Capítulo 2
NA MANHÃ SEGUINTE, Katie foi até a varanda da
sua casa com uma xícara de café, sentindo as tábuas do piso rangerem sob seus
pés, e se apoiou contra o parapeito. Lírios haviam brotado em meio à grama alta
que cobria um canteiro de flores, e ela levantou a xícara, apreciando o aroma
enquanto tomava um gole.
Ela gostava deste lugar. Southport era diferente de
Boston, da Filadélfia e também de Atlantic City, com seus sons incessantes de
trânsito, os odores e as pessoas correndo pelas calçadas. Além disso, era a
primeira vez em sua vida que encontrara um lugar para chamar de seu. A casa não
era grande, mas era sua e discreta, e isso bastava. Era uma de duas estruturas
idênticas localizadas no fim de uma ruela de cascalhos, antigas cabanas usadas
por caçadores com paredes de madeira construídas entre um grupo de pinheiros e
carvalhos, compondo a orla de uma floresta que se estendia até o litoral. A
sala e a cozinha eram pequenas e o quarto não tinha armários embutidos, mas a
casa já era mobiliada, incluindo cadeiras de balanço na varanda, e o aluguel
até que era barato. O lugar não estava caindo aos pedaços, mas estava coberto
pela poeira devido aos vários anos em que permanecera fechado. O proprietário
oferecera para comprar os
produtos de limpeza e
manutenção se Katie se oferecesse para dar um jeito na casa. Desde que se
mudara para lá, Katie passava uma boa parte do seu tempo livre ajoelhada no
chão ou em pé sobre cadeiras fazendo exatamente isso. Ela esfregou os
azulejos e as louças do banheiro até que tudo estivesse brilhando; lavou o teto
com um pano úmido e limpou as janelas com vinagre. Katie passou horas ajoelhada
na cozinha, tentando remover a ferrugem e a sujeira acumuladas no piso de
linóleo. Ela cobriu os buracos na parede com massa corrida e depois lixou tudo
até que a superfície estivesse lisa. Chegou até mesmo a pintar as paredes da
cozinha em um tom alegre de amarelo e os armários com tinta branca brilhante.
Seu quarto agora tinha paredes em tom azul-claro, a sala de estar era bege e,
na semana passada, ela havia colocado uma nova capa sobre o sofá que fez com
que ele parecesse ser novo em folha.
Depois de completar a maior parte do trabalho, Katie
gostava de se sentar na varanda da casa durante as tardes e ler os livros que
pegava emprestado na biblioteca. Além do café, a leitura era o único luxo a que
ela se permitia, já que não tinha televisão, rádio, telefone celular,
microondas, carro, e todos os seus pertences cabiam em uma única mala. Já
contava 27 anos, não tinha amigos e havia deixado de ser uma mulher loira de
cabelos compridos há algum tempo. Ela tinha se mudado para aquele lugar sem
praticamente nada e, alguns meses depois, ainda tinha pouco. Ela guardava
metade das gorjetas que ganhava e todas as noites dobrava o dinheiro e o
punha em uma lata de café, que deixava escondida sob uma tábua do piso perto da
varanda. O dinheiro ficava guardado para emergências e ela preferia passar fome
a ter que usá-lo. Simplesmente saber que a lata estava ali fazia com que
conseguisse respirar um pouco mais aliviada, pois o passado sempre estava à
espreita e poderia retornar a qualquer momento. Um passado que cruzava o mundo
procurando por ela, e ela sabia que sua fúria crescia a cada dia que passava.
— Bom dia. Você deve ser
Katie — chamou uma voz, interrompendo seus pensamentos.
Katie se virou. Na varanda da casa ao lado viu uma mulher
com uma cabeleira castanha despenteada, acenando com a mão. Ela parecia ter
mais de 30 anos e usava uma calça jeans, com uma blusa de botões que tinha as
mangas arregaçadas até os cotovelos. Um par de óculos de sol repousava sobre os
cachos emaranhados na cabeça dela. Nas mãos, ela tinha um pequeno tapete e
parecia estar debatendo consigo mesma se devia estendê-lo para tirar o pó
antes de finalmente deixá-lo de lado e vir até onde Katie estava. Ela andava
com a energia e a tranquilidade de alguém que estava acostumado a se exercitar.
