Capítulo 32
KEVIN SENTIA DIFICULDADE em
se manter entre as faixas da rodovia. Queria manter a mente alerta, mas sua
cabeça havia começado a latejar e ele sentia um nó em seu estômago, que o fez
parar em uma loja de bebidas para comprar uma garrafa de vodca. A bebida ajudou
a aliviar a dor e quando sorveu o líquido com um canudo, só conseguia pensar
em Erin e em como ela havia mudado seu nome para Katie.
A rodovia interestadual era um borrão aos seus olhos.
Os faróis dos carros, agulhadas duplas de luz branca, cresciam em intensidade
conforme se aproximavam do outro lado da estrada e logo desapareciam ao
passarem por ele. Um depois do outro. Milhares. Pessoas viajando e fazendo
coisas. Kevin dirigia para o sul, em direção ao estado da Carolina do Norte,
para encontrar sua esposa. Deixou Massachusetts, atravessou Rhode Island e
Connecticut, Nova York e Nova Jersey. A lua subiu, alaranjada e furiosa antes
de ficar branca, e atravessou o céu enegrecido acima dele. As estrelas também
pontilhavam o céu.
Um vento quente soprava pela janela aberta e Kevin
segurou o volante firmemente. Seus pensamentos eram como um quebra-cabeças feito de peças que
não se encaixavam. Aquela cachorra o abandonara. Ela abandonara seu casamento,
deixara-o para trás para que apodrecesse, e acreditava que era mais esperta do
que ele. No entanto, ele a descobriu. Karen Feldman atravessou a rua e ele
soube que Erin tinha um segredo. Mas não mais. Ele sabia onde Erin morava,
sabia onde ela estava se escondendo. Seu endereço estava rabiscado em um pedaço
de papel no banco do passageiro, sob a pistola Glock que trouxera de casa. No
banco de trás havia uma bolsa de viagem com roupas, algemas e fita adesiva do
tipo silver-tape. Ao sair da cidade, passou em um caixa eletrônico e
retirou algumas centenas de dólares. Queria bater no rosto de Erin até lhe
quebrar todos os ossos, deixando apenas uma massa feia e ensanguentada em seu
lugar. Queria beijá-la, abraçá-la e implorar para que ela voltasse para casa.
Encheu o tanque do carro perto da Filadélfia e se lembrou de como a havia
rastreado até ali.
Ela o havia feito de palhaço levando uma vida secreta
que ele não fazia a menor ideia que ela tinha. Visitando os Feldmans,
cozinhando e limpando a casa para eles enquanto tramava, fazia planos e mentia.
Sobre o que mais ela teria mentido? Era o que ele se perguntava. Outro homem?
Talvez não naquela época, mas agora provavelmente haveria algum. Beijando-a.
Acariciando-a. Tirando-lhe as roupas. Rindo dele. Eles deviam estar na cama
agora. Ela e o homem. Os dois rindo dele pelas suas costas. “Eu mostrei a ele,
não foi?” Era o que ela estaria dizendo enquanto ria. “Kevin nem percebeu o que
estava acontecendo”.
Pensar naquilo o enlouquecia, o deixava furioso. Kevin
já estava na estrada há horas, mas continuava dirigindo. Ele bebia sua vodca e
piscava rapidamente para clarear a visão. Não passou do limite de velocidade.
Não queria ser parado por algum policial rodoviário. Não com uma arma no banco
do passageiro, ao seu lado. Ela tinha medo
de armas e sempre lhe
pedia para trancar sua arma no estojo ao fim do expediente. Ele sempre fazia o
que ela pedia.
Mas não era o bastante. Ele podia lhe comprar uma
casa, móveis e roupas bonitas, levá-la à biblioteca e ao salão de beleza e,
mesmo assim, não era o bastante. Quem poderia entender? Será que era tão
difícil limpar a casa e preparar o jantar? Kevin nunca quis bater nela. Só
fazia aquilo quando não tinha mais nenhuma escolha. Quando ela era imbecil,
descuidada ou egoísta. Ela o forçou a fazer tudo aquilo.
O motor continuava a roncar, o ruído estava firme em
seus ouvidos. Erin tinha uma carteira de motorista agora e era garçonete em um
restaurante chamado Ivan’s. Antes de sair, ele passou algum tempo na internet e
fez alguns telefonemas. Não foi difícil encontrá- la, porque a cidade era
pequena. Ele conseguiu descobrir onde ela trabalhava em menos de vinte minutos.
Tudo o que ele teve que fazer foi discar o número e perguntar se Katie estava
lá. No quarto telefonema, alguém disse sim. Ele desligou sem dizer qualquer
palavra. Ela pensou que podia se esconder para sempre, mas ele era um bom
investigador e a encontrara. “Estou chegando”, pensou ele consigo mesmo. “Sei
onde você mora e onde você trabalha. Você não vai escapar de novo”.
Passou por placas de propaganda e rampas de saída e,
em Delaware, a chuva começou a cair. Levantou o vidro da janela e sentiu o
vento empurrar o carro lateralmente. Um caminhão à sua frente estava
ziguezagueando pela pista, com as rodas da carreta passando por cima das faixas
de sinalização. Ligou os limpadores de para-brisa e sua visão se clareou. Mas a
chuva começou a cair ainda mais forte e ele se inclinou sobre o volante,
apertando os olhos para enxergar além das manchas luminosas dos faróis que
vinham na direção oposta. Sua respiração começou a embaçar o vidro e ele ligou
o desembaçador. Dirigiria a
noite inteira e encontraria Erin amanhã. Ele a traria para casa e eles
recomeçariam sua vida mais uma vez. Marido e mulher, vivendo juntos, da maneira
como devia ser. Felizes.
