Capítulo 3
A manhã é um momento importante do dia, porque muitas vezes, logo
depois de acordar, já dá para adivinhar que tipo de dia você vai ter. Por
exemplo, se você acorda ouvindo o pipilar de pássaros, esparramado sobre uma
enorme cama com dossel, com um mordomo que traz, numa bandeja de prata, pãezinhos
recém-tirados do forno e um suco de laranja feito na hora, já dá para saber que
o seu dia será esplêndido. Se você acorda ao som de sinos de igreja, acomodado
numa cama razoavelmente grande, com um mordomo que lhe traz uma bandeja com chá
quente e torradas, dá para saber que o seu dia vai ser legal. E se você acorda
com alguém batendo duas panelas de ferro uma contra a outra, e você está
deitado de mau jeito num beliche estreito, com um capataz asqueroso na soleira
da porta e que não lhe traz nenhum tipo de café da manhã, dá para saber que o
seu dia será horrendo.
Obviamente, a você e a mim não causará grande surpresa saber que o
primeiro dia dos órfãos Baudelaire na Serraria Alto-Astral foi horrendo. E os
Baudelaire certamente não esperavam pássaros pipilantes ou um mordomo, depois
da recepção tão desanimadora do dia anterior. Mas nunca, nem em seus piores pesadelos,
esperavam ser acordados com aquela cacofonia — palavra que aqui significa ‘’o
som de duas panelas de ferro sendo batidas uma contra a outra por um capataz
asqueroso na soleira da porta e que não lhe traz nenhum tipo de café da manhã’’.
— Levantem-se, ô gente mais
preguiçosa e fedorenta! — gritou o capataz numa voz que soava esquisita. Ele
falava como se tapasse a boca com as mãos. — É hora de trabalhar, todo mundo! Uma nova
carga de troncos de árvore está lá fora só esperando virar tábua!
Os meninos sentaram-se e esfregaram as pálpebras. Em volta deles,
os empregados da Serraria Alto-Astral espreguiçavam-se e tapavam os ouvidos por
causa do barulho das panelas. Phil, que já se levantara e arrumava cuidadosamente
sua cama, dirigiu aos Baudelaire um sorriso cansado.
— Bom dia, jovens
Baudelaire — disse Phil. — E bom dia,
capataz Flacutono. Permita-me que lhe apresente três novíssimos empregados?
Capataz Flacutono, estes são Violet, Klaus e Sunny Baudelaire.
— Sabia que teríamos alguns
novos trabalhadores — disse o capataz, atirando as panelas ao chão com
estrondo, — mas ninguém me disse que
seriam anões.
— Não somos anões — explicou
Violet. — Somos crianças.
— Crianças, anões, o que me
importa? — disse o capataz Flacutono com sua voz abafada, caminhando em direção
ao beliche dos órfãos. — O que me
importa é que vocês saiam já da cama e sigam direto para a serraria.
Os Baudelaire pularam rápido do beliche, não queriam contrariar um
homem que batia panelas em vez de dizer ‘’Bom dia’’. Porém, depois de dar uma
boa olhada no capataz Flacutono, só tinham um desejo: pular de volta para o
beliche e puxar as cobertas até cobrir a cabeça.
Garanto que vocês já ouviram dizer que a aparência não tem tanta
importância, que é o interior que conta. Isso, deixem-me dizer, é o maior
absurdo, porque se fosse verdade as pessoas com beleza interior não precisariam
nunca pentear os cabelos ou tomar banho, e o mundo teria um fedor pior do que o
que já tem. A aparência é da maior importância, porque pode-se saber muito só
de olhar como as pessoas se apresentam. E foi a maneira como o capataz
Flacutono se apresentou que fez com que os órfãos quisessem pular de volta para
o beliche. Ele vestia um macacão todo manchado, o que não pode causar uma boa
impressão, e em seus sapatos havia um adesivo no lugar de cadarços. Mas o mais
desagradável de tudo era a cabeça do capataz. Flacutono era careca, mais careca
do que um ovo, só que, em vez de assumir a careca como fazem as pessoas de bom
senso, comprara uma peruca branca cacheada, que parecia uma penca de grandes
vermes mortos a cobrir-lhe toda a cabeça. Alguns dos pêlos-vermes ficavam
levantados, outros curvavam-se para o lado, outros escorriam pela testa e pelas
orelhas, e uns poucos esticavam-se como se quisessem fugir do couro cabeludo do
capataz Flacutono. Abaixo da peruca, havia um par de olhos escuros, pequenos e
redondos, que cintilavam para os órfãos de um modo muito desagradável.