— Irv Benson me disse que seríamos vizinhas.
“O dono das casas”, pensou Katie.
— Eu não sabia que
outra pessoa viria morar aqui.
— Acho que ele também não sabia. Ele quase caiu da
cadeira quando eu lhe disse que ficaria com a casa.
Naquele momento, ela já havia chegado à varanda de
Katie, e estendeu a mão.
— Meus amigos me chamam de Jo.
— É um prazer — disse Katie, cumprimentando-a.
— Dá para acreditar nesse tempo? Está perfeito, não
acha?
— A manhã está uma beleza — concordou Katie, apoiando
o peso do corpo na outra perna. — Quando você se mudou?
— Ontem à tarde. E, por ironia do destino, passei
quase a noite toda espirrando. Acho que Benson juntou toda a poeira que
conseguiu encontrar e a
guardou na minha casa. Você não acreditaria na sujeira que existe lá dentro.
Katie apontou para a porta da sua própria casa com um
movimento da cabeça. — Esta casa estava do mesmo jeito.
— Não parece. Desculpe-me, mas não consegui evitar em
dar uma olhada pelas suas janelas quando eu estava na minha cozinha. A sua casa
é clara e alegre. Por outro lado, o lugar que eu aluguei é uma masmorra
empoeirada e cheia de aranhas.
— O Sr. Benson me deixou pintá-la.
— Tenho certeza de que deixou. Desde que eu faça todo
o serviço, eu aposto que o Sr. Benson me deixará pintar a casa também. O imóvel
dele fica limpo e bonito e eu acabo fazendo todo o trabalho — disse ela, com um
sorriso torto. — Faz tempo que você mora aqui?
Katie cruzou os braços, sentindo o Sol da manhã lhe
aquecer o rosto. — Há quase dois meses.
— Não sei se vou aguentar tanto tempo. Se eu continuar
espirrando como na noite passada, minha cabeça provavelmente vai explodir.
Jo pegou seus óculos escuros e começou a limpar as
lentes com o tecido da camisa. — E o que está achando de Southport? É um mundo
totalmente diferente, não é?
— Como assim?
— Você não parece ser daqui. Imagino que seja de algum
lugar ao norte.
Depois de alguns segundos,
Katie fez que sim com a cabeça.
— Foi o que pensei. Demora um pouco para as pessoas se
acostumarem com Southport. Sempre gostei muito daqui. Tenho um lugar especial
no meu coração para as cidades pequenas.
— Você nasceu aqui?
— Cresci aqui, depois saí e voltei após um bom tempo.
É assim que sempre acontece, não é? Além disso, é difícil achar lugares empoeirados como minha casa em outras cidades.
Katie sorriu e, por um momento, nenhuma das duas disse
qualquer palavra. Jo parecia contente em ficar diante dela, esperando pelo
próximo movimento. Katie tomou um gole do seu café, olhando em direção às
árvores, e se lembrou da boa educação que recebeu.
— Aceita uma xícara de café? Acabei de fazer.
Jo voltou a colocar os óculos de sol sobre a cabeça,
prendendo-os entre os cabelos.
— Sabe, eu estava esperando que você dissesse
isso. Eu adoraria tomar uma xícara de café. Todas as coisas da minha cozinha
ainda estão encaixotadas e meu carro está na oficina. Você faz ideia do quanto
é difícil passar o dia inteiro sem cafeína?
— É, eu imagino como deve ser.
— Bem, para que você saiba, eu sou uma verdadeira
viciada em café. Especialmente em dias como hoje, em que preciso desembalar
minha mobília e minhas coisas. Já mencionei que detesto desencaixotar?
— Acho que não.
— Olhe, provavelmente é a
pior coisa que existe. Tentar descobrir onde colocar cada coisa, bater os
joelhos enquanto anda entre a mobília e as caixas... Mas não se preocupe, eu
não sou o tipo de vizinha que pede ajuda para organizar a casa. Por outro
lado, uma xícara de café...
— Entre — disse Katie, convidando-a. — Só não repare
na mobília. Quase tudo já estava aqui quando eu cheguei.
