Capítulo 2
A fim de ter uma
idéia mais clara de exatamente como os órfãos Baudelaire se sentiram quando
começaram a penosa jornada escadaria acima até o apartamento de cobertura do Sr.
e da Sra. Squalor, você poderá achar conveniente fechar os olhos ao ler este
capítulo, pois a luz que vinha das velas no chão era tão pálida que parecia que
os olhos estavam fechados mesmo quando olhavam o mais intensamente que podiam.
A cada curva na escada havia uma porta que levava ao apartamento de cada andar,
e um par de portas deslizantes de elevador. Os jovens, naturalmente, não ouviam
som algum vindo de trás das portas deslizantes, já que o elevador tinha sido
desligado, mas atrás das portas dos apartamentos as crianças podiam ouvir os
ruídos produzidos pelas pessoas que moravam no prédio. Quando chegaram ao
sétimo andar, ouviram dois homens rindo como se alguém tivesse contado uma
piada. Quando chegaram ao décimo segundo andar, ouviram o barulho da água
enquanto alguém tomava banho. Quando chegaram ao décimo nono andar, ouviram uma
mulher dizendo ‘’Deixe que comam bolo’’ em uma voz que tinha um sotaque
estranho.
— Me pergunto o que as pessoas vão ouvir
quando passarem pelo apartamento de cobertura — Violet pensou em voz alta, — quando
estivermos morando lá.
— Espero que me ouçam virando páginas — disse
Klaus. — Talvez o Sr. e a Sra. Squalor
tenham alguns livros interessantes para ler.
— Ou, quem sabe, as pessoas me ouvirão usando
uma chave inglesa — disse Violet. — Espero que os Squalor tenham algumas
ferramentas e me deixem usá-las nas minhas invenções.
— Crife! — disse Sunny, passando
cautelosamente de gatinhas por uma das velas no chão.
Violet baixou os
olhos para ela e sorriu.
— Não acho que isto vai ser um problema, Sunny
— disse ela. — Você normalmente acha uma
coisa ou outra para morder. E avise quando quiser que nós comecemos a
carregá-la.
— Eu gostaria que alguém carregasse a mim —
disse Klaus agarrando o corrimão para se apoiar. — Estou ficando cansado.
— Eu também — admitiu Violet. — Daria para imaginar que estas escadas não
nos cansariam, depois que o conde Olaf nos fez correr todas aquelas voltas na
pista quando estava disfarçado de professor de educação física, mas não é este
o caso. Aliás, em que andar estamos?
— Não sei — disse Klaus. — As portas não têm números, e eu perdi a
conta.
— Bem, com a cobertura não há como a gente se
enganar — disse Violet. — Ela fica no
último andar, portanto vamos simplesmente continuar subindo até acabar a escada.
— Eu queria poder inventar um dispositivo que
nos carregasse escada acima — disse Klaus.
Violet sorriu,
muito embora seus irmãos não pudessem ver o sorriso no escuro.
— Esse dispositivo foi inventado muito tempo
atrás — disse ela. — Chama-se elevador. Mas
os elevadores estão out, está lembrado?
Klaus também
sorriu.
— E os pés cansados estão in — disse ele.
— Você se lembra daquela vez — disse Violet, —
em que os nossos pais participaram da Décima Sexta Maratona Anual? Os pés deles
estavam tão cansados que, quando chegaram em casa, papai preparou o jantar
sentado no chão da cozinha, em vez de ficar em pé!
— É claro que me lembro — disse Klaus. — Jantamos só salada, porque eles não conseguiram
ficar em pé para alcançar o fogão.
— Teria sido uma refeição perfeita para a tia
Josephine — disse Violet, lembrando-se de uma entre os seus vários tutores
anteriores. — Ela nunca quis usar o
fogão, pois achava que podia explodir.
— Pomres — disse Sunny, tristonha. Ela queria
dizer algo no gênero de ‘’Como descobrimos no fim, o fogão era o menor dos
problemas da tia Josephine’’.
— É verdade — Violet disse baixinho, quando as
crianças ouviram alguém espirrar atrás de uma porta.
— Eu queria saber como serão os Squalor —
disse Klaus.
— Bem, eles devem ser ricos para morar na
Avenida Sombria — disse Violet.
— Acrofil — disse Sunny, o que queria dizer ‘’E
eles com certeza não têm medo de altura’’.
Klaus sorriu e
baixou os olhos para a irmã.
— Você parece cansada, Sunny — disse ele. — Violet e eu podemos nos revezar carregando
você. Vamos trocar a cada três andares.
Violet concordou
com o plano de Klaus com um movimento da cabeça, e então disse ‘’Sim’’ em voz
alta, pois se deu conta de que o movimento de cabeça era invisível no escuro.