Eles eram felizes. Costumavam fazer coisas divertidas
juntos. Ele se lembrava de que, logo depois de se casarem, ele e Erin visitavam
casas que estavam à venda nos fins de semana. Ela se sentia alegre por poder
comprar uma casa e ele a escutava conversando com os corretores de imóveis, sua
voz ressoando como música pelas casas vazias. Erin gostava de passar um bom
tempo andando pelos quartos e Kevin sabia que ela estava decidindo onde colocar
os móveis. Quando encontraram a casa em Dorchester, ele percebeu que ela a
queria pela maneira que seus olhos brilharam. Naquela noite, deitada na cama,
ela traçou pequenos círculos com os dedos em seu peito enquanto lhe implorou
para fazer uma oferta e ele se lembrou de ter pensado que faria qualquer coisa
que ela quisesse, pois a amava.
Exceto ter filhos. Erin dizia que queria ter filhos,
que queria começar uma família. Durante o primeiro ano do casamento, ela falava sobre isso o tempo todo. Ele tentou ignorá-la. Não desejava dizer que lhe
desagradava a ideia de vê-la gorda e inchada, que mulheres grávidas eram feias,
que não queria ouvi-la reclamando do quanto estava cansada ou como seus pés
estavam inchados. Não queria um bebê gritando e chorando quando ele voltasse
para casa do trabalho. Não queria que ela ficasse com o rosto inchado e o corpo
flácido, ou ouvi-la perguntando se o seu traseiro estava ficando gordo demais.
Kevin se casou com ela porque queria uma esposa, não uma mãe. Mas ela insistia
em falar sobre aquilo, não se cansava de tocar naquele assunto. Até que ele
finalmente lhe deu um tapa e mandou-a calar a boca. Depois daquele dia, ela
nunca mais falou sobre ter filhos. Entretanto, ele agora se perguntava se
devia ter dado a Erin o que ela queria. Ela não o teria abandonado se tivesse
um filho. Não seria capaz de fugir se
houvesse uma criança. Pelo mesmo raciocínio, ela nunca mais seria capaz de
fugir.
Ele decidiu que eles teriam um filho. Os três viveriam
em Dorchester e ele trabalharia como investigador de polícia. À noite, ele
voltaria para casa para encontrar sua linda esposa e, quando as pessoas os
vissem no supermercado, todos ficariam encantados, dizendo “são uma família
tipicamente americana”.
Ele se perguntou se o cabelo dela estaria loiro
novamente. Esperava que estivesse longo e que ele pudesse deslizar seus dedos
por eles. Ela gostava quando Kevin fazia isso, sempre sussurrando, dizendo as
palavras que ele gostava, excitando-o. Mas aquilo não era real, não se ela
estivesse planejando abandoná-lo. Erin havia mentido. Mentira durante todo
aquele tempo. Semanas. Meses, talvez. Furtou coisas dos Feldmans, o telefone
celular, o dinheiro que tirava de sua carteira. Tramando e fazendo planos; e
ele não fazia ideia do que ela estava armando. E, agora, outro homem estava
dormindo em sua cama. Passando-lhe os dedos pelos cabelos, ouvindo-a gemer,
sentindo suas mãos no corpo dele. Kevin mordeu seu lábio e sentiu o gosto de
sangue, odiando-a. Queria socá-la e chutá-la, queria atirá-la pelas escadas.
Tomou mais um gole da garrafa que estava ao seu lado, enxaguando o gosto
metálico que havia ficado em sua boca.
Ela o havia enganado porque era bonita. Tudo o que
havia em Erin era bonito. Os seios, os lábios, até mesmo a curva das suas costas. No cassino, em Atlantic City, quando se encontraram pela primeira vez, ele
pensou que ela era a mulher mais linda que ele já havia visto e, durante os
quatro anos do seu casamento, nada daquilo havia mudado. Erin sabia que Kevin a
desejava e usava aquilo em benefício próprio. Vestia-se de maneira sexy. Ia
ao salão de beleza para tratar dos cabelos. Usava lingeries
de renda. Tudo aquilo fez com que ele baixasse a guarda, fez com que ele
pensasse que ela o amava.
Mas ela não o amava. Ela nem se importava com ele. Não
se importava com os vasos de flores quebrados, com os pratos de porcelana
estilhaçados, não se importava por ele ter sido suspenso do trabalho e não se
importava por ele chorar sozinho na, cama, todas as noites antes de dormir,
desde que ela tinha partido. Não se importava pela vida de Kevin que estava
se despedaçando. Tudo o que importava eram as coisas que ela queria. Mas ela
sempre fora egoísta e agora estava rindo dele. Rindo há meses e pensando apenas
em si mesma. Ele a amava e a odiava e não conseguia saber ao certo o que sentia
por ela. Sentiu as lágrimas começarem a se formar e piscou os olhos para que
elas não rolassem pelo seu rosto.
Delaware. Maryland. Os arredores de Washington D. C.
Virginia. Horas perdidas para a noite que nunca terminava. No começo chovia
forte, mas a chuva gradualmente se dissipou. Ele parou perto de Richmond quando
o dia começou a raiar e pediu o café da manhã. Dois ovos, quatro fatias de bacon,
torrada de pão de trigo. Bebeu três xícaras de café. Colocou mais gasolina no
carro e voltou para a rodovia interestadual. Entrou na Carolina do Norte sob um
céu azul. Havia insetos esmagados contra o para-brisa do seu carro e suas costas começaram a doer. Teve que colocar os óculos escuros para que não tivesse
que apertar os olhos e sua barba começou a coçar.
“Estou
chegando, Erin”, pensou ele. “Logo estarei aí”.
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