Quanto ao restante do rosto, era impossível dizer como era, porque
estava coberto por uma máscara, dessas que os médicos usam nos hospitais. O
nariz do capataz Flacutono sobressaía por baixo da máscara, como um jacaré se escondendo
na lama, e quando o capataz falava os Baudelaire podiam ver sua boca abrir e
fechar por trás do pano. O uso dessas máscaras em hospitais é perfeitamente
apropriado, está claro, para impedir a disseminação de germes, entretanto não
havia qualquer justificativa para aquela ali. O único motivo que o capataz
Flacutono poderia ter para usar uma máscara cirúrgica seria assustar as pessoas;
e, ao encarar os órfãos Baudelaire, conseguiu mesmo deixá-los bastante assustados.
— A primeira coisa que vocês
têm a fazer, Baldehilários — disse o capataz Flacutono, — é apanhar as minhas panelas no chão. E nunca
mais me dar motivo para deixá-las cair.
— Mas elas não caíram por
nossa culpa — disse Klaus.
— Bram! — acrescentou Sunny
, o que provavelmente significava: ‘’nosso
sobrenome é Baudelaire’’.
— Se não apanharem as
panelas agora mesmo — disse o capataz Flacutono, — vocês não terão chicletes no almoço.
Os órfãos Baudelaire não ligavam muito para chiclete,
especialmente chiclete de hortelã, a que eram alérgicos, mas correram até as
panelas. Violet apanhou uma e Sunny a outra, enquanto Klaus se apressava a
fazer as camas.
— Me dêem as panelas! — foi
dizendo impaciente o capataz Flacutono, e tirou as panelas das mãos das
garotas. — Vamos, operários, já perdemos
tempo demais. Às serras! As toras de madeira nos esperam!
— Detesto trabalhar com as
toras — resmungou um dos empregados, mas todos seguiram o capataz Flacutono.
Saíram do dormitório e atravessaram o pátio de chão de terra em
direção à serraria, que era uma construção cinzenta e sem atrativos, com muitas
chaminés que faziam o telhado parecer o dorso de um porco-espinho. As três
crianças se entreolharam preocupadas. Os órfãos nunca haviam trabalhado, exceto
num dia de verão, no tempo em que seus pais ainda estavam vivos, quando os
Baudelaire abriram uma barraca para vender limonada na frente de casa; os três
estavam nervosos. Seguiram o capataz Flacutono para dentro da serraria e viram
que tudo se resumia a um único espaço imenso, tomado por máquinas enormes.
Violet olhou para uma máquina de aço brilhante com uma pinça, também de aço,
que se assemelhava à pinça de um caranguejo, e tentou imaginar como funcionava
aquela invenção.
Klaus examinou uma máquina que parecia uma grande gaiola, com um
enorme rolo de corda preso em seu interior, e tentou lembrar-se do que já lera
sobre serrarias. Sunny olhou para uma máquina enferrujada de aparência
obsoleta, aparelhada com uma serra circular cujos dentes eram de causar medo e
que a fizeram pensar se seriam mais afiados do que os seus próprios dentes. E
os três Baudelaire tiveram a atenção despertada para uma máquina, coberta de minúsculas
chaminés, que sustentava uma pedra grande e plana no ar; tentavam imaginar por
que ela estava ali.
Os Baudelaire, entretanto, dispuseram apenas de uns poucos
segundos para alimentar sua curiosidade sobre aquelas máquinas, até o capataz
Flacutono começar a bater as duas panelas uma na outra e vociferar suas ordens.