Eles continuaram a subir as escadas, e lamento dizer que os dois Baudelaire
mais velhos se revezaram muitas e muitas vezes carregando Sunny. Se os
Baudelaire estivessem subindo uma escada de tamanho normal eu escreveria ‘’E
eles subiram e subiram’’ mas uma frase mais apropriada começaria com ‘’E eles
subiram, e subiram, e subiram’’ e prosseguiria assim por quarenta e oito ou
oitenta e quatro páginas, já que a escadaria era tão inacreditavelmente longa.
Ocasionalmente, eles passavam pela figura indistinta de alguma outra pessoa
descendo as escadas, mas as crianças estavam cansadas demais até para dizer ‘’Boa
tarde’’ e, mais tarde, ‘’Boa noite’’ — para aqueles outros residentes da
Avenida Sombria 667. Os Baudelaire ficaram com fome. Eles ficaram com o corpo
dolorido. E ficaram muito cansados de olhar para velas, e degraus, e portas,
todos idênticos.
Quando já não
podiam agüentar mais, chegaram a mais uma porta, e degrau, e vela, e cerca de
cinco lances depois disso a escada finalmente acabou e depositou as crianças
exaustas em uma pequena sala com uma última vela no meio do tapete. À luz da
vela, os órfãos Baudelaire puderam ver a porta do seu
novo
lar e, do outro lado, dois pares de portas deslizantes de elevador e, ao lado, botões
com setas.
— Imaginem só — disse Violet, ofegante com a
longa escalada, — se os elevadores estivessem
in, teríamos chegado à cobertura dos Squalor em apenas alguns minutos.
— Bem, talvez em breve eles voltem a ser in —
disse Klaus. — É o que espero. A outra
porta deve dar para o apartamento dos Squalor. Vamos bater. — Eles bateram na
porta e, quase imediatamente, ela se abriu revelando um homem alto, usando um
terno com listras compridas e estreitas de cima até embaixo. Este tipo de terno
é chamado de terno risca-de-giz e normalmente é usado por pessoas que, ou são
astros de cinema, ou são gângsteres.
— Pensei ter ouvido alguém se aproximando da
porta — disse o homem, dando às crianças um sorriso tão grande que dava para
ver até no escuro da sala. — Por favor,
entrem. Meu nome é Jerome Squalor, e estou muito contente por vocês virem morar
conosco.
— Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Squalor —
disse Violet, ainda ofegante, quando ela e seus irmãos entraram em um Vestíbulo
quase tão escuro quanto a escadaria. — Eu
sou Violet Baudelaire, e estes são o meu irmão Klaus e a minha irmã Sunny.
— Deus, você parece estar sem fôlego — disse o
Sr. Squalor. — Por sorte, posso pensar
em duas coisas a fazer a respeito. Uma é que vocês podem parar de me chamar de Sr.
Squalor e começar a me chamar de Jerome. Também vou chamar vocês três só pelo
primeiro nome, e assim todos nós vamos poupar fôlego. A segunda coisa é que vou
preparar para vocês um delicioso martíni geladinho. Venham por aqui.
— Um martíni? — perguntou Klaus. — Não é uma bebida alcoólica?
— Geralmente é — concordou Jerome. — Mas neste momento os martínis alcoólicos estão
out. Os martínis aquosos estão in. Um martíni aquoso é simplesmente água gelada
servida em uma taça sofisticada com uma azeitona dentro, portanto é perfeitamente
lícito servi-lo tanto a crianças como a adultos.
— Nunca tomei um martíni aquoso — disse
Violet, — mas vou provar um.
— Ah! — disse Jerome. — Você é uma aventureira! Gosto disto em uma
pessoa. A sua mãe também era uma aventureira. Você sabe, ela e eu éramos muito
bons amigos tempos atrás. Escalamos o monte Fraught com alguns amigos — Deus, isso
deve ter sido há uns vinte anos. O monte Fraught era conhecido pelos animais perigosos
que viviam lá, mas a sua mãe não tinha medo. Mas então, mergulhando do céu...
— Jerome, quem era na porta? — gritou uma voz
da sala ao lado, e entrou uma mulher alta e esbelta, também usando terno
risca-de-giz. Tinha unhas compridas, pintadas com um esmalte tão brilhante que
cintilavam até naquela luz pálida.
— As crianças Baudelaire, é claro — respondeu
Jerome.
— Mas elas não vinham hoje! — exclamou a
mulher.
— É claro que vinham — disse Jerome. — Há dias e dias que estou esperando por isso!
Vocês sabem — disse ele voltando-se da mulher para os Baudelaire, — eu queria adotar vocês desde o momento em
que ouvi contar do incêndio. Mas, infelizmente, foi impossível.
— Os órfãos estavam out naquela época —
explicou a mulher. — Agora, eles estão in.
