde que os Quagmire foram raptados pela primeira vez.
— Talvez não devêssemos
alimentar esperanças — disse Klaus. — Lembrem-se,
quando moramos com os Squalor pensamos que tínhamos resolvido o mistério de
C.S.C., mas estávamos errados. Podemos estar errados também desta vez.
— Mas também podemos estar
certos — disse Violet, — e se estivermos certos, devemos estar preparados para
qualquer coisa terrível que esteja atrás desta porta.
— A não ser que estejamos
errados — ressaltou Klaus. — Neste caso, não temos de estar preparados para
nada.
— Gacsú! — disse Sunny. Ela
queria dizer algo na linha de ‘’Não vejo por que discutir, porque nunca
saberemos se estamos certos ou errados a não ser que batamos à porta’’ e antes
que seus irmãos pudessem reagir ela engatinhou em volta das pernas de Klaus e
meteu a cara, uma expressão que aqui quer dizer ‘’bateu decididamente à porta com
os pequeninos nós dos seus dedos’’.
— Entre! — bradou uma voz
imponente, e os Baudelaire abriram a porta e se viram em uma grande sala com
teto muito alto, chão muito lustroso e um banco muito grande, com retratos
muito detalhados de corvos pendurados nas paredes. Na frente do banco havia uma
pequena plataforma onde estava uma mulher, em pé, usando um capacete de motociclista,
e atrás da plataforma havia talvez uma centena de cadeiras de dobrar, a maioria
das quais tinha uma pessoa sentada em cima, olhando fixamente para os órfãos Baudelaire.
Mas os órfãos Baudelaire não tinham os olhos fixos nessas pessoas. As três crianças
estavam olhando para as pessoas sentadas no banco, tão fixamente que mal chegaram
a relancear o olhar para as cadeiras de dobrar.
No banco, rigidamente sentadas lado a lado, estavam vinte e cinco
pessoas que tinham duas coisas em comum. A primeira coisa era que eram todas
bastante velhas — a pessoa mais jovem no banco, uma mulher sentada na ponta
mais distante, parecia ter por volta de oitenta e um anos de idade, e todas as
outras pareciam ser bem mais velhas.
Mas a segunda coisa que elas tinham em comum era muito mais
interessante. A primeira vista, parecia que alguns corvos tinham voado das ruas
lá para dentro e se empoleirado nas cabeças das pessoas sentadas no banco, mas
quando os Baudelaire olharam mais atentamente, viram que os corvos não piscavam
os olhos, nem agitavam as asas, nem faziam movimento de nenhum tipo, e as
crianças se deram conta de que aqueles nada mais eram senão chapéus pretos,
feitos de modo a parecer corvos de verdade. Era um tipo de chapéu tão esquisito
para usar que as crianças ficaram olhando fixamente durante um considerável
número de minutos sem se dar conta de mais coisa nenhuma.
— Vocês são os órfãos
Baudelaire? — perguntou em voz áspera um dos velhos que estavam sentados no
banco. Enquanto ele falava, a cabeça do seu corvo bamboleava de leve, o que só
servia para fazer o chapéu parecer ainda mais ridículo. — Estávamos esperando por vocês, embora
ninguém tenha me contado que teriam uma aparência tão horrível. Vocês três são
as crianças mais descabeladas pelo vento, empoeiradas e queimadas de sol que já
vi. Vocês têm certeza de que são as crianças que estávamos esperando?
— Sim — respondeu Violet. — Eu sou Violet Baudelaire, e estes são meu
irmão Klaus, e minha irmã, Sunny, e a razão por que nós...
— Psiu — fez um dos outros
velhos. — Neste momento, não estamos
discutindo vocês. A Regra nº 492 reza claramente que o Conselho dos Anciãos só
discutirá coisas que estão em cima da plataforma. Neste momento estamos
discutindo a nossa nova chefe de polícia. Alguma pergunta dos cidadãos com
respeito à oficial Luciana?