— As toras! — gritou ele.
— Liguem a pinça mecânica e
comecem o processamento das toras! — Phil correu para a pinça mecânica e apertou
um botão cor de laranja no aparelho. Emitindo um silvo áspero, os braços da pinça
se abriram e se estenderam em direção à parede mais distante da serraria. Os órfãos
estavam tomados de uma curiosidade tão grande pelas máquinas que nem sequer
tinham reparado na pilha imensa de árvores estocadas, com folhas, raízes e tudo
o mais, ao longo de uma das paredes da serraria; era como se um gigante
houvesse simplesmente arrancado do solo uma pequena floresta e depois a jogado
dentro daquele espaço. Os braços da pinça agarraram a árvore que estava em cima
da pilha e começaram a pousá-la no chão da serraria, enquanto o capataz
Flacutono vibrava estrondosamente suas panelas aos gritos de: ‘’Os
decorticadores! Os decorticadores!’’.
Uma funcionária andou até a parede mais distante da serraria, onde
havia uma coleção de caixinhas verdes e uma pilha de chapas retangulares de
ferro, finas e compridas como uma enguia adulta. Sem dizer uma palavra, apanhou
a pilha de chapas e começou a distribuí-las aos operários.
— Peguem um decorticador — sussurrou para os órfãos. — Um para cada um.
As crianças pegaram seu decorticador e ficaram lá plantadas,
aguardando confusas e com fome, enquanto a primeira árvore tocava o chão. O
capataz Flacutono voltou a bater as duas panelas uma na outra, e os operários
juntaram-se em torno da árvore e começaram a raspar a sua casca com os
decorticadores, aparando o tronco como você ou eu descascamos legumes.
— Vocês também, anões! — gritou
o capataz, e as crianças se aninharam entre os adultos para participar da
raspagem. Phil descrevera os rigores do trabalho numa serraria, e os irmãos
puderam imaginar que não era fácil. No entanto, como vocês estão lembrados,
Phil era um otimista, e o trabalho demonstrou ser muito pior do que o anunciado.
Em primeiro lugar, os decorticadores tinham o tamanho apropriado para
adultos, de modo que para as crianças foi difícil manejá-los. Sunny não conseguiu
sequer levantar seu decorticador, e acabou substituindo-o por seus próprios
dentes, mas Violet e Klaus, que tinham dentes apenas medianamente afiados, se
viram forçados a batalhar a duras penas com os decorticadores. Por mais que se
esforçassem, os três órfãos não arrancaram mais do que uns poucos pedaços da
casca. Isso sem falar que, como não haviam feito nenhuma refeição matinal, com
o passar das horas a fome era tanta que mesmo os dois mais velhos já não
conseguiam segurar o decorticador, muito menos raspar a árvore com ele. E tem
mais: assim que uma árvore ficava enfim sem a casca, na mesma hora a pinça mecânica
depositava outra sobre o chão e eles tinham que começar tudo de novo, o que era
de uma chatice extrema. Pior de tudo, entretanto, era o barulho simplesmente
ensurdecedor na Serraria Alto-Astral. Havia o som desagradável e prolongado dos
decorticadores vencendo a resistência da casca.
Havia o silvo áspero dos braços da pinça mecânica, que se abriam
para pegar e deslocar as toras. E ainda a barulheira horrenda que o capataz
Flacutono fazia batendo suas panelas uma contra a outra. Os órfãos foram
ficando exaustos e frustrados. O estômago doía, os ouvidos zumbiam. E o tédio
atingia proporções inacreditáveis.
Por fim, os operários concluíram sua décima quarta tora. O capataz
Flacutono bateu as panelas e gritou:
— Parada para o almoço! —
Os funcionários cessaram a raspagem, cessou o silvo da pinça mecânica,
e todos se sentaram, exaustos, no chão. O capataz Flacutono jogou por terra as
suas panelas, andou até as caixinhas verdes e apanhou uma. Abriu-a com um rasgo
e começou a jogar uns quadradinhos cor-de-rosa para os operários, um para cada
um.
