Capítulo 31

RESTOS DE UMA TEMPESTADE tropical ainda castigavam Southport, com a chuva caindo durante a maior parte da tarde e da noite. Katie trabalhou no horário do almoço, mas o mau tempo espantou uma boa parte da clientela do restaurante, o que fez Ivan deixá-la sair mais cedo. Ela havia pegado o jipe de Alex emprestado e, depois de passar uma hora na biblioteca, foi até a loja para entregar o carro. Quando Alex a levou para casa, ela o convidou para voltar até ali mais tarde para jantar com as crianças.
Ela passou a tarde inteira sentindo-se inquieta. Queria acreditar que tinha algo a ver com o mau tempo, mas, enquanto observava a tempestade pela janela da cozinha, vendo os galhos das árvores se dobrarem ao vento e a chuva caindo em rajadas, sabia que aquela sensação estava relacionada à apreensão que sentia ao perceber que tudo em sua vida parecia estar perfeito demais ultimamente. Seu relacionamento com Alex e as tardes que passava com as crianças preenchiam um vazio que ela não dera conta que existia. No entanto, Katie aprendera há muito tempo que as coisas boas não duravam para sempre. A alegria era tão efêmera como uma estrela cadente cruzando o céu, uma luz que pode se apagar a qualquer momento.
Mais cedo, naquele mesmo dia, lera algumas matérias da edição online do The Boston Globe em um dos computadores da biblioteca e soube da morte de Gladys Feldman, anunciada no obituário. Ela sabia que Gladys estava doente e sabia do seu diagnóstico terminal de câncer antes de fugir de casa. Embora verificasse os obituários de Boston regularmente, a descrição lacônica sobre sua vida e os entes queridos que havia deixado a atingiu com uma força inesperada.
Katie nunca quis roubar a identificação dos arquivos dos Feldmans. Não tinha nem mesmo considerado aquela possibilidade até que
Gladys abrisse a pasta para lhe mostrar a foto de formatura de sua filha Katie. Ela viu a certidão de nascimento e o cartão com o número do seguro social ao lado da foto e foi quando percebeu que era sua oportunidade. Na sua próxima visita à casa, ela pediu licença para usar o banheiro e, em vez disso, foi até o arquivo de pastas. Mais tarde, enquanto comia uma torta de mirtilos com eles, os documentos pareciam queimar dentro de seu bolso. Uma semana depois, após tirar uma cópia da certidão de nascimento na biblioteca, dobrá- la e amassá-la para que parecesse antiga, colocou o documento de volta no arquivo. Teria feito o mesmo com o cartão do seguro social, mas não conseguiu fazer uma reprodução muito boa. Assim, esperava que, quando percebessem que o cartão não estava ali, eles imaginassem que ele se perdera ou se extraviara.
Ela pensou que Kevin nunca descobriria o que ela havia feito. Ele não gostava dos Feldmans e o sentimento era recíproco. Ela suspeitava que os Feldmans sabiam que ele a agredia. Percebia aquilo nos olhos deles, a maneira como a observavam quando ela atravessava a rua correndo para visitá-los, o modo como fingiam não notar os hematomas em seus braços ou a expressão séria no rosto deles sempre que mencionava Kevin. Queria pensar que eles entenderiam
as razões pelas quais ela teve que fazer aquilo, que eles gostariam que ela ficasse com a identificação, porque sabiam que ela precisava daqueles documentos e queriam que escapasse.
Os Feldmans eram as únicas pessoas de Dorchester de quem Katie sentia saudade e ela imaginava como Larry estaria. Eles foram seus amigos quando ela não tinha mais ninguém com quem conversar. Queria dizer a Larry que lamentava pela perda de Gladys. Queria chorar ao lado dele, falar sobre Gladys e dizer-lhe que, por causa deles, sua vida estava melhor agora. Queria dizer a Larry que havia encontrado um homem que a amava e que, pela primeira vez em vários anos, estava feliz.
Mas não faria nada. Em vez disso, ela simplesmente foi até a varanda da casa e, com os olhos cheios de lágrimas, observou en- quanto a tempestade arrancava as folhas das árvores.