— Sim, eu tenho uma
pergunta — falou um homem de calças axadrezadas. — Quero saber o que aconteceu com o nosso
antigo chefe de polícia. Eu gostava daquele sujeito.
A mulher na plataforma ergueu a mão enluvada de branco e os
Baudelaire se voltaram para olhar para ela pela primeira vez. A oficial Luciana
era uma mulher muito alta, usando grandes botas pretas, um casaco azul com uma
insígnia reluzente e um capacete de motociclista com o visor puxado para baixo,
cobrindo os olhos. Os Baudelaire podiam ver a sua boca debaixo do visor,
coberta de batom vermelho-brilhante. — O
antigo chefe de polícia está com a garganta inflamada — disse ela, voltando o
capacete para o homem que tinha feito a pergunta. — Ele engoliu acidentalmente uma caixa de
percevejos. Mas não vamos perder tempo falando dele. Sou a sua nova chefe de
polícia e vou garantir que todos os violadores de regras da cidade sejam
adequadamente punidos. Não vejo o que mais pode haver para discutir.
— Concordo plenamente —
disse o Ancião que tinha sido o primeiro a falar, e as pessoas sentadas nas
cadeiras de dobrar concordaram. — O
Conselho dos Anciãos encerra aqui a discussão da oficial Luciana. Hector, por
favor traga os órfãos para a plataforma, para que sejam discutidos.
Um homem alto e muito magro, de macacão amarrotado, ergueu-se de
uma das cadeiras de dobrar assim que a chefe de polícia desceu da plataforma
com um sorriso de batom. Olhos no chão, o homem foi até os Baudelaire e apontou
primeiro para o Conselho dos Anciãos sentado no banco, e depois para a
plataforma vazia. Embora tivessem preferido um método mais polido de
comunicação, as crianças entenderam imediatamente; Violet e Klaus subiram à
plataforma e depois ergueram Sunny para juntar-se a eles.
Uma das mulheres no Conselho dos Anciãos falou.
— Estamos agora discutindo
a tutela dos órfãos Baudelaire. Sob o novo programa governamental, toda a
cidade de C.S.C. atuará como tutora destas três crianças porque é preciso uma
cidade para educar uma criança. Alguma pergunta?
— Estes são os mesmos
Baudelaire — veio uma voz do fundo da sala, — que estiveram envolvidos no rapto
dos gêmeos Quagmire pelo conde Omar?
Os Baudelaire se voltaram para ver uma mulher usando um robe cor-de-rosa-claro
e segurando um exemplar d'O Pundonor Diário.
— Diz aqui no jornal que um
conde malfazejo está atrás dessas crianças. Não quero uma coisa assim na nossa cidade!
— Nós já cuidamos desse
assunto, Sra. Morrow — retrucou um outro membro do Conselho em tom tranquilizador.
— Explicaremos em um momento. Agora,
quando crianças têm um tutor, o tutor as obriga a fazer tarefas domésticas,
portanto segue-se que vocês, crianças Baudelaire, farão todas as tarefas
domésticas para a cidade inteira. A começar de amanhã, vocês três serão
responsáveis por qualquer coisa que qualquer pessoa lhes peça para fazer.
As crianças se entreolharam incrédulas.
— A senhora me perdoe —
disse Klaus timidamente, — mas só há vinte e quatro horas em um dia, e parece
que há várias centenas de cidadãos. Como vamos encontrar o tempo necessário
para fazer as tarefas domésticas de todo mundo?