Depois de atravessar a cozinha, Katie tirou uma xícara
do armário e a encheu até a borda. Ela a entregou para Jo. — Lamento, mas não
tenho chantilly nem açúcar.
— Não é necessário — disse Jo, pegando a xícara. Ela
soprou o café antes de tomar um gole. — Bem... a partir de agora, você é oficialmente minha melhor amiga no mundo inteiro. Este café está delicioso!
— Fico feliz que tenha gostado.
— Benson disse que você trabalha no Ivan’s.
— Sou uma das garçonetes.
— Dave Grandão ainda trabalha lá?
Quando Katie fez que sim com a cabeça, Jo prosseguiu:
— Ele está lá desde quando eu ainda estava no ensino médio. Dave ainda coloca
apelidos carinhosos em todo mundo?
— Sim — disse Katie.
— E Melody? Ela ainda comenta quando acha que algum
dos clientes é bonito?
— Todos os dias.
— E Ricky? Ele ainda passa cantadas nas novas
garçonetes?
Quando Katie assentiu novamente, Jo riu.
— Aquele lugar não muda nunca.
— Você trabalhou lá?
— Não, mas Southport é uma cidade pequena e o Ivan’s é
uma instituição aqui. Além disso, quanto mais tempo você mora neste lugar,
mais compreende que aqui não existem segredos. Todos sabem da vida de todos e
algumas pessoas... como Melody, por exemplo... transformaram a fofoca em uma
forma de arte. Antigamente, isso me deixava louca da vida. É claro, metade das
pessoas que mora aqui é igualzinha a ela. Não há muito para fazer em Southport
além de fofocar sobre a vida dos outros.
— Mas você voltou.
Jo deu de ombros.
— Sim, voltei. O que posso dizer?
Talvez eu goste de gente louca.
Ela tomou outro gole do café e apontou para a janela.
— Sabe, mesmo antes de eu sair da cidade, nem sabia que estas casas existiam.
— O dono delas disse que eram cabanas de caça. Eram
parte de uma fazenda até que ele as transformou em casas de aluguel.
Jo balançou a cabeça.
— Não consigo acreditar que você
se mudou para cá.
— Mas você também se mudou para cá — argumentou Katie.
— Sim, mas a única razão
pela qual considerei este lugar foi porque eu sabia que não seria a única
mulher morando no fim de uma rua de cascalhos, no meio do fim do mundo. Este
lugar é meio isolado.
“É exatamente por isso que eu quis viver aqui”, pensou
Katie consigo mesma.
— Não é tão ruim. Acho que já me acostumei.
— Espero conseguir me acostumar também — disse Jo,
soprando seu café para esfriá-lo. — E então, o que a trouxe a Southport? Tenho
certeza de que não foi a possibilidade de uma carreira de sucesso no Ivan’s.
Você tem família aqui? Pais? Irmãos ou irmãs?
— Não — disse Katie. — Apenas eu mesma.
— Veio por causa de um namorado?
— Não.
— Então você simplesmente... se mudou para cá?
— Sim.
— E por que você quis fazer isso?
Katie não respondeu. Eram as mesmas perguntas que
Ivan, Melody e Ricky haviam feito. Ela sabia que não havia outros motivos ou
intenções por trás daquelas perguntas, apenas uma curiosidade natural. Mesmo
assim, ela nunca soube direito o que responder, além da verdade.
— Eu queria um lugar onde pudesse recomeçar a vida.
Jo tomou outro gole do
café, aparentemente ponderando a resposta dela. Mas, para a surpresa de
Katie, não continuou a fazer perguntas. Simplesmente fez que sim com a
cabeça.
— Isso faz bastante sentido. Às vezes, começar de novo
é exatamente o que uma pessoa precisa. E eu acho que é algo admirável. Muitas
pessoas não têm a coragem necessária para fazer algo assim.
— Você acha?
— Eu tenho certeza — disse ela. — E então, que planos
você tem para hoje? O que vai fazer enquanto eu estiver bufando e reclamando da
vida, desembalando minhas coisas e limpando tudo até que minhas mãos estejam
em carne viva?
