Capítulo 30
ERA O MÊS DE AGOSTO e Boston estava fervendo.
Kevin se lembrava vagamente de ver a ambulância do
lado de fora da casa dos Feldmans, mas não pensou muito no caso. Os Feldmans
eram maus vizinhos e ele não se importava com eles. Somente agora, quando
percebeu os carros estacionados dos dois lados da rua, foi que ele se dera
conta de que Gladys Feldman havia morrido. Kevin havia sido suspenso por duas
semanas e não gostava de ver carros estacionados em frente à sua casa, mas as
pessoas vieram à cidade para o funeral e ele não tinha a menor energia para
pedir a eles que tirassem os carros dali.
Ele não tomava banho com tanta frequência desde que
fora suspenso e estava sentado na varanda, bebendo vodca direto na garrafa,
observando as pessoas entrando e saindo da casa dos Feldmans. Sabia que o
funeral seria realizado à tarde e as pessoas estavam reunidas naquela casa
porque iriam juntas à cerimônia, em grupo. Sempre que havia um funeral as
pessoas se juntavam, como um grupo de gansos.
Não havia conversado com
Bill, Coffey, Ramirez, Todd, Amber, nem mesmo com seus pais. Como ele não sentia
fome, não havia caixas de pizza no chão da sala de estar nem sobras de comida
chinesa na geladeira. A vodca era suficiente e ele bebeu até que a casa dos
Feldmans se transformou em um borrão. Do outro lado da rua, viu uma mulher sair
da casa para fumar um cigarro. Ela usava um vestido preto e Kevin se perguntou
se ela sabia que os Feldmans gritavam com as crianças da vizinhança.
Observou a mulher porque não queria assistir ao canal
sobre casa e jardim na televisão. Erin costumava assistir aos programas daquele
canal, mas ela tinha fugido para a Filadélfia, passou a se chamar Érica e
depois desapareceu. Ele havia sido suspenso do seu emprego, mas, antes disso,
era um bom investigador.
A mulher de preto terminou de fumar seu cigarro e o
soltou na grama, pisando nele a seguir. Deu uma olhada na rua e o avistou,
sentado em sua varanda. Hesitou antes de atravessar a rua até onde ele estava.
Ele não a conhecia. Nunca a vira antes.
Kevin não sabia o que ela queria, mas largou a garrafa
de vodca e desceu os degraus da varanda. Ela parou na calçada em frente.
— Você é Kevin Tierney? — perguntou ela.
— Sim — disse ele, e sua voz parecia estranha. Era a
primeira vez em vários dias que ele falava.
— Meu nome é Karen Feldman — disse ela. — Meus pais,
Larry e Gladys Feldman, moram na casa do outro lado da rua.
Ela parou por um momento,
mas Kevin não disse nada. Ela prosseguiu.
— Eu estava imaginando se Erin tem
planos de vir ao funeral.
— Erin? — disse ele, finalmente.
— Sim. Meus pais adoravam quando ela vinha visitá-los.
Ela costumava lhes fazer tortas e às vezes ajudava-os a limpar a casa, especialmente depois que minha mãe começou a ficar doente. Câncer de pulmão. Foi
horrível — disse ela, balançando a cabeça. — Erin está em casa? Eu esperava
poder encontrá-la. O funeral começa às 2 horas.
— Não, ela não está aqui. Foi a Manchester para ajudar
uma amiga que está doente.
— Oh... Bem, obrigada. É uma pena. Desculpe-me por
incomodar.
A mente de Kevin começou a clarear e ele percebeu que
Karen estava prestes a voltar para a casa dos pais.
— Lamento por sua perda.
Contei a Erin sobre o que aconteceu e ela ficou triste por não poder estar
aqui. Vocês receberam as flores?
— Oh, provavelmente sim. Não verifiquei. A funerária
está cheia de flores.
— Não há problema. Gostaria que Erin pudesse estar
aqui — respondeu Kevin.
— Eu também. Sempre quis conhecê-la. Minha mãe dizia
que Erin fazia com que ela se lembrasse de Katie.
— Katie?
— Minha irmã mais nova.
Ela faleceu há seis anos.
— Lamento ouvir isso.
— Eu também. Todos nós sentimos a falta dela,
especialmente minha mãe. É por isso que ela se dava tão bem com Erin. Elas até
mesmo se pareciam fisicamente. Tinham a mesma idade e outras características.
Se Karen percebeu a expressão vazia de Kevin, não deu
qualquer sinal.
— Minha mãe costumava mostrar a Erin o álbum de recortes que
fez com as lembranças de Katie... Ela sempre foi muito paciente com minha mãe.
Erin é uma mulher doce e meiga. Você é um homem de sorte.