— Minha mulher está sempre atenta ao que é in
e ao que é out — disse Jerome. — Eu não
ligo muito para isso, mas Esmé pensa de outro jeito. Foi ela quem insistiu em mandar
remover o elevador. Esmé, eu estava indo preparar um martíni aquoso para eles.
Você também quer?
— Oh, sim! — exclamou Esmé. — Os martínis aquosos estão in. — Ela aproximou-se rapidamente das crianças e
inspecionou-as. — Eu sou Esmé Gigi
Geniveve Squalor, a sexta consultora financeira mais importante da cidade —
anunciou ela, pomposa. — Apesar de eu
ser inacreditavelmente rica, vocês podem me chamar de Esmé. Vou aprender os
nomes de vocês depois. Estou muito feliz por estarem aqui, porque órfãos estão
in, e quando todos os meus amigos ouvirem que eu tenho três órfãos vivos de
verdade, vão ficar doentes de inveja, não vão, Jerome?
— Espero que não — disse Jerome, levando as
crianças por um corredor comprido e escuro até uma sala enorme e escura onde
havia diversos divas, cadeiras e mesas sofisticados. Na outra ponta da sala
havia uma série de janelas, todas com as cortinas fechadas para não deixar
entrar nenhuma luz. — Não gosto de ouvir
dizer que alguém vai ficar doente. Bem, sentem-se, crianças, vou contar a vocês
um pouco sobre o seu novo lar.
Os Baudelaire
sentaram-se em três cadeiras enormes, gratos pela oportunidade de descansar os
pés. Jerome atravessou a sala até uma das mesas, onde havia uma jarra de água
ao lado de uma tigela cheia de azeitonas e algumas taças sofisticadas, e
preparou rapidamente os martínis aquosos. — Aqui está — disse ele entregando uma taça
sofisticada para Esmé e uma para cada criança. — Vejamos. Caso vocês se percam, lembrem-se de
que o seu novo endereço é Avenida Sombria 667, apartamento de cobertura.
— Ora, não fique contando coisas bobas como
essa para elas — disse Esmé, agitando a mão de unhas compridas na frente do
rosto como se estivesse sendo atacada por uma mariposa. — Crianças, eis aqui algumas coisas que vocês precisam
saber. Escuro é in. Luz é out. Escadas são in. Elevadores são out. Ternos
risca-de-giz são in. Essas roupas horríveis que vocês estão usando são out.
— O que Esmé quer dizer — Jerome apressou-se
em consertar, — é que nós queremos que vocês se sintam o mais confortáveis
possível aqui.
Violet bebeu um
golinho do seu martíni aquoso. Não ficou surpresa ao descobrir que tinha gosto
de água pura, com um leve toque de azeitona. Não gostou muito, mas aquilo
aliviou a sede causada pela longa subida pela escadaria.
— Muito gentil da sua parte — disse ela.
— O Sr. Poe me contou sobre alguns dos seus
antigos tutores — disse Jerome balançando a cabeça. — Me sinto horrivelmente mal por vocês terem
tido de passar por experiências tão terríveis, quando podíamos ter cuidado de
vocês o tempo todo.
— Era inevitável — disse Esmé. — Quando alguma coisa está out, ela está out,
e órfãos estavam out.
— Eu também ouvi tudo sobre esse tal de conde
Olaf — disse Jerome. — Falei para o porteiro
não deixar entrar neste prédio ninguém que se parecesse, mesmo vagamente, com
aquele homem desprezível, portanto vocês estarão seguros.
— Isto é um alívio — disse Klaus.
— De qualquer modo, supõe-se que aquele homem
horroroso esteja no alto de alguma montanha — disse Esmé. — Lembra-se, Jerome? Aquele banqueiro sem estilo
disse que estava indo de helicóptero procurar os tais gêmeos que ele raptou.
— Na verdade — disse Violet, — são trigêmeos. Os Quagmire são bons amigos nossos.
— Não diga! — disse Jerome. — Então vocês devem ter ficado terrivelmente preocupados!
— Bem, se os encontrarem logo — disse Esmé, — talvez nós também os adotemos. Cinco órfãos!
Ficarei sendo a pessoa mais in da cidade!
— Certamente temos espaço para eles — disse
Jerome. — Este é um apartamento de setenta
e um quartos, crianças, portanto vocês poderão escolher os de vocês. Klaus, Poe
mencionou alguma coisa sobre o seu interesse por inventar coisas, está correto?
— A inventora é a minha irmã — respondeu
Klaus. — Eu mesmo, sou mais um pesquisador.
— Muito bem então — disse Jerome. — Você pode ficar com o quarto ao lado da biblioteca,
e Violet pode ficar com o que tem uma grande bancada de madeira, perfeita para
guardar ferramentas. Sunny pode ficar no quarto entre vocês dois. Que tal lhes
parece?