— Vocês têm cinco minutos
para almoçar! — gritou, lançando três quadradinhos para as crianças. Deu para
os Baudelaire perceberem a marca úmida que apareceu na máscara cirúrgica do capataz,
formada pela saliva que saltava de sua boca ao dar as ordens. — Só cinco minutos! — Da marca úmida sobre a máscara o olhar de
Violet passou para o quadrado cor-de-rosa que tinha em sua mão, e por um
instante não conseguiu acreditar no que estava vendo. — É chiclete! — disse. — Isto é um chiclete! — Klaus olhou para o
quadrado de sua irmã, depois para o seu. — Chiclete não é almoço! — exclamou. — Chiclete não é nem petisco!
— Tanco! — gritou Sunny ,
querendo dizer algo como: ‘’E chiclete não é para se dar aos bebês, que podem
engasgar e até ficar sufocados com ele!’’.
— É melhor vocês comerem o
chiclete — disse Phil saindo do seu lugar para sentar-se junto das crianças. — Não alimenta grande coisa, mas é tudo o que
eles deixarão vocês comerem até a hora do jantar.
— Bem, talvez a gente possa
levantar-se um pouco mais cedo amanhã — disse Violet, — e preparar uns sanduíches.
— Não temos nenhum
ingrediente para preparar sanduíches — disse Phil. — Temos só uma refeição à noite e em geral é
carne com legumes cozidos.
— Bem, talvez a gente possa
ir à cidade e comprar alguns ingredientes — disse Klaus.
— Bem que eu gostaria — disse
Phil, — mas não temos nenhum dinheiro.
— E o salário de vocês? — perguntou
Violet. — Vocês podem gastar uma parte
do dinheiro que ganham com ingredientes para sanduíches.
Phil sorriu tristemente para as crianças e enfiou a mão no bolso.
— Na Serraria Alto-Astral —
disse, tirando do bolso uma porção de pedacinhos de papel, — eles não nos pagam em dinheiro. Pagam em tíquetes.
Vejam, isso foi o que todos nós ganhamos ontem: vinte por cento de desconto num
xampu no Salão de Cabeleireiros do Sam. Na véspera havíamos ganhado esse tíquete
que vale um chá gelado e na semana passada recebemos este aqui: 'Compre dois
banjos e ganhe um de graça. O problema é que não podemos comprar dois banjos
porque tudo o que temos são esses tíquetes.
— Nelnu! — gritou Sunny ,
mas o capataz Flacutono começou a bater as panelas antes que alguém pudesse
compreender o que ela quis dizer.
— Terminou o almoço! — gritou
ele. — Voltem todos ao trabalho! Todos
menos vocês, Baudelarápios! O patrão quer ver vocês três no escritório dele, imediatamente!
— Os três irmãos pousaram seus
decorticadores no chão e se entreolharam. Por causa do trabalho tão pesado eles
quase haviam se esquecido de ir conhecer o novo tutor, aquele do nome difícil
de pronunciar. Que espécie de homem seria capaz de forçar crianças pequenas a
trabalhar numa serraria? Que espécie de homem seria capaz de contratar um
monstro como o capataz Flacutono? Que espécie de homem seria capaz de pagar
seus empregados com tíquetes, e de alimentá-los só com chicletes?
O capataz Flacutono voltou a bater as panelas e apontou para a
porta; as crianças passaram do recinto barulhento ao silencioso pátio. Klaus
tirou do bolso o mapa e indicou às irmãs o caminho para o escritório. A cada
passo, as crianças levantavam pequenas nuvens de poeira em sintonia com as
nuvens de ansiedade que pairavam sobre elas. Seus corpos doíam com o esforço do
trabalho matinal, e havia uma sensação de mal-estar nos seus estômagos vazios.
Como já dera para pressentir logo no início da manhã, as crianças estavam tendo
um mau dia.
Mas, à medida que se aproximavam do escritório, crescia nelas a
suspeita de que as coisas ainda podiam piorar.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)