— Tenho que trabalhar mais tarde. Mas, fora isso,
poucas coisas. Preciso ir ao supermercado e comprar algumas coisas.
— Você vai ao Fisher’s ou a algum outro lugar na
cidade?
— Acho que só ao Fisher’s.
— Já conversou com o dono do lugar? Aquele homem de
cabelos grisalhos?
Katie fez que sim com a cabeça. — Uma ou duas vezes.
Jo terminou de tomar seu café e colocou a xícara na
pia antes de soltar um suspiro. — Certo, certo — disse ela, sem muito
entusiasmo.
— Chega de procrastinar. Se eu não começar agora,
nunca vou terminar de arrumar minha casa. Deseje-me sorte.
— Boa sorte.
Jo deu um breve aceno.
—
Foi ótimo conhecê-la, Katie.
***
OLHANDO PELA JANELA DA COZINHA, Katie
viu Jo sacudir o tapete que havia deixado de lado anteriormente. Ela parecia
ser bem amis- tosa, mas Katie não sabia se estava preparada para ter uma
vizinha. Embora fosse bom ter alguém com quem pudesse conversar de vez em
quando, ela se acostumara a ficar sozinha.
Mesmo assim, sabia que viver em uma cidade pequena
significava que seu isolamento autoimposto não duraria para sempre. Ela tinha
que sair para trabalhar, fazer compras e andar pela cidade; alguns dos
clientes do restaurante já a reconheciam. Além disso, ela tinha que admitir que
havia gostado de conversar com Jo. Por algum motivo, ela sentia que Jo tinha
algo além daquilo que deixava transparecer. Algo que a tornava digna de
confiança, mesmo que não pudesse explicar o que era. Ela também era uma mulher
solteira e aquilo era definitivamente um ponto positivo a seu favor. Katie não
queria imaginar como teria reagido se um homem tivesse se mudado para a casa ao
lado, e ela se perguntou por que nunca havia considerado aquela
possibilidade.
De volta à pia, lavou as xícaras de café e depois as
colocou no armário. Como aquele ato lhe era muito familiar — guardar duas xícaras após o café, pela manhã —, por um instante se se sentiu dominada pela
vida que deixara para trás. Suas mãos começaram a tremer. Forçando uma contra a
outra, respirou fundo algumas vezes, até conseguir se acalmar. Há dois meses,
não seria capaz de fazer isso. Mesmo há duas semanas, havia pouco o que ela
pudesse fazer para impedir aqueles tremores involuntários. Embora Katie
estivesse feliz em conseguir evitar que os ataques de ansiedade a dominassem, também significava que ela
estava se sentindo confortável aqui, e isso a assustava. Afinal, sentir-se
confortável significava que ela poderia abaixar suas defesas, o que era algo
que ela nunca poderia deixar acontecer.
Mesmo assim, Katie estava satisfeita por ter vindo
parar em Southport. Era uma pequena cidade histórica com alguns milhares de
habitantes, localizada na foz do rio Cape Fear, bem no ponto onde ele se
encontrava com a hidrovia intralitorânea. Era um lugar com calçadas, árvores
frondosas e flores que brotavam do solo arenoso. Musgos pendiam dos galhos e
trepadeiras se enrolavam nos troncos encarquilhados das árvores. Ela havia
observado crianças andando de bicicleta e jogando futebol pelas ruas, e ficou
maravilhada com o número de igrejas que havia na cidade. Praticamente uma em
cada esquina. Grilos e rãs cantavam ao cair da tarde, e mais uma vez ela
pensava em como aquela cidade parecia ser o lugar certo para ela, pois, desde o
começo, ela a fazia sentir-se segura, prometendo-lhe ser um santuário.
Katie
calçou seu único par de tênis, um All Star velho. As gavetas da cômoda estavam
quase vazias e praticamente não havia comida na cozinha, mas, ao sair de casa e
encarar o Sol que brilhava do lado de fora enquanto caminhava para o
supermercado, ela pensou: “Esta é minha casa”. Respirando fundo, sentindo o
perfume dos jacintos e de grama recém-cortada no ar, ela sabia que não era tão
feliz assim há anos.
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