— Silêncio! — disseram em
uníssono vários membros do Conselho, e então a mulher que parecia ser a mais
jovem falou. — A Regra nº 920 reza
claramente que ninguém pode falar enquanto está na plataforma a não ser que
seja um oficial de polícia. Vocês são órfãos e não oficiais de polícia,
portanto calem-se. Agora, devido aos corvos de C.S.C., vocês terão de programar
as suas tarefas domésticas como se segue: na parte da manhã, os corvos pousam
na cidade alta, portanto é nesse período que vocês farão as suas tarefas na
cidade baixa, para que os corvos não fiquem no seu caminho. Na parte da tarde,
como podem ver, os corvos pousam na cidade baixa, portanto vocês farão as suas tarefas
na cidade alta. Por favor, dêem uma atenção especial ao nosso novo chafariz,
que acabou de ser instalado esta manhã. É um chafariz muito bonito e precisa ser
mantido o mais limpo possível. À noite, os corvos se empoleiram na Arvore do
Nunca Mais, que fica nos arredores da cidade, portanto não há problemas aqui.
Alguma pergunta?
— Eu tenho uma pergunta —
disse o homem de calças axadrezadas. Ele ergueu-se da sua cadeira de dobrar e
apontou para os Baudelaire. — Onde eles
vão morar? Pode ser que seja preciso uma cidade para educar uma criança, mas
isto não significa que os nossos lares precisam ser perturbados por crianças
barulhentas, ou será que sim?
— Isso mesmo — concordou a
sra. Morrow. — Sou totalmente a favor de
os órfãos fazerem as nossas tarefas domésticas, mas não quero que eles fiquem
fazendo algazarra na minha casa.
Diversos outros cidadãos se manifestaram.
— Ouçam, ouçam! — disseram
eles, usando uma expressão que aqui significa ‘’Também não quero Violet, Klaus
e Sunny Baudelaire morando comigo!’’.
Um dos Anciãos, que parecia estar entre os mais velhos, ergueu as
duas mãos no ar.
— Por favor — disse ele. — Não há razão para todo esse tumulto. As
crianças vão morar com Hector, o nosso factótum. Ele lhes dará de comer, as
vestirá e cuidará para que façam todas as tarefas, e é responsável por
ensinar-lhes todas as regras de C.S.C., para que não façam mais coisas
horríveis tais como falar enquanto estão sobre a plataforma.
— Graças a Deus — murmurou
o homem de calças axadrezadas.
— Escutem uma coisa,
Baudelaires — disse uma outra mulher do Conselho. Ela estava sentada tão longe
da plataforma que teve de esticar o pescoço para olhar para as crianças, e
parecia que o seu chapéu ia cair da cabeça. — Antes que Hector os leve para a casa dele,
estou certa de que vocês têm as suas próprias preocupações. É uma pena que não
possam falar nada neste momento, do contrário poderiam nos contar quais são
elas. Mas o Sr. Poe nos mandou algum material com relação a esse tal de conde
Olaf.
— Omar — corrigiu a Sra.
Morrow, apontando para a manchete no jornal.
— Silêncio! — disse a
Anciã, ao ser interrompida. — Escutem
uma coisa, Baudelaires, estou certa de que vocês estão preocupados com esse tal
de Olaf, mas, como sua tutora, a cidade os protegerá. É por isso que criamos
recentemente uma nova regra, a Regra nº 19833. Ela reza claramente que nenhum
vilão será permitido dentro dos limites da cidade.
— Ouçam, ouçam! — gritaram
os cidadãos, e o Conselho dos Anciãos balançou a cabeça em aprovação, com os
chapéus de corvo bamboleando.
— Agora, se não há mais
perguntas — concluiu um Ancião, — Hector, por favor, leve-os para a sua casa.
Ainda de olhos fixos no chão, o homem de macacão marchou em
silêncio até a plataforma e levou-os para fora da sala. As crianças se
apressaram para acompanhar o passo do factótum, que não pronunciara uma só
palavra esse tempo todo. Estaria infeliz por ter de cuidar das três crianças?
Estaria zangado com o Conselho dos Anciãos? Seria totalmente incapaz de falar?
Aquilo fez os Baudelaire lembrar de um dos associados do conde Olaf, aquele que
não parecia nem homem nem mulher e que dava a impressão de nunca falar. As crianças
se mantiveram alguns passos atrás de Hector enquanto ele caminhava para sair do
edifício, quase com medo de chegar mais perto de um homem tão esquisito e
calado.