***

— VOCÊ ESTÁ MUITO QUIETA esta noite. Está tudo bem? — perguntou Alex.
Ela havia preparado uma caçarola de atum para o jantar e Alex a estava ajudando a lavar os pratos. As crianças estavam na sala de estar, ambos brincando com videogames portáteis. Ela ouvia os bips e blimps sobre o som da torneira.
— Uma amiga faleceu — disse ela, entregando-lhe um prato para enxugar. — Sabia que isso aconteceria, mas, mesmo assim, é triste.
— Sempre é triste quando algo assim acontece — concordou ele. — Eu lamento.
Alex sabia que não era adequado fazer mais perguntas sobre o assunto. Em vez disso, ele aguardou em silêncio, esperando que ela se animasse a dizer mais alguma coisa. Entretanto, ela lavou outro copo e mudou de assunto.
— Quanto tempo você acha que a tempestade vai durar? — perguntou ela.
— Não por muito mais tempo. Por quê?
— Eu estava imaginando se a chuva vai forçar os organizadores do parque de diversões itinerante a cancelar o evento. Ou se o voo da filha de Joyce será cancelado.
Ele olhou pela janela. 
— Acho que não vai haver problemas. A tempestade já está se dissipando. Tenho quase certeza de que ela vai perder a força.
— Bem a tempo para o fim de semana.
— É claro. A natureza não se atreveria a interferir nos planos dos donos do parque de diversões. Ou nos planos de Joyce também.
Ela sorriu. 
— Quanto tempo você vai demorar para levá-la até Raleigh para recepcionar sua filha?
— Provavelmente quatro ou cinco horas. Raleigh não é um destino muito conveniente para quem vem até Southport.
— Por que ela não pega um voo para Wilmington? Ou simplesmente aluga um carro?
— Não sei. Não perguntei o motivo, mas imagino que seja para poupar dinheiro.
— Você sabe que está fazendo uma boa ação, não é? Ajudando Joyce dessa maneira.
Alex deu de ombros como se aquilo não fosse nada de mais. 
— Vocês vão se divertir amanhã.
— No parque de diversões ou na sua casa com as crianças?
— Em ambos os lugares. E, se você me pedir com carinho, lhe compro até mesmo um sorvete frito.
— Sorvete frito? Parece meio nojento.
— Na verdade, até que é bem gostoso.
— As pessoas só comem frituras por aqui?
— Se algo puder ser frito, as pessoas encontrarão uma maneira de fazê-lo. No ano passado, havia até mesmo um quiosque que vendia manteiga frita.
Ela quase engasgou. 
— Você está brincando.
— Não estou. Parece horrível, mas as pessoas formavam filas para comprar isso. Era a mesma coisa que entrar em uma fila para ganhar um ataque cardíaco.
Katie lavou e enxaguou o último copo e depois o entregou a Alex.
— Você acha que as crianças gostaram do jantar que eu preparei? Kristen não comeu muito.
— Kristen nunca come muito. Mas o mais importante foi que eu gostei. Achei que estava delicioso.
Ela balançou a cabeça. 
— Quem é que se importa com as crianças, não é? Desde que você esteja feliz...
— Ah, me desculpe. No fundo, sou um narcisista.
Katie esfregou a esponja ensaboada em um prato e o enxaguou.
— Estou ansiosa para passar a noite na sua casa.
— Por quê?
— Porque nós sempre estamos aqui e não lá. Mas não me entenda mal; eu entendo que isso é a coisa certa a fazer por causa das crianças.
“E por causa de Carly também”, pensou ela, mas não chegou a dizer aquilo. 
— Vou ter a oportunidade de ver como você vive.
Alex pegou o prato. 
— Você já esteve na minha casa.
— Sim, mas nunca fiquei mais do que alguns minutos e, mesmo assim, somente na cozinha e na sala de estar. Não tive a chance de espiar seu quarto ou bisbilhotar o armário do seu banheiro.
— Você não ousaria fazer isso — disse Alex, fingindo estar escandalizado.
— Talvez eu fizesse, se tivesse uma chance.
Ele enxugou o prato e o guardou no armário. 
— Fique à vontade para passar quanto tempo quiser no meu quarto.
Ela riu. 
— Isso é papo típico dos homens.
— Estou apenas dizendo que não me importaria. E fique à vontade para espiar o armário do meu banheiro também. Não tenho segredos.
— Isso é o que você diz — disse ela, provocando-lhe. — Você fala como alguém que tem vários segredos.
— Não em relação a mim mesmo.
Ela concordou, com uma expressão séria no rosto. 
— Não em relação a você mesmo.