Aquilo lhes
parecia absolutamente esplêndido, é claro, mas os órfãos Baudelaire nem tiveram
oportunidade de dizer isso, pois um telefone tocou bem naquele instante.
— Eu atendo! Eu atendo! — gritou Esmé, e
correu para o outro lado da sala, para atender. — Residência Squalor — disse ela ao fone, e
então aguardou enquanto a pessoa falava do outro lado. — Sim, é a Sra. Squalor. Sim. Sim. Sim? Oh,
obrigada, obrigada, obrigada! — Ela
desligou e voltou-se para as crianças. —
Adivinhem o quê? — perguntou ela.
— Tenho novidades fantásticas sobre o assunto
de que estávamos falando!
— Os Quagmire foram encontrados? — perguntou
Klaus, esperançoso.
— Quem? — perguntou Esmé. — Ah, eles. Não, eles não foram encontrados.
Não sejam tolos. Jerome, crianças, escutem: o escuro está out! A luz normal
está in!
— Bem, não tenho tanta certeza de que posso
chamar isso de novidades fantásticas — disse Jerome, — mas será um alívio ter um pouco de luz por
aqui. Vamos, jovens Baudelaire, ajudem-me a abrir as cortinas e vocês poderão
dar uma olhada na nossa vista. Dá para avistar um bocado aqui de cima.
— Vou acender todas as lâmpadas da cobertura —
disse Esmé ofegante de excitação. — Depressa,
antes que alguém veja que este apartamento ainda está escuro! — Enquanto Esmé disparava para fora da sala,
Jerome deu uma pequena encolhida de ombros para os três irmãos e atravessou a
sala até as janelas. Os Baudelaire os seguiram e ajudaram a abrir as pesadas
cortinas que cobriam as janelas. Imediatamente a luz do sol invadiu a sala,
fazendo-os apertar os olhos até que se ajustassem à luz natural. Se os
Baudelaire tivessem olhado em volta agora que a sala estava apropriadamente
iluminada, teriam visto o quanto os móveis todos eram sofisticados. Os divas
tinham almofadas bordadas com prata. As cadeiras eram todas pintadas com tinta
dourada. E as mesas eram feitas de madeira extraída de algumas das árvores mais
caras do mundo. Mas os órfãos Baudelaire não estavam olhando para a sala, por
luxuosa que fosse. Estavam olhando pela janela, para a cidade lá embaixo.
— Uma vista espetacular, vocês não acham? —
perguntou-lhes Jerome, e eles concordaram com a cabeça. Era como se estivessem
olhando para uma cidade muito, muito pequenina, com caixas de fósforos em vez
de edifícios e marcadores de livros em vez de ruas. Podiam ver minúsculas
formas coloridas que pareciam uma porção de insetos, porém, na realidade, eram
todos os carros e carruagens da cidade, circulando pelos marcadores de livros
até chegar às caixas de fósforos onde moravam e trabalhavam os pontinhos que
eram as pessoas. Os Baudelaire podiam ver os arredores onde tinham morado com
os pais, e as partes da cidade onde moravam seus amigos; e em uma pálida e
muito distante faixa azul, a praia onde tinham recebido a terrível notícia que
dera início a todas as suas desventuras.
— Eu sabia que vocês iam gostar — disse
Jerome. — Sai muito caro morar em um apartamento
de cobertura, mas acho que vale a pena para ter uma vista como esta. Olhe,
aquelas caixinhas minúsculas lá adiante são fábricas de suco de laranja. Aquele
prédio meio arroxeado junto ao parque é o meu restaurante favorito. Ah, e olhem
direto para baixo — já estão cortando aquelas árvores horrorosas que deixavam a
nossa rua tão escura.
— É claro que estão cortando — disse Esmé,
voltando apressada para a sala e soprando algumas velas que tinham sido postas
sobre a lareira. — A luz normal está in,
tão in quanto martínis aquosos, risca-de-giz e órfãos.
Violet, Klaus e
Sunny olharam direto para baixo e viram que Jerome tinha razão. Aquelas árvores
estranhas que bloqueavam a luz do sol na Avenida Sombria, e que vistas de
tamanha altura não pareciam mais altas que clipes de papel, estavam sendo
derrubadas por pontinhos-jardineiros. Muito embora as árvores tivessem feito a
rua parecer tão escura, era uma pena derrubá-las todas, deixando apenas os
tocos expostos que, da janela da cobertura, pareciam percevejos cravados no
chão. Os três irmãos se entreolharam, depois olharam de novo para a Avenida
Sombria. Aquelas árvores não eram mais in, então os jardineiros estavam se
livrando delas. Os Baudelaire não queriam nem pensar no que aconteceria quando
os órfãos também não estivessem mais in.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)