Quando Hector abriu a porta da Prefeitura e saiu com as crianças
para a calçada coberta de corvos, deixou escapar um grande suspiro — o primeiro
som que as crianças ouviram partindo dele. Olhou, então, para cada um dos
Baudelaire e ofereceu-lhes um sorriso gentil.
— Eu nunca fico
verdadeiramente relaxado — disse ele em uma voz agradável, — enquanto não saio
da Prefeitura. O Conselho dos Anciãos faz com que eu me sinta muito desassossegado.
Todas aquelas regras estritas! Me deixam tão desassossegado que jamais falo
durante as reuniões deles. Mas sempre me sinto muito melhor depois que saio do
edifício. Agora, parece que vamos passar um bocado de tempo juntos, portanto
vamos deixar algumas coisas claras. Número um, me chamem de Hector. Número
dois, espero que vocês gostem de comida mexicana, porque essa é a minha
especialidade. E número três, quero que vocês vejam uma coisa maravilhosa, e
está bem na hora. O sol está começando a se pôr.
Era verdade. Os Baudelaire não tinham notado, quando saíram da
Prefeitura, que a luz da tarde já tinha ido embora e que o sol estava começando
a desaparecer no horizonte.
— É lindo — disse Violet
educadamente, muito embora jamais tivesse entendido o porquê de todo aquele
alvoroço em volta de ficar em pé por aí admirando pores-do-sol.
— Psiu — fez Hector. — Quem se importa com o pôr-do-sol? Apenas
fiquem em silêncio por um minuto e observem os corvos. Deve acontecer a
qualquer segundo.
— O que deve acontecer? —
disse Klaus.
— Psiu — fez Hector de
novo, e então começou a acontecer. O Conselho dos Anciãos já tinha contado aos
Baudelaire sobre os hábitos de pouso dos corvos, mas as três crianças não
tinham realmente pensado duas vezes no assunto, uma expressão que aqui
significa’’ refletido por um segundo que fosse sobre como seria quando milhares
de corvos saíssem voando juntos para um novo local’’. Um dos corvos maiores,
pousado em cima da caixa de correio, foi o primeiro a alçar vôo e, com um
ruflar de asas, ele — ou ela; era difícil distinguir de tão longe — começou a
voar em um grande círculo acima das cabeças das crianças. Então um corvo de uma
das janelas da Prefeitura subiu para juntar-se ao primeiro corvo, e depois um
de um arbusto ali perto, depois três da rua, depois centenas de corvos
começaram a subir ao mesmo tempo e a circular no ar, e foi como se uma enorme
sombra se erguesse da cidade. Os Baudelaire podiam finalmente ver como eram
todas as ruas da cidade, e podiam olhar atentamente para cada detalhe dos
edifícios à medida que mais e mais corvos abandonavam os seus poleiros vespertinos.
Mas as crianças mal olharam para a cidade. Em vez disso, olharam diretamente
para cima, para a bela e misteriosa visão de todos aqueles pássaros formando um
enorme círculo no céu.
— Não é maravilhoso? —
exclamou Hector. Seus braços compridos e magrelos estavam esticados, e ele teve
de erguer a voz acima do som das asas farfalhantes. — Não é maravilhoso?
Violet, Klaus e Sunny concordaram com a cabeça e ficaram olhando
para os milhares de corvos circulando acima deles como uma massa de fumaça
palpitante, ou como tinta fresca e preta — como a tinta que estou usando agora
para descrever esses eventos — que, de algum modo, fora parar nos céus. O som
das asas era como um milhão de páginas sendo folheadas, e o vento produzido por
toda aquela agitação soprou em seus rostos sorridentes. Por um momento, com
todo aquele ar passando por eles velozmente, os órfãos Baudelaire sentiram-se
como se também eles pudessem alçar vôo pelo ar, para longe do conde Olaf e de
todos os seus problemas, e juntar-se ao círculo de corvos no céu do anoitecer.
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