Ela lavou mais dois pratos e os entregou a ele, sentindo uma onda de satisfação tomar conta de si enquanto observava Alex enxugá-los e guardá-los.
Ele pigarreou.
— Posso perguntar uma coisa? Não quero que você me entenda mal, mas estou curioso a respeito — disse ele.
— É claro.
Ele usou o pano de prato que tinha em seus braços, enxugando alguma louça e ganhando tempo. 
— Eu queria saber se você pensou no que eu disse no fim de semana passado. No estacionamento, depois do rodeio dos macacos.
— Você disse várias coisas — disse ela, cautelosamente.
— Não se lembra? Você me disse que Erin não poderia se casar, mas Katie provavelmente poderia.
Katie sentiu seu corpo enrijecer, não tanto por lembrar-se da conversa que tiveram, mas também pela seriedade do tom de voz de Alex.
— Eu me lembro — disse ela, tentando forçar-se a parecer despreocupada. — Acho que eu disse que teria que encontrar o homem certo.
Ao ouvir aquelas palavras, os lábios de Alex se contraíram, como se ele estivesse em dúvida sobre se devia continuar. 
— Eu só queria saber se você pensou no caso. Sobre a possibilidade de nos casarmos daqui a algum tempo.
A água ainda estava quente quando ela começou a lavar os talheres. 
— Você teria que pedir minha mão antes.
— E se eu a pedisse?
Ela encontrou um garfo e o esfregou. 
— Eu acho que diria a você que o amo.
— Mas você aceitaria?
Ela hesitou. 
— Não quero me casar novamente.
— Você não quer ou não acha que conseguiria?
— Qual é a diferença?
A expressão dela continuou firme e desafiadora. 
— Você sabe que eu ainda sou casada. Bigamia é ilegal.
— Você não é mais a Erin. Você é a Katie. Como você mesma disse, sua carteira de motorista confirma isso.
— Mas eu também não sou a Katie! — esbravejou ela, antes de se virar em direção a Alex. — Você não entende? Eu roubei esse nome de um casal com quem eu me importava! Pessoas que confiavam em mim — disse ela, olhando fixamente para ele, voltando a sentir a tensão que lhe atormentara durante o dia, rememorando com intensidade renovada a gentileza e a piedade de Gladys, sua fuga e os anos de pesadelo que vivera com Kevin. — Por que você não pode aceitar as coisas do jeito que elas são? Por que você tem que me pressionar tanto a ser a pessoa que você quer que eu seja em vez de me deixar ser a pessoa que eu sou?
Ele recuou. 
— Eu amo a pessoa que você é.
— Mas você está estabelecendo uma condição para isso!
— Não estou!
— Está sim! — insistiu ela. Ela sabia que estava levantando a voz, mas não conseguiu evitar. — Você tem uma ideia fixa sobre o que quer da sua vida e está tentando fazer com que eu me encaixe nessa ideia!
— Não é nada disso — protestou Alex. — Eu apenas lhe fiz uma pergunta.
— Mas você quer uma resposta específica! Você quer a resposta correta e, se não conseguir obtê-la você vai tentar me convencer a fazer o que você quer. Como se eu devesse fazer o que você quer! Como se eu devesse fazer tudo o que você quer!
Pela primeira vez desde que se conheceram, Alex lhe lançou um olhar duro. 
— Não faça isso — disse ele.
— Fazer o quê? Dizer a verdade? Dizer-lhe como eu me sinto? Por quê? O que você vai fazer? Vai me bater? Fique à vontade.
Alex se afastou, como se ela tivesse lhe dado um tapa. Ela sabia que suas palavras haviam atingido o alvo. Entretanto, em vez de se irritar, Alex colocou o pano de prato sobre o balcão e deu um passo para trás.
— Eu não sei o que está havendo, mas peço desculpas por ter tocado nesse assunto. Não foi minha intenção colocá-la contra a parede ou tentar convencê-la a fazer qualquer coisa. Estava apenas tentando conversar.
Ele esperava que ela dissesse alguma coisa, mas Katie continuou em silêncio. Balançando a cabeça, virou-se para sair da cozinha, antes de parar. 
— Obrigado pelo jantar — murmurou ele.
Na sala de estar, ela o ouviu dizer às crianças que estava ficando tarde e ouviu a porta da frente se abrir com um rangido. Alex fechou a porta calmamente por trás de si e a casa repentinamente ficou em silêncio e Katie sozinha com seus pensamentos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trono de Vidro

Os Instrumentos Mortais

Trono de Vidro