Kevin se forçou a sorrir.
— Sim, eu sei.
***
ELE ERA UM BOM INVESTIGADOR, mas,
na verdade, às vezes as res- postas apareciam num golpe de sorte. Novas
evidências surgiam, uma testemunha desconhecida se apresentava, uma câmera de
vigilância na rua captava uma placa de carro. Neste caso, ele havia con-
versado com uma mulher vestida de preto chamada Karen Feldman, que atravessou a
rua em uma manhã em que ele estava bebendo e lhe falou sobre sua irmã que havia
falecido.
Embora sua cabeça ainda doesse, ele despejou o resto
da garrafa de vodca pelo ralo da pia e pensou a respeito de Erin e dos
Feldmans. Erin os conhecia e visitava, embora nunca tivesse mencionado que ia
até a casa deles. Kevin lhe telefonava e vinha até a casa em momentos
inesperados e ela sempre estava em casa. De algum modo ele nunca descobriu. Ela
nunca lhe contou nada e, quando ele reclamava sobre os Feldmans serem
maus vizinhos, Erin nunca disse qualquer palavra.
Erin tinha um segredo.
Sua mente estava mais limpa do que esteve nos últimos
tempos. Entrou no chuveiro, tomou banho e vestiu um terno preto. Preparou um
sanduíche de presunto e peito de peru, temperou com mostarda Dijon e o comeu.
Em seguida, fez outro e o comeu também. A rua estava cheia de carros e ele
observou o movimento das pessoas que entravam e saíam da casa. Karen saiu da
casa e fumou outro cigarro. À medida que esperava, enfiou um pequeno bloco de
notas e uma caneta em seu bolso.
À tarde, as pessoas começaram a entrar em seus carros.
Ele ouviu os motores sendo ligados e, um a um, os carros começaram a se
afastar. Já passava da uma hora da tarde e eles estavam indo para a cerimônia.
Levou quinze minutos para que todos saíssem quando ele viu Larry Feldman ir até
o carro, amparado por Karen. Ela se sentou no banco do motorista e saiu
dirigindo pela rua, até que finalmente não havia mais nenhum carro na rua ou em
frente à casa.
Ele esperou outros dez minutos, certificando-se de que
todos haviam saído antes de finalmente sair pela porta da frente. Atravessou
o gramado e se encaminhou para a casa dos Feldmans. Não se apressou nem tentou
esconder suas ações. Percebeu que vários vizinhos haviam ido ao funeral e
aqueles que não foram iriam se lembrar apenas de mais uma pessoa que usava um
terno preto. Foi até a porta da frente e constatou que ela estava trancada, mas
muitas pessoas haviam estado na casa. Deu a volta e foi até o quintal. Lá,
encontrou outra porta, destrancada. Entrou na casa.
Tudo estava em silêncio.
Ele parou, tentando identificar o som de vozes ou passos, mas não ouviu nada.
Havia copos de plástico sobre o balcão e pratos de comida na mesa. Caminhou
pela casa. Tinha tempo, mas como não sabia quanto, decidiu começar pela sala de
estar. Abriu e fechou portas de armários, deixando tudo do jeito que estava. Procurou na cozinha e no quarto e finalmente foi até o escritório.
Havia livros nas estantes, uma poltrona e um televisor. Em um dos cantos, viu
um pequeno armário de arquivos.
Kevin foi até o arquivo e o abriu. Rapidamente,
examinou as etiquetas de cada pasta. Encontrou uma com a etiqueta “Katie” e a
retirou. Abriu-a e examinou o que havia dentro. Havia um artigo de jornal — ela
havia se afogado depois de caminhar sobre o gelo quebradiço em uma lagoa que
ficava nas proximidades — e fotos que foram tiradas nos tempos de escola. Na
sua foto de formatura, ela se parecia bastante com Erin. No fundo da pasta,
encontrou um envelope. Abriu-o e viu que ele continha um velho boletim escolar.
Na frente do envelope havia um número de seguro social e Kevin copiou o
número no bloco de notas que tinha em seu bolso. Não encontrou o cartão do
seguro, mas tinha o número. A certidão de nascimento era uma cópia, embora
estivesse marcada e desgastada, como se alguém a tivesse amassado e depois
tentado alisá-la novamente.
Como já tinha o que precisava, saiu do lugar. Assim
que chegou à sua casa, ligou para o policial da outra delegacia, aquele que
dormia com a babá de seus filhos. No dia seguinte, recebeu a ligação com uma
resposta.
Katie Feldman recentemente havia tirado uma carteira
de motorista e nos registros constava um endereço em Southport, na Carolina
do Norte.
Kevin desligou o telefone
sem outra palavra em mente, sabia exatamente o que havia encontrado.
Erin.
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